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Scliar e o Rio Grande

Luiz Antonio de Assis Brasil*

O Rio Grande do Sul é, desde suas primeiras representações simbólicas, uma metáfora e uma alegoria intelectuais que se organizam a partir da evocação de um antigo tipo luso-platino-rural, que acabou por suplantar as outras vertentes constitutivas de sua presente identidade. Como qualquer construção validada pelos extratos dominantes, essa alegoria teve, até pouco, sua hegemonia incontestada, havendo raro espaço de diálogo com outras representações concomitantes, nomeadamente as que decorrem dos surtos imigratórios dos séculos 19 e 20.

Nesse conjunto de fatores superpostos – e, não raro, conflitantes –, a obra de Moacyr Scliar avulta por ser aquela que optou por uma via alternativa que instituiu entre nós uma reflexão a que não estávamos acostumados: a de que somos humanos, antes de gaúchos.

Alguma crítica por vezes diz que o componente judaico seja a face mais visível e representativa de sua obra; trata-se, esta, de uma visão pobre, porque, antes de tudo, Scliar traz para nossa literatura uma via inesperada que aparece não como contraponto, mas como justaposição ao tipo hegemônico. Ambas são perspectivas construídas e, por isso, habitam a mesma legitimidade.

Outro viés referido pela crítica como essencial é o veio fantástico de seus romances, novelas e contos. Na verdade, trata-se de outra dicção para a mesma universalidade. Se nosso fantástico está presente já desde Lendas do Sul, este mesmo fantástico é um dado previsto pela cultura e pela mitologia; já o fantástico de Scliar é criação pura, isto é, provém de uma fabulação exclusiva e que não se confunde com qualquer outra preexistente mitologia.

Essas duas circunstâncias temáticas de Scliar – a judaica e a fantástica – significam, no cerne, o alargamento ontológico de uma literatura que se debatia entre seus que-fazeres irremediáveis e miúdos, vítima da estéril dicotomia pampa-cidade.

A obra de Scliar talvez seja a mais feliz investida nos domínios de uma universalidade moderna, embora tardia em termos regionais, e que precisou desse escritor de exceção para impor-se como possibilidade estética.

O constructo intelectual que é o Rio Grande, dessa forma, adquirirá, de agora em diante, uma obrigatória nuança, não a desfazê-lo, mas a matizá-lo. Com isso ganha-se em colorido e diversidade, até que outras obras surjam a transformar esse quadro pois, como sabemos, a cultura e a literatura se definem como processo que estará sempre descontruindo o que antes construiu.

*Luiz Antonio de Assis Brasil é escritor e Secretário de Cultura do Estado do Rio Grande do Sul. Este texto foi publicado originalmente no Segundo Caderno do Jornal Zero Hora em 17 de junho de 2013.

Feira do Livro de Porto Alegre foi muito além dos tons de cinza

A Câmara Riograndense divulgou ontem o balanço da 58ª Feira do Livro de Porto Alegre. Durante seus 17 dias, o evento recebeu 1,3 milhão de pessoas e foram vendidos 411.056 livros. Já a lista dos títulos que mais venderam ficou a cargo do Jornal Zero Hora – já que a Câmara abandonou a prática de mostrar os preferidos do público.

Uma semana antes do final da Feira, Zero Hora percorreu as 106 bancas da Área Geral para elaborar o ranking. Os livreiros foram solicitados a informar os três livros nacionais e três internacionais mais procurados. Com a divulgação de que os mais vendidos da literatura nacional eram David Coimbra com Uma história do mundo e Martha Medeiros com Um lugar na janela, estes títulos da L&PM Editores passaram a ter uma procura ainda maior e fizeram com que a Feira do Livro ganhasse outras cores além dos “50 tons de cinza”.

É bom lembrar que, em meio a tantas opções de livros, a lista de mais vendidos funciona como uma indicação ao leitor que, muitas vezes, sente-se perdido no mar de títulos que vê pela frente.

