Arquivos da categoria: Era uma vez…uma editora

19. O perigoso ofício de editor

Por Ivan Pinheiro Machado*

Todo editor com alguma presença no mercado sofre um assédio diário por parte de escritores novos ou nem tanto. É um lado estranho da profissão, pois temos que administrar a absoluta impossibilidade de publicar 99,9% do que nos é oferecido, tendo o cuidado de não fulminar sonhos, ilusões e, por que não, vocações. As editoras mais atuantes do mercado, sem exceção, têm o seu projeto editorial. Em cada uma delas, há um grupo de profissionais que faz a prospecção de novos títulos. Sempre dentro de uma ideia de conjunto de lançamentos e respeitando as séries, as grandes coleções e finalmente aquilo que chamamos a “cara” da editora ou, falando sério, a filosofia da editora. Ou seja, não se faz uma projeto de programação anual esperando que chegue algum original genial pelo correio ou, modernamente, num PDF via e-mail. Não. O projeto editorial de uma editora de respeito é sempre previamente traçado e a busca de títulos obedece a critérios rigorosos, tanto comerciais, como culturais. E isto, obviamente, não impede que sejam descobertos autores inéditos.

Mas há, de parte de muita gente, a ideia de que o editor TEM que ler o seu livro, TEM que publicar seus primeiros poemas. Alguns autores não admitem a recusa. Acham que uma editora comercial é uma fundação sem fins lucrativos. Enquanto que, na verdade, uma editora é um negócio como outro qualquer; tem dezenas, às vezes centenas, de funcionários, investe em matéria-prima, equipamento, tecnologia, marketing dos autores, prestadores de serviço, etc, etc. Ou seja, uma editora tem que ter resultado comercial para poder pagar seus escritores, fornecedores e sobreviver como negócio. Dito isto, vou contar uma pequena fábula sobre o perigosíssimo ofício de editor:

Um punhal surge do escuro

Foi lá pelo começo dos anos 1990. Um jovem poeta, conhecido meu e filho de uma pessoa de muito prestígio na cidade, ligava insistentemente pedindo para falar comigo. Eu, sabendo o motivo do telefonema, instruía minha secretária a dizer que não estava para ver se o cara percebia que eu não queria falar. Mas ele insistiu, insistiu tanto, que eu acabei atendendo. Ele queria publicar os seus poemas para a Feira do Livro de Porto Alegre daquele ano. Eu expliquei que não estávamos fazendo livros de poesia, que a Feira do Livro estava muito em cima da hora (dois meses) e que – ele me perdoasse – mas era comercialmente muito complicado publicar poetas estreantes, etc. etc. Então ele pediu que, pelo menos, eu lesse os poemas dele. E se despediu bastante aborrecido. Prometi que leria seu precioso livro. E cumpri. Li os primeiros três poemas. Eram tão primários, infantis (o cara tinha uns 35 anos) que parei de ler e esqueci do assunto. Nossa sede era um sobrado na aprazível rua Nova York no bairro Higienópolis em Porto Alegre. Um dia de inverno, fiquei trabalhando até mais tarde e fui o último a sair, já noite fechada. Meu carro estava estacionado em frente à editora. Distraído, eu fechava o portão, quando uma sombra saltou de trás de uma árvore. Meu coração disparou, pois imaginei um assalto. O vulto aproximou-se e a luz do poste de iluminação da rua fez com que rebrilhasse uma faca com uma lâmina de mais ou menos um palmo de comprimento. Parei aterrorizado. Quando consegui tirar os olhos da faca e olhar na cara do sujeito vi que era ninguém menos do que… o poeta. Seus olhos faiscavam. “Agora terás que me dizer por que não vais publicar meus poemas!!!”

Dei dois passos para trás. Fiquei com vontade de correr, afinal, como dizia o personagem de Albert Finney em “À sombra do vulcão”(de John Huston), aquela seria “uma forma estúpida de morrer”. Mas correr seria uma imensa humilhação. Aos poucos, retomei a coragem e falei mansamente, sempre cuidando aquela lâmina ameaçadora. “Calma fulano (perdoem, mas não posso dizer o nome do cara), quem é que disse que eu não vou publicar o teu livro?”. Ele parou, fez um ar de espanto e deixou cair os braços. Ficou olhando aparvalhado para a faca e dizia baixinho: “o que que eu estou fazendo”. Enquanto ele fazia esta reflexão, eu saltei prá dentro do meu carro e saí cantando pneu. O coração batia na boca. Nunca mais vi o poeta. Pra dizer a verdade, nunca mais ouvi falar do poeta. Mas, para todos os efeitos, sempre que saio da editora mais tarde, anoitecendo – até hoje – sempre olho para os lados. Pode aparecer um assaltante, é verdade, mas aprendi a tomar cuidado, sobretudo, com os poetas incompreendidos.

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18. Roberto Marinho e Prestes com exclusividade na TV Bandeirantes

No dia 7 de março de 1990, aos 92 anos, morria Luís Carlos Prestes. Para marcar a data, o post da Série Era uma vez… uma editora desta semana será publicado excepcionalmente na segunda-feira e não na terça-feira.

