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Slim Gaillard, mais do que um personagem de Kerouac

Em seu blog, Claudio Willer escreveu um post onde centrava suas atenções sobre Slim Gaillard, músico que ocupa algumas páginas de On the Road, de Jack Kerouac (219 a 221 na edição da L&PM). No recentemente lançado Os rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico, de sua autoria, Willer também dedica alguns parágrafos para o jazzista. E conta que, quando preparou o livro, não achou quase nada sobre Gaillard no meio digital. “Mas, nesse manancial infinito, aparecem agora bons registros; inclusive um documentário extenso da BBC, descoberto pelo músico Pita Araujo, que colaborou em dois dos meus cursos sobre Geração Beat.” escreve ele.  A seguir, dois vídeos com Gaillard.

Um trecho dos comentários de Os rebeldes, incluindo citação de Kerouac.

Um dos trechos exaltados da louvação a jazzistas em On the Road é sobre um dos mais originais dentre aqueles músicos. É quando Kerouac e Cassady se encontram com Slim Gaillard, o excêntrico guitarrista negro que, ao falar, se expressa através de glossolalias, fonemas não-semantizados. Cassady o proclama “Deus”; Kerouac o retrata como iluminado, xamã: “Slim Gaillard é um negro alto e magro com grandes olhos melancólicos que tá sempre dizendo “Legal-oruni” e “que tal um bourbon-oruni?” […] E então [depois de interpretar seu jazz] ele se levanta lentamente, pega o microfone e diz, com muita calma: “Grande-oruni…. belo-ovauti… olá-oruni…. bourbon-oruni… tudo-oruni…. como estão os garotos da primeira fila, fazendo a cabeça com suas garotas-oruni…. oruni…. vauti…. orunirumi….” (Kerouac 2004, pgs. 219-221)

Ele ainda “grita coisas malucas em espanhol, em árabe, em dialetos peruanos e egípcios, e em cada língua que conhece, e ele conhece inúmeras línguas”. Sim, “inúmeras línguas” – mais a língua pessoal, equivalente ao “falar em línguas” pentecostal: às glossolalias, os fonemas não-semantizados dos rituais em doutrinas iniciáticas. Conforme a antropóloga Felicitas Goodman, há padrões em comum nessas manifestações em contextos tão distintos: cultos pentecostais, tribais e outras práticas religiosas nas quais ocorrem transes ou possessões (Goodman, em Eliade 1985, vol. VI, pgs. 563-566). Correspondem à “outra língua” aprendida pelos xamãs em seu trajeto iniciático, segundo Eliade.

Octavio Paz mostrou que a mesma manifestação reaparecia em poetas modernos: Huidobro, Khlébnikov, Artaud, Schwitters. Interpretou-a como tentativa de recuperar a linguagem adâmica ou divina; aquela do tempo que precedeu a Queda (Paz 1991, no ensaio “Leitura e contemplação”). A fala sagrada, mágica, é não-significativa, puramente sonora, como também expõe Gershom Scholem:”O fato de que a atuação da palavra vai muito além de todo “entendimento” é algo que não precisa apoiar-se na especulação religiosa, pois tal é a experiência do poeta, do místico e de todo falante que se delicia com o elemento sensível da palavra.” (Scholem 1999, p. 15)