Martha Medeiros autografou por quase quatro horas na Feira do Livro de Porto Alegre

A fila de David Coimbra também durou muitas horas e seu livro já está na terceira edição

David Coimbra e o novo livro de Juremir Machado da Silva

A orquídea e o serial killer    

Por David Coimbra*                          

Todo mundo conhece, ou devia conhecer, a pena ferina, sarcástica, iconoclasta e corrosiva do Juremir Machado da Silva. Ou será que, em tempos de pós-modernidade, deveria dizer o teclado ferino, sarcástico, iconoclasta e corrosivo? Bem. O fato é que é assim que o Juremir escreve, embora pessoalmente ele seja uma moça de gentileza. Agora, nesta Feira, ele está lançando um livro de crônicas pela L&PM, A orquídea e o serial killer, que é tudo isso: ferino, sarcástico, iconoclasta e corrosivo. São 100 crônicas que precisam ser lidas e relidas. Mas, na abertura do volume, o Juremir mostra uma faceta pouco conhecida do seu trabalho: ele mostra que é poeta. Vou reproduzir um naco do poema de apresentação do livro, que também é uma espécie de profissão de fé. O resto? Leia o livro.

Não serei o poeta de um mundo novo.
Tampouco serei o cantor do meu povo.
Não falarei jamais algo sublime.
Praticarei sempre o mesmo crime…
Farei poesia sem poesia
Romance sem personagem,
Teatro sem maquiagem.
Nunca voltarei à Antiguidade,
Nem mesmo à velha modernidade.
Ano depois de ano,
Rasgarei a fantasia,
Em nome do cotidiano.

* Texto originalmente publicado no Jornal Zero Hora, na Coluna “O Código David”, de David Coimbra, em 04 de novembro de 2o12.

O triste fim de Edgar Allan Poe

Edgar Allan Poe morreu em 7 de outubro de 1849. O escritor das histórias fantásticas e sombrias, dos contos extraordinários e repletos de mistérios influenciou autores como Conan Doyle, Agatha Christie, G. K. Chesterton e Jorge Luis Borges. Em sua coluna do dia 7 de outubro de 2012,  publicada no Jornal Zero Hora, o jornalista e escritor David Coimbra, autor do recém lançado Uma história do mundo, escreveu sobre o dramático fim do grande Poe:

Histórias Extraordinárias – Por David Coimbra*

Num domingo como hoje, 7 de outubro como hoje, o grande Edgar Allan Poe morreu por causa de uma eleição como a de hoje. Conta a lenda que cabos eleitorais o embriagaram e o arrastaram de uma circunscrição eleitoral a outra, a fim de que votasse várias vezes no mesmo candidato. Depois de muita bebida diferente e muito voto igual, Poe foi deixado numa rua de Baltimore. Encontraram na sarjeta no dia 4 de outubro, febril e desfalecido. Levaram-no para um hospital. Passou quatro dias delirando e morreu, miserável, aos 40 anos de idade.

Se é verdade a história dos cabos eleitorais assassinos, também é verdade que eles só conseguiram fazer isso com Poe porque Poe era um alcoólatra incurável. Bebia sem parar, embriagava-se com um único copo de vinho e, às vezes, ingeria álcool puro, tudo para escapar da melancolia. No entanto, foi a melancolia que o tornou imortal, porque só a dor torna um homem imortal. Poe casou com uma prima que tinha apenas 13 anos de idade – nos anos 30 do século 19 isso não era pedofilia. Como vivessem muito mal, sem ter dinheiro nem para comer, ela morreu de tuberculose. Para ela, Poe teceu um poema tão triste quanto terno:

Pois a lua jamais brilha sem trazer-me sonhos
Da bela Annabel Lee.
E as estrelas jamais surgem sem que eu sinta os brilhantes olhos
Da bela Annabel Lee.
E, assim, durante toda a maré noturna, deito-me ao lado
Da minha querida – minha querida –, minha vida e minha noiva
Em seu sepulcro junto ao mar,
Em sua tumba junto ao rumoroso mar.

Leia Histórias Extraordinárias, e beba um pouco da beleza sombria de Edgar Allan Poe.

* Este texto foi originalmente publicado na pg. 46 do Jornal Zero Hora de 7 de outubro de 2012, na coluna “O Código David”

A Coleção L&PM Pocket publica cinco títulos de Edgar Allan Poe.