Por Ivan Pinheiro Machado*

Paulo Perdigão, falecido em 2009, foi um dos grandes jornalistas e intelectuais brasileiros. Ganhava a vida programando os filmes da TV Globo e escrevendo sobre cinema no jornal O Globo. Mas escreveu um clássico da cultura brasileira, “Anatomia de uma Derrota”, o livro definitivo sobre a derrota do Brasil para o Uruguai na Copa de 1950. Este livro originou o premiado curta “Barbosa”, de Jorge Furtado. E mais: ele traduziu o livro intraduzível de Jean-Paul Sartre “O ser e o nada”. Pois bem. Perdigão era meu amigo e tinha quatro grandes obsessões intelectuais –  aliás, famosas entre os seus amigos –, a saber: Sartre, a final da copa de 1950, o filme “Shane” e a Rádio Nacional. Nós, da L&PM, editamos a maior parte de suas obsessões; um livro sobre o pensador francês, “Existência e liberdade”; o seu clássico sobre a Copa de 50, “Anatomia de uma derrota” e o livro sobre “Shane” (em português, “Os Brutos também amam”) cujo título era “Western Clássico”. Pois esta história começa quando Perdigão lançava justamente seu livro “Western Clássico” no terceiro andar do Shopping da Gávea no Rio de Janeiro. Uma quinta-feira de outubro, livraria “Timbre”. O ano era 1985 (início do primeiro governo democrático depois de 21 anos de ditadura). Estava muito calor e houve um problema de falta de luz que abalou o ar-condicionado. Às 8 da noite, já havia uma fila razoável de amigos e admiradores de Perdigão e resolvi dar uma volta pelo Shopping para refrescar. Ao chegar no primeiro andar, onde havia uma outra livraria (não lembro o nome), notei um certo burburinho, luz de TV, gente que parava e olhava para o interior da loja. Cheguei perto e vi que lá estava Luís Carlos Prestes, o “Cavaleiro da Esperança”, maior líder comunista do país.

Antonio Pinheiro Machado Netto, pai de Ivan Pinheiro Machado, e Luís Carlos Prestes

Eu havia conhecido Prestes em Porto Alegre, pois meu pai, ex-deputado do PCB na Constituinte de 1946 (cassado em 1947), era seu amigo. Pensei em chegar perto, me identificar e trocar umas palavras com o grande chefe da Coluna Prestes. Quando pensei em me aproximar, notei outro burburinho. Parei. Entrava na pequena e super-lotada loja o Dr. Roberto Marinho e sua esposa Lili Marinho. Velhos conhecidos, contemporâneos de juventude, política e história, Roberto Marinho soube que Prestes autografaria um livro coletivo sobre a Coluna Prestes e foi até a Gávea abraçá-lo. Parecia um encontro surreal. Os opostos se abraçando. Eu e todos os que ali estavam, na maioria simpatizantes de Prestes, velhos comunistas, jovens ativistas, pararam curiosos a observar aquela cena. Ouvia-se o zumbido de uma mosca na livraria. Um cinegrafista de TV e seu “pau de luz”, consciente da preciosidade da cena, acompanhava meticulosamente aquele encontro. Roberto Marinho falava com Prestes e olhava curioso para o cinegrafista, até que não resistiu e perguntou:

– O senhor é da nossa TV?

O cinegrafista meio sem jeito respondeu:

– Desculpe Dr. Roberto, mas eu sou da Bandeirantes…

– Não tem ninguém da Globo aí? Insistiu Roberto Marinho.

– Só estou eu aqui, Dr. Roberto. Desculpou-se o cinegrafista.

– Então, meu filho, por favor, filme eu e o Prestes, pois eu vou mandar pedir a fita pro Saad, já que não veio ninguém da Globo…

No outro dia, o Jornal Nacional apresentou em grande destaque o encontro entre Roberto Marinho e Luís Carlos Prestes, “velhos amigos”, segundo disse Dr. Roberto em seu depoimento ao repórter. Abaixo, no vídeo, se lia, “imagens gentilmente cedidas pela TV Bandeirantes”. Diz a lenda que Roberto Marinho interpelou pessoalmente a chefia de reportagem perguntando furioso: “Vocês querem ser mais realistas do que o rei?”.

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17. “Quando Brad Pitt fez o meu papel…”

*Por Ivan Pinheiro Machado

Heinrich Harrer estava muito à vontade naquele belo salão no Frankfurter Hoff, melhor hotel de Frankfurt e um dos mais aristocráticos da Alemanha. Na Feira Internacional do Livro de Frankfurt de 1999, ele curtia o incrível êxito internacional do seu livro “Sete anos no Tibet”, publicado com sucesso há mais de 45 anos e que acabara de ser subitamente re-catapultado à categoria de best-seller graças à  badalação em torno do recém-lançado filme de Jean-Jacques Annaud. Seu agente, Paul Marsh, falecido em 2009, organizara um coquetel convidando os editores dos quase 80 países que publicavam o livro (foi traduzido em 53 idiomas e, em 1954, quando lançado nos Estados Unidos foi best-seller com mais de 3 milhões de livros vendidos). Eu estava lá como editor brasileiro de Harrer. Ele tinha recém completado seus 86 anos e conversava individualmente com todos os editores presentes no coquetel. Quando chegou a minha vez, ele foi especialmente simpático ao saber que eu era brasileiro. Fez várias perguntas a respeito da realidade do país e me contou rapidamente a incrível aventura que ele viveu na Amazônia. Mr. Harrer decididamente não gostava de uma vida pacata. Depois de fugir de uma prisão na Índia, de atravessar o Himalaia a pé e passar sete anos no Tibet, decidiu explorar a  misteriosa Amazônia. Foi no ano de 1957 e, acompanhado de seu amigo, o príncipe Leopoldo III da Bélgica, subiu de barco o rio Amazonas até próximo de sua nascente no Peru. A aventura durou sete meses e ele pegou uma malária que, segundo disse “me acompanha até hoje”. Mais que a aventura amazonense de Mr. Harrer,  marcou-me uma frase sua a respeito do filme: “O Brad Pitt fez muito bem o meu papel. Não reclamo. A única restrição é que ele está muito sério e eu era mais expansivo…” Que tal?