Slim Gaillard foi, sem dúvida, um personagem sob medida para corresponder à preferência de Kerouac por excêntricos e marginais. Mestiço, teria nascido em Cuba, filho de uma afro-cubana e de um grego. Segundo outra versão, era norte-americano, de Detroit; levou uma vida errante, morou na África e de fato sabia oito línguas, além de haver criado um dicionário para seu vocabulário particular. Como músico, foi ao mesmo tempo um intérprete típico de blues, da mesma estirpe do exuberante Cab Calloway, e um precursor e improvisador. Seu “Tutti Frutti”, dos anos de 1930, antecipou, de modo evidente, o rock que se imporia duas décadas mais tarde. E seu ecletismo o aproxima das modernas correntes ‘fusion’. Por haver misturado repertórios e ter sido provocador e performático (chegou a apresentar-se tocando piano com as palmas para cima e guitarra com a mão esquerda, um comportamento ofensivo para profissionais), foi um marginal até no mundo jazzístico, embora se houvesse apresentado com Parker, Gillespie e outros expoentes.
O trecho sobre Gaillard, em especial, e os relatos de encontros com vagabundos, em geral, permitem uma interpretação da devoção de Kerouac por tais personagens, tanto à luz do misticismo, quanto literária: eles falam. São oraculares, sibilinos: a frase cifrada, enigmática, é, assim como na Antiguidade, uma profecia. Representam a língua falada em sua expressão mais genuína. A intenção de Kerouac – realizada especialmente em Visões de Cody, com suas páginas de transcrição de fita gravada – era trazer tais sons para a escrita.

Um tour Jack Kerouac pela Big Apple

Vai para Nova York? Que tal fazer um tour Jack Kerouac pela cidade? Sugerido pelo kerouacsnewyork.tripod.com, a lista inclui bares, restaurantes, parques e igrejas. O roteiro traz apenas locais que ainda existem e alguns deles estão aqui para que você possa colocar o pé na estrada e viajar pelo mundo de Kerouac. Mas sem esquecer de levar seus livros na bagagem, é claro.

White Horse Tavern –  567, Hudson St.
Kerouac morou em frente a esta taverna do século 19. A sala de madeira do bar ainda é a original e eles oferecem uma boa seleção de cervejas, incluindo Ale White Horse. Outros grandes escritores que costumavam frequentar o White Horse: Dylan Thomas, Norman Mailer e Hunter S. Thompson.

Saint Patrick´s Cathedral – 5th Ave. com 49th St.
Localizada em Midtown, a poucos passos do Rockefeller Center, esta bela catedral costumava receber a visita de Kerouac. Pegue a sua cópia de “Visões de Cody” e veja se você consegue encontrar o vitral citado por Jack no livro.

The former Hurley’s Saloon – 6th Ave. com 49th St.
Jack Kerouac costumava frequentar este lugar, principalmente nas noites de sexta-feira, algumas vezes para ver o jazzista Lee Konitz tocar. Só que agora, no lugar do bom e “Velho Saloon”, há um restaurante chique. Então resta fazer algumas fotos da fachada – que é igual a que Jack conheceu.

Manny´s Music Store – 156 W 48th St
Jack seguiu Lee Konitz até esta “loja de música dos hipsters e Symphony Sid”. Vale a visita para comprar uma palheta personalizada ou apenas para conhecer a parede de fotos autografadas.

Washington Square Park – no final da 5 ª Avenida
O parque onde Kerouac costumava ir é um dos principais marcos do Greenwich Village e um espaço famoso por sua tradição de inconformidade. Além da estátua de George Washington, ali também está uma escultura de Garibaldi.

Statue of Samuel Cox – 7th St. perto da esquina com a Avenue A
Em uma cidade repleta de monumentos, as pessoas facilmente passam despercebidas pela estátua de Samuel Cox, no East Village. No entanto, ela é notável para os fãs de Kerouac por causa da famosa fotografia que Allen Ginsberg fez de Jack onde ele aparece de boca aberta com esta estátua ao fundo.

Minetta Tavern – 113 MacDougal St.
Este velho restaurante italiano ainda continua funcionando. Certamente, a atmosfera não deve ser mais a mesma do tempo em que William Burroughs levava Kerouac e outros beat para jantares finos por lá.

Gas Light Cafe – 116 MacDougal St.
A Gas Light foi berço dos saraus poéticos do Village. Jack e todos os grandes leram seus textos por lá. Bob Dylan também tocou por lá no começo de sua carreira (e inclusive morou no andar de cima).

Para completar, ainda há o Café Reggio na MacDougal St., 121; o Kettle of Fish também na MacDougal, mas no número 114; a “Our Lady of Guadalupe”, uma das igrejas favoritas do escritor que fica na 229 W 14th St. e o Glen Patrick´s que era um pub frequentado por Kerouac quando ele morava em Richmond Hill.