Morre Universindo Díaz, um dos uruguaios sequestrados na Operação Condor

O nome do historiador uruguaio Universindo Díaz pode não soar familiar para a maioria dos brasileiros que nasceu no pós ditadura. Mas, hoje, um dia após sua morte, ele merece ser lembrado por todos. Díaz faz parte da história de um tempo infeliz em que o governo militar punia os discordantes com tortura, desaparecimento e morte. Faleceu no domingo, 02 de setembro, aos 60 anos, vítima de câncer. Mas seu nome continuará vivo graças ao livro Operação Condor: o sequestro dos uruguaios, de Luiz Cláudio Cunha. Lançado em 2008 pela L&PM Editores, a obra conta a história do sequestro de Universindo Díaz e da também uruguaia Lílian Celiberti, ocorrido em Porto Alegre no ano de 1978 em uma ação dos órgãos de repressão do Uruguai e do Brasil na sinistra Operação Condor fundada em 1975 no Chile de Pinochet.

Fotos de Universindo e Lílian em 1978

O jornal Zero Hora, em matéria publicada hoje, 3 de outubro, explica o que veio a ser essa operação cujo nome, Condor, fazia referência à típica ave dos Andes, famosa pela astúcia na caça às suas presas.

Morre Universindo Díaz, um dos uruguaios

Sobrevivente da ditadura uruguaia, pela qual foi sequestrado em Porto Alegre em 1978 durante uma operação conjunta com forças brasileiras, sendo barbaramente torturado, o historiador Universindo Rodríguez Díaz, 60 anos, morreu neste domingo em Montevidéu  após uma luta de seis meses contra um câncer na medula.

Universindo deixa o filho, Carlos Iván Rodríguez Trías, e a ex-mulher Ivonne Trías, que cuidavam dele durante a doença.

Mesmo após ter identificado o câncer em janeiro passado, o historiador mantinha intactos seus planos de publicação de livros e criação de documentários. Com a abertura dos arquivos da repressão uruguaia, procurava por informações sobre as vítimas da ditadura, na incansável tarefa de resgatar a história dessa época sombria no Uruguai e nos países vizinhos.

— O que ele não previa era morrer — diz o amigo Jair Krischke, do Movimento de Justiça e Direitos Humanos.

Krischke esteve pela última vez com Universindo no início de julho, em Montevidéu. Na época, o uruguaio estava bem e falou de seus projetos. A recaída fatal ocorreu no último sábado. Krischke recebeu um e-mail da ex-mulher do historiador que o prevenia sobre o que poderia acontecer em seguida. Universindo passara por um transplante de medula e estava com nível zero de glóbulos brancos no sangue.

Mesmo torturado ao longo dos cinco anos em que passou preso, Universindo não demonstrava revolta. Entrou com um processo contra seus algozes ainda durante a ditadura. A ação foi bloqueada pela anistia uruguaia, mas o atual presidente, José “Pepe” Mujica, permitiu a reabertura das 80 investigações sobre crimes no período de exceção. Um deles é o de Universindo e sua companheira do Partido por la Victoria del Pueblo (PVP), Lílian Celiberti, também sequestrada em Porto Alegre, ao lado dos filhos dela, então com três e oito anos.

— Universindo não tinha mágoas. Estava de bem com a vida, era apaixonado pela sua profissão. O Uruguai perdeu um filho ilustre, um homem bom que honrou a tradição charrua de não se entregar — afirmou Krischke.

O sequestro

Porto Alegre entrou na rota da Operação Condor em 17 de novembro de 1978, quando se consumou o sequestro dos uruguaios Lílian Celiberti e Universindo Díaz. Perseguidos pela ditadura militar do Uruguai, os dois tentavam se esconder num apartamento da Rua Botafogo, no bairro Menino Deus. Foram capturados por policiais gaúchos, chefiados pelo delegado Pedro Seelig, e agentes uruguaios que tiveram permissão para entrar no território brasileiro.

À época, não se imaginava que o seqüestro era uma típica ação da Condor — a aliança secreta criada pelas ditaduras da Argentina, do Chile, do Brasil, do Uruguai e do Paraguai para caçar opositores políticos além das fronteiras. Cogitou-se que fosse somente uma cooperação eventual entre o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e a Companhia de Contrainformações do exército uruguaio. Não era.

Lílian e Universindo foram interrogados e torturados na Capital gaúcha, sofrendo a primeira etapa do ritual Condor. Enfrentaram a segunda fase, o traslado até os calabouços do Uruguai. Escaparam da provável solução final — a morte e o desaparecimento nas águas do Oceano Atlântico ou do Rio da Prata — graças ao repórter Luiz Cláudio Cunha e ao fotógrafo J. B. Scalco, que descobriram e denunciaram o crime nas páginas da revista Veja.