Cena do filme “Sete anos no Tibet”

Pra quem já esqueceu, Harrer/Brad Pitt era alemão e chegou ao Tibet fugido de um campo de prisioneiros inglês na Índia em 1945. Lá, ele conheceu o jovem 14º Dalai Lama de quem foi durante sete anos uma espécie de tutor, ensinando línguas, geografia e relações com o Ocidente. O livro e o filme contam a estadia tibetana de Harrer encarnado por Brad Pitt. Dalai Lama está vivo (e bem vivo) defendendo a causa da independência tibetana. Heinrich Harrer foi também um grande defensor da causa e morreu em 2006 aos 93 anos na Áustria.

Harrer e o Dalai Lama

Na década de 1940, Heinrich Harrer foi um dos grandes esportistas alemães, atleta olímpico em esportes de inverno e alpinista famoso, tendo escalado grandes montanhas no Alasca, nos Andes, na África, Nova Guiné, Europa e Ásia. Seu nome, como esportista, chegou a ser explorado na propaganda do regime de Adolph Hitler. Mais tarde, ele reconheceu que cometera um grande erro, permitindo que associassem o seu nome ao nazismo e, logo após a guerra, Harrer reconheceu o mal que Hitler causou ao mundo.

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16. Millôr Fernandes vai ao pampa

*Por Ivan Pinheiro Machado

No início dos anos 80, Millôr Fernandes e seu amigo, o fotógrafo Yllen Kerr (já falecido e conhecido como o homem que criou a moda de correr na beira da praia no Rio de Janeiro) vieram a Porto Alegre para uma excursão às fronteiras vazias dos pampas. Nosso amigo Paulo Odone Ribeiro, que mais tarde seria deputado e presidente do Grêmio Foot-ball Portoalegrense, havia convidado a dupla carioca para passar a Semana Santa na sua fazenda, na fronteira com a Argentina, município de São Borja, um dos legendários Sete Povos das Missões. O Paulo Lima, eu – já editores do Millôr – e nossas respectivas mulheres da época, em dois carros Alfa Romeo Ti4 2300, levaríamos o pessoal. Naquele tempo, as Alfas eram fabricadas no Brasil e tinham um tanque de gasolina de 100 litros. É importantíssimo que os jovens saibam que, para economizar gasolina, era proibido por lei vender o precioso combustível em fins de semana e feriados (viram como é bom ditadura?). Como eram 700 quilômetros de Porto Alegre até a Fazenda Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e iríamos na Sexta-feira Santa, tínhamos que ter autonomia de combustível, pois não poderíamos reabastecer no caminho.

Naquele tempo, no interiorzão, não havia rede de eletricidade. A luz chegava através de um motor movido a óleo diesel, que era ligado ao anoitecer e desligado logo depois do jantar. Isto quer dizer que não havia televisão, nem o mundo era globalizado. Depois de 12 horas de viagem, chegamos na fazenda num final de tarde cinematográfico. Um verdadeiro céu “de aerógrafo”, como disse o Millôr na ocasião. Para abrir a porteira da estância veio um peão de bombachas, camiseta regata branca, palito nos dentes, sandálias havaianas com esporas atadas ao pé (esporas no “garrão”, como se diz na fronteira) e, naturalmente, um reluzente 38 cano longo na cintura. Andamos uma centena de metros até a sede da estância, fomos recebidos pelo Odone e sua mulher Niúra que nos levaram imediatamente para o galpão, centro nevrálgico de uma fazenda gaúcha. O galpão é basicamente o local onde fica o pessoal de serviço. Ali está o fogo de lenha de coronilha que jamais se apaga: esquenta a água do chimarrão, cozinha o assado e aquece o pessoal nas madrugadas frias. No Rio Grande, o galpão é cultuado como o lugar de socialização, onde rolam as conversas, os causos, enquanto o chimarrão roda de mão em mão. Pois sentamos. A peonada vestida a caráter, quieta, só observava aquela conversa animada e se divertia com o sotaque carioca dos visitantes. Subitamente, um daqueles peões aponta para o Millôr e pergunta naquele sotaque fronteiriço, quase puxado para um portunhol:

– O senhor é do Rio de Janeiro?

– Sim sou, respondeu simpaticamente o Millôr.

E o peão tascou sem rodeios:

– Conhece o Moreira?

Houve um silencio perplexo.

– Um gordo!– arrematou, fazendo um gesto com os braços que indicavam uma barriga acentuada.