A aventura de traduzir Kerouac

Guilherme da Silva Braga enfrentou o desafio de traduzir Jack Kerouac: Visões de Cody, Big Sur e agora Anjos da desolação, que deverá ser lançado no início do segundo sementre de 2010. Obras viscerais de um autor que marcou o século XX, que inovou na linguagem e segue sendo contemporâneo, e que chega até nós na versão impecável de Guilherme que narra, abaixo, o duro caminho que percorreu para traduzir o texto e a alma de Kerouac.

Por Guilherme da Silva Braga

Depois de três meses de trabalhos começados logo após o Ano-Novo e de quase quatrocentas páginas de prosa ensandecida, hoje terminei a tradução de mais um livro do Kerouac, que vai sair em português pela L&PM com o título de Anjos da desolação (“Desolation Angels”). Assim como aconteceu com Visões de Cody, essa é a primeira tradução de Anjos da desolação para o português, o que é uma ótima notícia para os leitores ávidos por novidade.
Não sei se algum leitor faz idéia, mas esse jeitão largado dos textos do Kerouac pode ser um tanto intimidador para quem traduz, mesmo quando a gente trabalha com o maior cuidado e o maior respeito pelo texto. Quando terminei a minha tradução do difícil poema Mar, que encerra o Big Sur, por exemplo, foi um grande incentivo descobrir que a tradução do Paulo Henriques Britto (Brasiliense, 1985) – embora muito diferente da minha – tinha dado um tratamento mais ou menos similar ao texto. Faz bem saber que o que a gente está fazendo não é uma loucura e que outros tradutores de reconhecida competência e talento tomaram decisões parecidas quando precisaram.

Um bom começo para quem quer conhecer Kerouac

Guilherme também traduziu "Visões de Cody" / Divulgação

Digo sem dúvida que Anjos da desolação é o meu livro favorito do Kerouac até o momento, bem como uma excelente apresentação para quem nunca leu nenhuma obra do cara. Anjos da desolação não é tão surtado quanto Visões de Cody, mas ainda assim quaisquer concessões à “arte do bem escrever” no sentido acadêmico-babaca do termo passaram longe: Kerouac acerta a mão na escrita de sua prosa tipicamente escalafobética, mantendo a estranheza, a espontaneidade e o experimentalismo subversivo do texto, porém sem descambar o tempo inteiro para o absurdo. O resultado é um livro a um só tempo mais cativante e de leitura mais agradável.
Como de costume, em Anjos da desolação Kerouac faz da vida uma aventura e relata desde as experiências espirituais que teve durante a solidão prolongada no topo do Desolation Peak, onde trabalhou como vigia de incêndios, até cenas absolutamente hilárias ao lado dos amigos Allen Ginsberg, Peter Orlovsky, Lafcadio Orlovsky e Gregory Corso na Cidade do México – tudo regado a viagens, garotas, alegrias, bebidas, paranoias, tristezas e ternuras, como qualquer leitor devoto está cansado de saber.
Como tradutor que sou, no entanto, não me cabe contar a história do livro, mas apenas a da tradução. Anjos da desolação, diferente do que ocorreu em Visões de Cody, não virá acompanhado de nenhuma nota introdutória minha sobre a tradução, uma vez que as dificuldades que apresenta – embora não tenham faltado – não são nem tão específicas nem tão extremas a ponto de justificar a tal nota. O que não me impede de escrever estas breves palavras sobre alguns dos percalços que enfrentei com tanta alegria durante a tradução da obra, claro.
Ao contrário do que reza a cartilha tradutória – mas a exemplo do que quase todos os tradutores literários que conheço e com quem já troquei idéias fazem –, não costumo ler os livros que traduzo antes de começar a traduzi-los. No caso específico do Kerouac, parece-me que abrir mão de uma leitura prévia pode ter o benéfico efeito colateral de manter o frescor do texto, o que evidentemente não me dispensa, ao cabo da tradução, de reler todo o texto produzido em português uma segunda vez com o maior cuidado possível para corrigir erros, completar lacunas e aparar arestas a fim de deixar o texto o mais fluente possível.