A operação Condor

O que foi
Organizada no final de 1975, em Santiago do Chile, a Operação Condor sistematizou as cooperações eventuais já existentes entre as ditaduras do Cone Sul. O general Augusto Pinochet entendia que os governos fardados deveriam agir de forma articulada contra o que julgava ser a “ameaça internacional do comunismo”. Agindo além das fronteiras, a Condor assassinou um ex-presidente de República (o boliviano Juan José Torres), dois parlamentares uruguaios (Zelmar Michelini e Héctor Gutiérrez Ruiz), um general e ex-ministro (o chileno Carlos Prats), um ex-chanceler (o chileno Orlando Letelier) e centenas de opositores políticos.

Países participantes
Principalmente Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Chile e Bolívia.

Objetivo
Neutralizar os grupos guerrilheiros de esquerda opositores aos regimes militares de direita, tais como Tupamaros (Uruguai), Montoneros (Argentina) e MIR (Chile).

Estratégia
Unificar esforços de todos os aparatos repressivos para combater os focos de resistência.

Papel dos EUA
Tinha conhecimento, conforme demonstram documentos secretos divulgados pelo Departamento de Estado em 2001

Por que Condor
Porque é a ave típica dos Andes, famosa pela sua astúcia na caça as suas presas.

Quando ocorreu
Iniciou-se na primeira metade dos anos 70 e terminou em meados dos anos 80.
Chega a 100 mil o número de mortos e desaparecidos no continente

“Um trem para a Suíça” de David Coimbra: uma importante reedição

David Coimbra é um dos melhores textos da imprensa brasileira. Sua base é o jornal Zero Hora de Porto Alegre, mas seus livros têm amplo trânsito pelo Brasil inteiro. Inclusive seu romance histórico Canibais serviu como base para uma produção da TV Globo em 2010. Cronista, romancista, David é um estudioso de história e acaba de entregar para a L&PM seu projeto mais ambicioso: o primeiro volume de uma espécie de “história do mundo”, ainda sem título definitivo. Neste livro ele consegue juntar emoção, erudição, bom humor e muita informação. Aguardem.

Enquanto este novo livro não vem, a L&PM está reeditando seu trabalho mais recente, Um trem para a Suíça. Um delicioso conjunto de crônicas sobre o cotidiano e suas muitas viagens pelo mundo inteiro. David tem muito leitores e é consagrado no sul do país. Fica a dica de um grande escritor que o Brasil inteiro deve conhecer. (IPM)

Um mergulho na Legalidade, 50 anos depois

Em 25 de agosto, o Movimento da Legalidade completa exatos 50 anos. Para os que já ouviram falar, mas não lembram direito desta aula de História, ele foi o movimento de resistência comandado pelo governador gaúcho Leonel Brizola à tentativa de golpe militar que queria evitar que o vice-presidente da República, João Goulart, assumisse no lugar de Jânio Quadros, presidente que havia renunciado. Para marcar este cinquentenário, e para relembrar cada detalhe do episódio de agosto de 1961, o jornalista e escritor Flávio Tavares preparou um livro que será lançado em setembro pela L&PM Editores. Flávio foi, na época, o enviado especial do Jornal Última Hora ao centro de operações do movimento e acabou atuando como um porta-voz informal de Brizola, já que os outros jornais sofreram censura e estavam proibidos de cobrir a Legalidade.

Aqui, você pode ler um artigo de Flávio publicado no Domingo, 21 de agosto, no Jornal Zero Hora e conhecer, com exclusividade, um trecho do primeiro capítulo de seu livro.

A renúncia de Jânio, por Flávio Tavares*

O estranho gesto da renúncia de Jânio Quadros à presidência da República completa 50 anos no dia 25. Nada foi tão rocambolesco nem gerou tantas consequências quanto aquele ofício seco e direto que seu ministro da Justiça levou ao presidente do Congresso naquela tarde de 1961: “Nesta data e por este instrumento, deixando com o ministro da Justiça as razões do meu ato, renuncio ao mandato de presidente da República”. Em apenas 24 palavras, se esvaía como água pelos dedos das mãos o poder de quem governara o país durante sete meses de forma imperial, com o apoio até de antigos adversários.