– Mas… – gaguejou Millôr Fernandes espantado – o Rio é muito grande…

– Mas o Moreira é um tipaço – disse o homem –, onde ele chega todo mundo já conhece pela prosa. Ele não para de falar!

O Millôr pensou, pensou e resolveu sair-se diplomaticamente:

– Sabe, não estou me lembrando do Moreira…

Millôr de bombachas

Millôr Fernandes “pilchado” em 1979 – Foto: Ivan Pinheiro Machado

Para confirmar visualmente a história que narro a seguir, vocês podem ver Millôr Fernandes totalmente “pilchado”, como um autêntico gaúcho. Botas, bombachas, chapéu de aba larga, lenço no pescoço e a fundamental guaiaca, que é o cinturão que abriga o revólver e as facas. Em poucos dias, o grande intelectual carioca parecia um autêntico habitante dos pampas do extremo meridional brasileiro. Yllen Kerr, jornalista, fotógrafo, apreciador de esportes radicais e corredor de rua, causou furor entre a peonada ao montar de forma impecável um dos cavalos tidos como dos mais “brabos” do plantel. Yllen tinha servido no exército, na Cavalaria, e tinha grande perícia para dominar um cavalo.

No começo da tarde do domingo, estávamos todos vestidos desta forma radical, quando fomos convidados para acompanhar e peonada até a fazenda vizinha onde haveria carreiras (de cavalos) numa cancha reta. Era o grande programa domingueiro na região. Estávamos nos preparando para entrar na camionete, quando o velho peão que nos guiava apontou para a arma que Millôr levava (descarregada, naturalmente):

– O senhor vai levar a arma?

– Acho que vou, disse o Millôr, rindo, mas sem muita convicção.

– Pretende usar? Perguntou o peão.

– Claro que não!

– Então não leve.

E encerrou o assunto. Na fronteira, cancha reta e revólver são assuntos muito sérios…

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15. O Analista de Bagé

Por Ivan Pinheiro Machado*

“O Analista de Bagé”, de Luis Fernando Veríssimo, despontou para a fama e a glória na Feira do Livro de Porto Alegre de 1981. Em meio a uma onda de Sidney Sheldon, Morris West e Harold Robbins, o livro de um autor praticamente desconhecido no eixo Rio-São Paulo surgia como o mais vendido na Feira. Numa daquelas tardes animadas na Praça da Alfândega, eu estava na barraca da L&PM conversando sobre amenidades com a repórter do Jornal do Brasil Cláudia Nocchi quando ela me interrompeu.

Você já notou que, enquanto falamos, três clientes compraram o “Analista de Bagé”?

E era verdade. Estava vendendo muito. Tínhamos feito uma edição de 3 mil exemplares que se esgotara na primeira semana da Feira. Reeditamos rapidamente e “O Analista” já era o mais vendido segundo a lista que a Câmara Riograndense do Livro distribuía todos os dias. E cada vez vendia mais. Cláudia ficou impressionada e resolveu sugerir ao Rio de Janeiro uma matéria sobre o novo fenômeno editorial. O editor do Jornal do Brasil era o gaúcho Raul Riff e, seu filho Sergio Riff, era repórter do Caderno B. No começo dos anos 80, o Caderno B do Jornal do Brasil era a verdadeira bíblia da cultura brasileira. Saía no JB, todo mundo ficava sabendo. E não deu outra. Se houve ou não lobby gaúcho, não sei. Mas, no fim de semana seguinte, o “Analista” deu capa do caderno B, com matéria da Cláudia, resenha do Sergio Riff e até uma enorme caricatura do Luis Fernando ilustrando a página. Um mês depois, o livro já era o mais vendido no país. Aí foi a vez da Veja. Matéria de capa. E olha que poucas vezes um livro deu capa da Veja. Foi a consagração. E durante dois anos “O Analista de Bagé” foi o livro mais vendido em todas as listas de bestsellers dos jornais e revistas brasileiros.

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14. “O Ballet proibido”

Por Ivan Pinheiro Machado*

Quando eu era criança, lá nos anos 60, meu pai falava em Getúlio Vargas, Estado Novo, e para nós parecia que eram coisas passadas no período Paleolítico, há milhares de anos. Ele falava como se as coisas tivessem acontecido… ontem. No entanto, menos de uma década nos separava do suicídio de Vargas e da ditadura do Estado Novo. Eu imagino que você, que é jovem há menos tempo do que nós, tenha esta mesma sensação quando falo aqui neste blog sobre a ditadura militar. Perdoe-me, mas é impossível falar sobre o começo da L&PM sem falar da pré-história, como por exemplo, na ditadura implantada em março de 1964. Pois ela marcou nossa vida e nos perseguiu por mais de 10 anos, de 1974 quando foi fundada a editora até 1985 com o fim do governo do General Figueiredo.

As ditaduras alternam burrice e crueldade ou praticam as duas coisas ao mesmo tempo. Nós desafiamos a ditadura várias vezes. Claro que tínhamos medo, mas éramos muito jovens e não medíamos muito bem as consequências. E houve várias.