Parte da série "Beats", publicada pela L&PM

Cada página, um desafio

Tenho certeza de que há quem pegue os livros do Kerouac – seja no original, seja em uma tradução minha ou dos outros valentes tradutores que arriscaram o pescoço nas outras versões brasileiras dos livros do autor – e pense que é fácil escrever ou traduzir prosa em um estilo mais livre, já que certas preocupações com correção gramatical, coerência e coesão textual vão em boa parte para o espaço. O que menos gente percebe é que toda essa liberdade estilística gera um conjunto muito particular de problemas tradutórios. Um dos aspectos mais gritantes, no caso específico de Kerouac, é o som e o ritmo da prosa original, dotada de uma naturalidade incrível, que a faz soar quase como se fosse de fato um texto falado – o que às vezes de fato acontece, como por exemplo no enorme capítulo de Visões de Cody intitulado Frisco: a fita. Assim, um dos grandes desafios de traduzir Kerouac é manter essa espontaneidade, essa vivacidade da língua falada no texto escrito – algo que não estamos acostumados a ver. Muito do que pode parecer desleixo e improviso destrambelhado quando escrito na página soa exatamente como falaríamos no dia-a-dia se lido em voz alta com a entonação adequada (verdade que em certos casos soa tal como falaríamos depois de tomar um porre, mas ainda assim o efeito de verossimilhança permanece).

Os diálogos, um dos pontos altos

Outro aspecto muito comentado e raras vezes explicado quando se fala sobre tradução é a necessidade de conferir a cada personagem uma voz própria. As primeiras vezes em que ouvi falar a respeito, não entendi muito bem como esse efeito seria alcançado. Mas durante a tradução de Visões de Cody descobri um caminho que tem me prestado bons serviços e me permitido dar uma cara própria às falas de Kerouac, Neal Cassady, Gregory Corso, Allen Ginsberg, William Burroughs e o resto desse pessoal. No texto original, o modo como alguns dos personagens falam – Cassady em particular – é tão flagrantemente diferente dos demais que me vi obrigado a elaborar um guia pessoal de estilo para os diferentes protagonistas, a fim de registrar as peculiaridades que eu conferi, em português, à fala de cada um. Assim, nas minhas traduções, o leitor notará por exemplo que Cassady prefere a forma “cê” em vez de “você”, e que Kerouac e Ginsberg falam “teu”, enquanto Corso fala “seu”. Claro, esses são apenas exemplos simplórios, mas depois de traduzir três livros de Kerouac – Visões de Cody, Big Sur e agora Anjos da desolação, com um quarto livro do autor já em vista – o meu pequeno guia cresceu a ponto de incluir expressões e maneirismos menos óbvios, como “fiadaputa” (em geral dito por Neal Cassady), “tá legal” (Gregory Corso), “hmmm” (William Burroughs) e “volta e meia” (Jack Kerouac). É óbvio que estas são apenas orientações gerais que elaborei para a minha própria consulta e não regras infalíveis a que me ative de maneira obstinada – o que sequer seria desejável –, mas de qualquer modo pareceu-me que adotar este ou aquele modo de dizer dependendo de quem está falando seria uma boa forma de marcar a individualidade dos personagens nos diálogos.
Os diálogos de Anjos da desolação, aliás, são um dos pontos mais altos do livro. Em algumas das melhores cenas, Gregory Corso, sempre aos berros, faz um breve e inflamado discurso sobre a beleza e a verdade para os atônitos passageiros de um ônibus; Allen Ginsberg trava uma divertidíssima conversa trilíngüe em que mistura inglês (português), espanhol e francês para pechinchar o aluguel de um apartamento na Cidade do México com a senhoria; e Lafcadio, o irmão parcialmente catatônico de Peter Orlovsky, insiste em fazer perguntas sobre os sonhos de Kerouac.

Agora é só esperar mais alguns meses para o livro chegar às livrarias.