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A(s) possibilidade(s) de uma ilha – Parte I

Alexandre Boide conta a história dos Mangás*

A coisa tinha mudado mesmo de figura. E de maneira radical. Em 1945, em meio ao que sobrou da cidade de Osaka devastada pela guerra, Osamu Tezuka ia ao Cine Shouchiku assistir aos desenhos animados de Walt Disney, de quem era um grande fã, sonhando em algum dia poder fazer algo pelo menos parecido. Em 1994, os Estúdios Disney lançaram com grande alarde sua megaprodução O rei leão, que tinha “semelhanças” escandalosas com Kimba — O leão branco, de Tezuka, a começar pelo nome do protagonista. A questão do plágio era tão flagrante que o ator Matthew Broderick, escalado para dublar a voz de Simba, chegou a declarar que imaginava se tratar de um remake “do desenho do leão branco que eu via quando criança”.

À esquerda, os desenhos de "Kimba, o leão branco" (de 1965) e à direita, "O Rei Leão" (de 1994). A Disney copiou até os enquadramentos dos quadrinhos de Tezuka

Em menos de quarenta anos, o epicentro do entretenimento de qualidade em quadrinhos e animação havia se deslocado de Hollywood e das grandes editoras de HQs nova-iorquinas para o extremo Oriente, ainda que, na época, a maior parte das pessoas não tivesse se dado conta disso. Não muito tempo depois, os mangás cairiam como uma bomba sobre o mercado ocidental de cultura pop.

A explicação para isso se deve em parte a uma bomba real e mortífera: aquela que foi lançada sobre Hiroshima e Nagasaki em 1945. Com a derrota na 2ª Guerra Mundial, o Japão foi irremediavelmente invadido pelos produtos de consumo do triunfante capitalismo norte-americano, e a cultura popular e o entretenimento não poderiam ficar de fora. Os coloridos comic books, com suas cores vibrantes e seus heróis fantasiados, além das divertidas tiras de jornal conhecidas na época como funnies, foram uma revelação para a população local, acostumada a quadrinhos mais estáticos, baseados na estética das gravuras tradicionais japonesas. Porém, de acordo com os preceitos de sua cultura milenar e sua mentalidade abertamente insular, os japoneses não hesitariam em logo começar a fazer as coisas à sua própria maneira. Assim como a Toyota superou a Ford, os mangás engoliram o espaço dos comic books.

Quando começaram a ser criados no Japão, os quadrinhos foram libertados de uma série de paradigmas. Para começar, os gibis não precisavam se limitar a 32 duas páginas com as aventuras de super-heróis que atravessam as décadas enfrentando quase sempre os mesmos vilões. As revistas de quadrinhos japonesas têm o tamanho e a grossura de listas telefônicas, com diversas séries se desenrolando ao mesmo tempo, todas elas concebidas para ter início, meio e fim, mesmo que a história se estenda por centenas de volumes e milhares de páginas. Nada de heróis que morrem apenas para renascer alguns números a seguir, ou de personagens comemorando 70 anos de publicação ininterrupta após passar pela mão de dezenas de roteiristas e desenhistas diferentes. Um exemplo marcante dessa diferença de conceito foi dado em março de 1970, quando centenas de fãs de mangá se reuniram na sede da editora Kodansha para se despedir com um funeral simbólico de um boxeador da série Ashita no Joe (“Joe do Amanhã”), de Tetsuya Chiba, com direito a cerimônia conduzida por um sacerdote budista em um ringue de tamanho oficial — e todos os presentes sabiam que sua morte não era só um golpe de marketing.

(Continua amanhã)

*Alexandre Boide é tradutor e coordenador editorial dos Mangás que serão publicados no final de 2011 pela L&PM. “A(s) possibilidade(s) de uma ilha” foi escrito especialmente para este Blog e será publicado em três partes, hoje, sexta e sábado. Não deixe de acompanhar.