Em 1976, publicamos um livro que revelava de forma quase didática a face burra e totalitária da ditadura, “O Ballet Proibido”, do então senador pelo Rio Grande do Sul Paulo Brossard de Souza Pinto. Neste livro foi reproduzido o discurso do senador Brossard no plenário do Congresso, onde ele protestava contra a proibição da transmissão de uma apresentação do Ballet Bolshoi pela TV Globo. O Bolshoi, a mais famosa companhia de ballet do mundo, completava 200 anos e encenaria “Romeu e Julieta”. Uma superprodução liderada pela BBC de Londres, CBS americana e a Teleglob alemã enviaria para 112 países o grande espetáculo protagonizado por 300 bailarinos. Pois a TV Globo anunciou durante semanas o grande evento e, um dia antes, recebeu um comunicado da Censura Federal assinado por um coronel (assinatura ilegível) proibindo terminantemente a transmissão do acontecimento, considerado “subversivo”.

Para que você entenda a lógica dos milicos: o Bolshoi era um ballet russo e a Rússia fazia parte da então União Soviética, cujo regime era comunista; portanto era uma apresentação comunista. O governo proibiu a TV Globo de transmitir e, pior, proibiu a TV Globo de divulgar que tinha sido proibida a transmissão. Quando milhares de pessoas sentavam-se em frente a TV para assistir o melhor ballet do planeta, simplesmente, sem explicação nenhuma, entrou uma comédia holywoodiana de segunda ou terceira categoria.

Brossard ocupou a tribuna do Senado dias depois e incendiou o plenário com um discurso inflamado denunciando o fato patético da censura. Pela primeira vez, o Brasil ficava sabendo que a ditadura havia proibido o ballet e proibido a TV de dizer que o ballet estava proibido. Numa passagem de seu discurso ele diz ironicamente:

(…)“O Ballet Bolshoi, sabem os menos incultos é uma respeitável e secular instrumentação internacional de dança. É tão marxista quanto o seria Leon Tolstoi, e o germe da subversão comunista está presente nos compassos de sua dança como poderia estar vivo nas barbas do Czar Nicolau II. Sem medo de exagero, pode-se garantir que ele é tão soviético, quanto Shakespeare é inglês. Quer dizer: trata-se de um patrimônio cultural da humanidade que não pode ser aprisionado pelo realismo socialista lucakseano nem vai deixar de falar a linguagem universal da dança por vontade de  uma política, seja a nossa tropical, seja a temperada nas estepes da União Soviética”(…)

A L&PM publicou este discurso, juntamente com outros igualmente irreverentes e críticos do senador Brossard, menos de um mês depois de proferido. E quando foi aventada a hipótese de aprender o livro, nos agarramos a um eufemismo legal. O discurso estava já oficializado nos anais do Senado da República, portanto seria um grande escândalo proibir a manifestação de um senador que já havia se tornado pública por constar dos anais… Hoje é quase um delírio imaginarmos que um livro de discursos seria a única forma de contestar os atos de um governo. “O Ballet Proibido” tornou-se um clássico, pois representa magnificamente este período em que nós, editores, publicávamos livros como único meio de criticar o poder. E este desafio à truculência do governo transformou “O Ballet Proibido” em um Best-seller a ponto de encabeçar por várias semanas a lista dos mais vendidos da revista Veja.

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o décimo quarto post da Série “Era uma vez… uma editora“.

13. Mais de mil pessoas na sessão de autógrafos de Eduardo Galeano

Por Ivan Pinheiro Machado*

Na Feira do Livro de 2008, Eduardo Galeano veio a Porto Alegre para lançar seu livro “Espelhos”, então recém editado na Espanha e em toda a América espanhola. Galeano é um homem gentil, calmo, um papo agradabilíssimo. Nos poucos dias em que ele esteve aqui em Porto Alegre na companhia de seu velho amigo, o carioca Zé Fernando Balbi, tivemos noitadas memoráveis. Junto com a equipe da L&PM, fechamos (no sentido de ser o último cliente) vários bares em conversas deliciosas e bem humoradas. Galeano gosta de Porto Alegre, seus bares e restaurantes. Evidentemente que, como bom uruguaio, não entra em churrascaria fora do seu país. Então, nosso roteiro gastronômico gaúcho foge do circuito “tradicionalista”. Entre almoços e jantares, ele fez o que devia; deu entrevistas e compareceu à leitura de seu livro e sessão de autógrafos que foi realizada no Teatro da Assembléia Legislativa. Na ocasião, ele foi entrevistado pelo jornalista Ruy Carlos Ostermann no palco do teatro, dentro da programação de “Encontros com o Professor”.

