Alexandre Boide conta a história dos Mangás*
Como em quase tudo no que se refere aos primórdios dos mangás, o responsável por essa mudança de mentalidade foi Osamu Tezuka, conhecido como “o deus do mangá”, pressionado pelas privações extremas existentes em seu país no início de sua carreira. No Japão do pós-guerra, as histórias em quadrinhos haviam praticamente desaparecido dos jornais e das revistas. Os quadrinistas precisariam reiventar a dinâmica e o formato de suas histórias caso desejassem permanecer na ativa. A oportunidade para isso surgiu em Osaka, onde vivia Tezuka, com a possibilidade de publicar HQs em preto e branco em livros de impressão barata conhecidos como akahon (“livros vermelhos”, por causa da cor chamativa de suas capas). Para serem encadernadas e comercializadas como livros, as histórias naturalmente precisavam ter começo, meio e fim, e foi assim que, em 1947, surgiu Shin-Takarajima (“A nova Ilha do Tesouro”), o primeiro best-seller da era moderna dos mangás, com 60 páginas e 400 mil exemplares vendidos.
As histórias em quadrinhos japonesas não precisavam se prender a um limite de páginas e seus protagonistas não precisavam ser eternos, mas isso não significa que elas pudessem prescindir do apelo dos heróis. Principalmente a partir de 1959, com a publicação das primeiras revistas voltadas para o público infantil masculino, houve um boom criativo que originou personagens que marcariam para sempre o imaginário coletivo do país: de Kitarô, Doraemon, Kamen Rider e Ultraman até os mais recentes Goku, Naruto e Ruffy. Osamu Tezuka, nunca é demais lembrar, estava lá desde o início, com seu megapopular robozinho Astro Boy. E não eram só os heróis de ação que davam as cartas. Outro gênero de história também se revelou bastante atraente para o novo nicho que surgia: as grandes aventuras esportivas. Ao longo das décadas, não foram poucos os autores que alcançaram o estrelato explorando o potencial desse gênero, como Tetsuya Chiba (de Ashita no Joe), Mitsuru Adachi (de Touch), Yoichi Takahashi (de Captain Tsubasa) e Takehiko Inoue (de Slam Dunk).
Osamu Tezuka em um mar de mangás criados por ele
E as limitações de formato não foram a única barreira quebrada pela nova maneira de fazer quadrinhos inventada pelos japoneses. Nos Estados Unidos, em 1954, foi decretado oficialmente, e pelos próprios editores: gibi era coisa de criança. Violência escancarada, sensualidade e mensagens de desafio ao
status quo não seriam mais toleradas nos
comic books, que só poderiam ser comercializados depois de receber o selo de aprovação do Comics Code, o código de ética dos quadrinhos. Conteúdo mais ousado e contestador somente em publicações destinadas a maiores de idade, como a revista
Mad ou, mais tarde, no mercado underground de revistas publicadas por conta própria e distribuídas pelo correio ou de mão em mão, onde surgiram grandes nomes dos quadrinhos norte-americanos das últimas décadas, como R. Crumb, Harvey Pekar e os irmãos Hernandez. A partir do estabelecimento do Comics Code, o mercado de massa das revistas de HQs nos Estados Unidos passou a ser totalmente dominado por animaizinhos falantes, super-heróis virtuosos e historinhas edificantes como a de Archie e sua turma.
No Japão, essa limitação formal e arbitrária nunca existiu. Muitos dos personagens das revistas para meninos são cínicos, amorais e até indecentes sem nunca perder a simpatia. E, quando estudantes universitários e jovens proletários começaram a procurar por histórias em quadrinhos mais adequadas a sua faixa etária, os editores dos ankohon deram ouvidos à demanda e começaram a publicar os kurai (os mangás “dark”), que exploravam temas considerados tabus, como a humilhação imposta ao país com a derrota na 2ª Guerra Mundial e passagens espinhosas da história japonesa que não podiam ser ensinadas nas escolas em virtude da censura exercida pelo governo imperial. Foi no caminho aberto pelos kurai na abordagem de temas históricos que surgiram grandes clássicos dos quadrinhos japoneses, como A lenda de Kamui, de Sanpei Shirato, Gen pés descalços, de Keiji Nakazawa e Lobo Solitário, de Kazuo Koike e Goseki Kojima.
(Continua amanhã)
(leia aqui a parte I)
*Alexandre Boide é tradutor e coordenador editorial dos Mangás que serão publicados no final de 2011 pela L&PM. “A(s) possibilidade(s) de uma ilha” foi escrito especialmente para este Blog e será publicado em três partes, do dia 01 ao dia 03 de setembro. Não deixe de acompanhar.