Aquilo que seria uma conservadora entrevista com um grande intelectual, acabou se transformando numa verdadeira comoção no centro da cidade.  Naquele dia ensolarado de outubro, Galeano teve o seu momento pop star. Uma multidão acumulava-se em frente ao prédio do teatro da Assembléia Legislativa. Foi permitida a entrada de cerca de 1.000 pessoas em um auditório onde cabiam 800. E mais de duas mil ficaram na rua. A solução que a administração da Assembléia encontrou, foi agilizar a transmissão ao vivo pela TV Assembléia, com a instalação de um telão em frente ao teatro que retransmitiu a palestra/entrevista para a multidão que ficou do lado de fora. Ele respondeu às perguntas do professor Ostermann e com sua voz pausada e musical leu as belas, líricas e ao mesmo tempo contundentes passagens de “Espelhos”. Foi muito aplaudido. No final, iniciou sua sessão de autógrafos. Quatro horas depois,estava muito cansado (ele dá autógrafos em pé e conversa com cada um dos leitores). Pediu-me para parar, pois não aguentava mais, queria ir embora para o hotel. A fila era imensa. Fiquei imaginando o que fazer com a multidão que se acotovelava em frente ao palco há horas, com o livro na mão, esperando a sua vez. Um editor tem que estar preparado para “administrar” uma saia justa deste porte… Tomei um ar, subi no palco e disse mais ou menos isso: “Pessoal, o Galeano está há mais de 4 horas aqui, em pé e está muito cansado. Pedimos desculpas, mas vocês que gostam dele, vão ter que compreender. Por favor, aqueles que quiserem o autógrafo, deixem o seu livro conosco, com o nome, ele autografará no hotel e os livros estarão, devidamente autografados, à disposição dos seus donos a partir das 15 horas de amanhã na barraca da Câmara Riograndense do Livro na Praça da Alfândega”. Obviamente fui vaiado. Muito vaiado. Depois de vaias e xingamentos, acabaram deixando mais de 300 livros que foram colocados em seis caixas e levados  ao hotel onde Galeano estava hospedado. Ele autografou todos os livros que foram entregues para os seus donos no dia seguinte. Um exemplo de ordem (e sorte), pois dos trezentos, não faltou nenhum e não houve nenhuma reclamação.

Eduardo Galeano é um dos grandes autores latino americanos e nós temos orgulho de editar toda a sua obra no Brasil. Em 2010, a L&PM publicou o seu grande clássico (era o único livro que não tínhamos em nosso catálogo), “As veias abertas da América Latina”, em edição convencional e em pocket, numa nova tradução do grande escritor Sergio Faraco. Também em 2010 republicamos em livro de bolso, numa caixa especial, a trilogia “Memória do Fogo” (“Nascimentos”, “As caras e as máscaras” e “O século do vento”).

Para assistir a entrevista de Eduardo Galeano com Ruy Carlos Ostermann, clique na imagem abaixo:

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o décimo terceiro post da Série “Era uma vez… uma editora“.

12. Vítimas do Plano Cruzado

Por Ivan Pinheiro Machado*

O Eduardo “Peninha” Bueno, cujo post anterior eu tracei um rápido perfil, me acompanhou várias vezes à Feira Internacional do Livro de Frankfurt. Como eu já disse, vivenciamos dezenas de histórias hilárias pelo mundo afora. Claro que houve algumas meio desagradáveis, mas nenhuma tão sinistra como esta que eu vou contar.

Era o auge do Plano Cruzado em 1985. O “cruzado” era a moeda da vez e os preços estavam congelados. Nossa moeda era fortíssima e todo o Brasil viajava. Você andava pela rua em Paris, Nova York, Roma e só se ouvia português… Os aeroportos estavam apinhados de brasileiros excitados. Enfim, tudo um pouco parecido com o que acontece hoje em dia. Trabalhamos duro em Frankfurt, passamos uns dias em Paris e fomos para Madrid onde pegaríamos o vôo de volta via Ibéria. Havia uma verdadeira multidão (80% eram brasileiros) em frente aos balcões da Ibéria. Mostramos nossa passagem para a atendente, ela olhou no “sistema” e lascou: “vocês não estão no vôo”. E mais não disse. Ou melhor, nem nos olhou, mandou passar o próximo e nós ficamos gritando em vão no meio de uma multidão totalmente indiferente. Começava aí um drama que duraria 50 horas. Ou seja, ficamos mais de dois dias feito zumbis, nos arrastando pelo famigerado aeroporto de Barajas tentando falar com alguém que nos desse atenção. Quando estávamos já praticamente desesperados, definitivamente invisíveis, Deus, na sua infinita bondade nos mandou um anjo salvador; era de Minas Gerais e trabalhava para a legendária Stella Barros Turismo. Penalizada pelo nosso miserável estado de decomposição depois de 50 horas perambulando pelo aeroporto, dormindo nos bancos de madeira, ela milagrosamente conseguiu nos colocar num vôo da Aerolineas Argentinas para Buenos Aires, com escala em Nova York para troca de aeronave. Só que não tínhamos visto para entrar nos EUA. Portanto, quando descemos do avião em NY, fomos levados escoltados diretamente para a emigração e colocados numa espécie de cela guarnecida por um daqueles rapazes afro-americanos, tipo um negrão de 2 metros de altura. Um gentil policial que nos disse com um sorriso sádico: “esperamos que o pessoal da Aerolineas Argentinas venha buscá-los, se não…”. Ficou aquela ameaça no ar. A temperatura era de 2 graus em Nova York. O Peninha e eu estávamos em mangas de camisa, pois ainda fazia calor em Madrid.  O detalhe é que, por coincidência, a sala dos quase-deportados, era o único lugar do aeroporto que não tinha calefação. Passaram-se 10 minutos, meia hora, 1 hora e quando começou a bater o desespero, eis que, como uma visão do paraíso, surgiu uma lourinha de olhos azuis, sorridente, que dirigiu-se a nós numa maravilhoso sotaque portenho: “Vamos?”. E lá fomos nós com as ilusões no ser humano restauradas até beijar o solo abençoado do aeroporto Salgado Filho em Porto Alegre depois de quatro dias com a mesma roupa, sem banho, sem cama e sem fazer a barba.

Ivan Pinheiro Machado, Mirian Goldfader, Eduardo Bueno e Lais Pinheiro Machado, Paris, 1985 – Foto tirada pouco antes do embarque para Madrid

O Plano Cruzado foi a primeira grande euforia econômica dos brasileiros. Um congelamento artificial paralisou os preços e a economia, depois de uma inflação beirando os aterrorizantes 40% ao mês. Com os preços congelados e o dólar quase um por um, todos viajavam e compravam muito. Mas a alegria durou pouco. Demagógico, improvisado, “a farra” do Plano Cruzado logo começou a fazer água. Desabastecimento, mercado negro, especulação, em pouco tempo tudo voltou a ser como era antes. O monstro inflacionário atacou novamente! Velho Sarney! O périplo de horrores econômicos que vivemos a partir do fracasso do “Plano Cruzado” acabou levando à presidência da república o famoso Fernando Collor de Mello. E esta história todos conhecem; confisco da poupança, corrupção… A curiosidade, que de certa forma é uma fábula deste país, é que, passados mais de 20 anos, Sarney e Collor – um responsável pelo maior índice de inflação da história do Brasil e o outro condenado no processo de impeachment  –  atualmente são senadores, apoiaram Lula apaixonadamente e circulam pelos corredores do congresso como se nada tivesse acontecido.

 
 

11. O brinco do Peninha

Por Ivan Pinheiro Machado*

Eduardo Bueno, dito Peninha, é um astro da cultura pop brasileira. Seu livro “A viagem do descobrimento” (Ed. Objetiva) foi um mega bestseller, assim como “Brasil: terra à vista” (L&PM) e muito outros. Peninha foi o inventor do vitorioso gênero “história para todos”. A partir do seu livro sobre o descobrimento do Brasil, os leitores brasileiros passaram a ler a história com outro sabor. E mais que isso. Literalmente, descobriram o Brasil. Tanto é verdade que a fórmula foi imediatamente incorporada ao mercado editorial brasileiro. Hoje, os livros sobre personagens, fatos e datas brasileiras frequentam com naturalidade as listas dos mais vendidos. Peninha, além de jornalista, escritor e historiador, é um grande especialista em Bob Dylan, Grêmio Futebol Portoalegrense e literatura beat, entre outros gêneros que agora não me ocorrem. Estou dizendo tudo isso porque Eduardo Bueno trabalhou aqui na L&PM entre 1984 e 1988. Delirante, engraçado e, digamos, exagerado, Peninha é, além de um intelectual respeitado, uma figura inesquecível. Tem quase 1,90 de altura e, para dizer o mínimo, se caracteriza pela irreverência. Quando ele chegou na editora era um jovem repórter esportivo desencantado com a imprensa e ostentava como grande realização intelectual a tradução de “On the Road” de Jack Kerouac, publicado na época pela editora Brasiliense e, desde 2002, por esta editora. Peninha deixou sua marca na L&PM. Nós já publicávamos Bukowski e, por inspiração dele, criamos duas coleções que até hoje são emblemáticas do nosso trabalho, uma de história, com fontes primárias, como Os Diários de Cristovão Colombo, Pigafetta, Cabeza de Vaca e a famosa coleção “Alma beat”. O resultado deste trabalho é que, até hoje, a L&PM transita nesta faixa de “transgressão”, sendo a editora de todos os Kerouac, Bukowski, Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Gary Snyder, Neal Cassidy e, modernamente, Hunter Thompson. Lá nos primórdios da editora – a era pré-Peninha ­–, já estabelecíamos esta vocação com a coleção “Rebeldes e malditos” que publicou (e também são publicados até hoje) Rimbaud, Baudelaire, Arthaud, Alfred Jarry, Van Gogh, Téophile Gautier, Appolinaire, De Quincey, entre outros. Em 1988, Peninha saiu da L&PM e foi para o mundo. Publicou dezenas de livros importantíssimos e está entre os principais escritores brasileiros. Mesmo sem um contato profissional mais intenso posso dizer que sou seu amigo e, até hoje, afirmo que os quatro anos em que ele trabalhou aqui tiveram, como dizia o rei Roberto Carlos, “muitas emoções”. Andamos várias vezes pelo mundo, representando a L&PM nas Feiras de Frankfurt, Paris, Londres, Buenos Aires. E foi numa dessas viagens que aconteceu uma das tantas e hilárias aventuras que vivemos juntos. Essa que agora conto aqui.

Foi na primeira vez que ele me acompanhou na sóbria Feira Internacional do Livro de Frankfurt. Lá, sempre se trabalhou de terno e gravata. Até hoje. Na quarta-feira de manhã cedo, eu estava pronto para enfrentar os quilométricos corredores da Buchmesse. Lembro que o primeiro encontro era estratégico, pois seria com um agente inglês, super-formal que tinha livros muito importantes e pela primeira vez recebia a L&PM em Frankfurt. Estávamos no Hotel Ramada e, perto das 9h, impecável num terno escuro e gravata, bati na porta do quarto do Peninha. Quando ele surgiu, o quadro era o seguinte: vestia uma camisa de cetim roxa, sem paletó e um brinco com um pingente. Fiquei em pânico, imaginando a cara do inglês que encontraríamos dali a meia hora… Falando mansamente, argumentei e pedi que ele colocasse uma camisa branca e um blazer. Dei uma explicação rápida sobre o formalismo da feira, etc. Ele me viu todo engravatado e, com relutância, cedeu. Vestiu uma camisa e o blazer. Sem gravata, é claro, mas mesmo assim, já era um grande lucro. Aí eu olhei pro brinco e disse: “Peninha, bacana o seu brinco, deixa eu dar uma olhada”. Ele docilmente me deu o brinco. Eu olhei, vi que era uma simples bijuteria, fui até o banheiro, joguei no vaso e puxei a descarga. Não preciso descrever a cara do Peninha… Sei que eu não faria isto atualmente, mas no fim das contas, a verdade é que temos negócios com o sisudo inglês até hoje… e, o que é mais importante, uma boa história pra contar.

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10. Bukowski levanta o tapete e mostra a sujeira

Por Ivan Pinheiro Machado*

Charles Bukowski é publicado pela L&PM há quase três décadas. É por isso que o velho safado é super-identificado com a editora que publicou até agora quinze livros seus, incluindo “Delírios Cotidianos”, a bela adaptação de seus contos para HQ feita pelo desenhista alemão Mathias Schultheiss. Nesse ano de 2011, vamos publicar finalmente os seus primeiros romances, “Cartas na rua” e o incensado “Mulheres”. Aí teremos em nosso catálogo todos os seus romances, os principais livros de contos, alguns de suas melhores obras de poemas e o antológico “diário” publicado postumamente: “O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio”. Bukowski conquistou a admiração dos jovens de várias gerações; daqueles que são jovens há muito tempo e daqueles que são jovens recentemente. Esta permanência no coração dos leitores se deve a uma obra descarnada, sobre a qual paira a irresistível aura de transgressão. Há malucos que se tornam santos com o passar do tempo como Van Gogh, Rimbaud, Baudelaire, Artaud, Thoureau, Kerouac, Bukowski, entre dezenas de outros. E esta maravilhosa capacidade da juventude de cultuar aqueles que descarrilham dos trilhos do sistema transforma artistas marginalizados em clássicos. Desde que morreu, em 1994, a obra de Heinrich Karl Bukowski, dito Charles Bukowski, tem corrido o mundo. O bêbado inconveniente capaz de performances desastrosas, completamente embriagado em frente às câmeras da TV, passou a ser respeitado.

O lado sombrio do sonho americano

Nasceu na Alemanha e criou-se nos EUA, filho de um militar de origem alemã que lhe aplicava surras terríveis. Sua prosa e seus poemas “cortam como aço de navalha” e sua obra sistematicamente é o contraponto brutal ao “american way of life”. Foi 1982 que ouvimos falar de Charles Bukowski aqui na L&PM. Curiosamente, ele começava a fazer sucesso na Itália e a agente literária Ana Maria Santeiro, que representava a agência Carmen Balcells no Brasil, me passou um exemplar do livro “Erections, ejaculations, exhibitions and general tales of ordinary madness”. Fiquei perplexo com o título e fascinado com a violência dos contos. Na mesma época, o cineasta italiano Marco Ferreri fez um filme baseado no livro que chamava-se “Crônica de um amor louco”(em italiano “Storie di Ordinaria Folia”), com Ben Gazzara e a maravilhosa Ornella Muti que fazia o papel da “mulher mais linda da cidade”, um dos contos do livro. Rapidamente, a fama do filme espalhou-se e ele virou um verdadeiro “cult” da contra-cultura. Nós compramos os direitos do livro para o Brasil e o publicamos em dois volumes; o primeiro com o título do filme “Crônica de um amor louco” e no segundo adaptamos o título original para “Fabulário geral do delírio cotidiano”. Até hoje publicamos estes livros, agora na Coleção Pocket.

Em 1986, eu estava na Feira Internacional de Frankfurt com o dublê de jornalista e historiador Eduardo Bueno (que na época trabalhava na L&PM) quando conhecemos John Martin, o dono da legendária Black Sparrow, que publicou todos livros do velho Buk, com exceção de “Erections, ejaculations…” que saiu pela editora e livraria City Lights de San Francisco, pertencente até hoje ao poeta beat Lawrence Ferlinghetti. Martin era um grande editor. Foi ele que percebeu o talento de Bukowski e estimulou-o a largar o emprego nos correios e dedicar-se a literatura. Hoje, quase todos os seus livros estão na Coleção L&PM POCKET e o baixo preço é um apelo a mais para que os jovens o leiam. Bukowski não perdoa, não alivia. É sempre violento, irreverente, não tem nenhuma ilusão. É bom que os jovens o leiam. Ele é uma alternativa ao mundo idealizado que virou moda depois da vitória final da civilização do dinheiro e da globalização. Bukowski escancara o lado sombrio da nossa sociedade. Ele levanta o tapete e mostra a sujeira. É a voz dos desvalidos, dos perdedores, dos desempregados, dos doentes, dos falidos, dos feios, das putas, dos bêbados. Não tem nenhum charme, mas a violência que jorra das suas páginas é tão verdadeira que não tem como ficar indiferente.

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