Com a renúncia, veio o golpe de Estado do ministro da Guerra, vetando a posse do vice-presidente João Goulart – para ele “um comunista”. Logo, o Movimento da Legalidade – a rebelião do governador Leonel Brizola reuniu o III Exército e a população, paralisando o golpe. Mas o grande protagonista foram armas inusitadas – primeiro, a imprensa; logo (e principalmente) o rádio. Brizola foi o grande artífice, mas sem a Cadeia da Legalidade seus discursos não teriam tido o poder de convocação direta, pessoa a pessoa, mobilizando tudo e todos.

Por que Jânio Quadros renunciou? Nas “razões” deixadas com o ministro da Justiça, disse só uma frase de efeito: “Fui vencido pela reação e assim deixo o governo”. Sem dar explicações, esquivou-se sempre a responder ou se enfurecia ao ouvir a pergunta. Em 1980, 19 anos após a renúncia, eu o visitei em São Paulo e, durante três horas, ele falou sem parar de Napoleão e Churchill, verbos e conjunções, José Bonifácio, metais e metaloides, Getúlio e Che Guevara, moeda e câmbio, sem dar pretexto a que eu tocasse na renúncia. Entendi aí que a genialidade extravagante e desordenada do ciclotímico o tinha feito líder político imbatível em 1960.

Com esse estilo, ele conquistou a presidência num triunfo eleitoral avassalador. Nele, tudo era mutante, como se fosse gerado e parido pelo imponderável, mas para o público isso era genialidade. No governo, fez o que quis, com momentos deslumbrantes de estadista e outros mesquinhos, de míope político distrital. A renúncia inesperada, porém, ficou atravancada na História, num desafio sem explicações.

Em tudo, só hipóteses. A mais estapafúrdia era de que ele tentou um “golpe branco” para, após renunciar, ser reconduzido pelo povo com poderes amplos, tipo “ditador constitucional”. Em termos concretos, porém, isto era absurda fantasia: Jânio nunca preparou nenhuma força popular de mobilização nem tentou seduzir os ministros militares, que sempre o apoiaram e também se surpreenderam com o gesto.

O povo-povão deu explicação mais simples: a renúncia foi coisa da cabeça de cachaceiro!

Jânio morreu em fevereiro de 1992, sem explicar-se em público. Agora, ao preparar um livro sobre o Movimento da Legalidade (que a L&PM lança em setembro), deparei com um depoimento do ex-presidente a seu neto (também Jânio), feito em 1991, em que abertamente afirma que renunciou “por crer que os militares, os governadores e o povo exigiriam que continuasse no poder”.

Numa confissão de avô, nada ocultando, conta que mandou o vice-presidente João Goulart à China, “lá longe” para “não haver quem assumisse o poder, pois Jango era inaceitável para a elite”. E conclui: “Achei que voltaria a Brasília na glória. Deu tudo errado”.

Seria ele um ator louco que representava para si mesmo? Ou, traído pela mitomania, acreditou que o sonho de poder viraria realidade numa mágica? Em qualquer caso, faltou a Jânio o que sobrou a Brizola: audácia e capacidade de mobilizar o povo.

* Este texto de Flávio Tavares foi originalmente publicado na página 15 do Jornal Zero Hora do dia 21 de agosto de 2011.

Clique sobre as páginas para ler um trecho do primeiro capítulo do livro de Flávio Tavares a ser publicado em breve:

Crônicas das Crônicas

O Segundo Caderno do Jornal Zero Hora de hoje, 20 de julho, traz duas crônicas que falam de livros de crônicas: David Coimbra escreve sobre “Feliz por Nada” de Martha Medeiros e Fabrício Carpinejar sobre “A massagista japonesa” de Moacyr Scliar. A seguir, os textos na íntegra:

MARTHA MEDEIROS: SINCERA E RETA
Por David Coimbra*

Martha Medeiros escreve para as mulheres. Os leitores em geral dizem isso, e é compreensível que digam. Porque o texto da Martha Medeiros é um texto suave, direto, sincero, livre de intenções subjacentes, um texto que pode ser lido sem sobressaltos ao se trinchar uma fatia de pão com manteiga no café da manhã, ou entre um telefonema e outro na mesa do escritório. Não há perigo de você se indignar, ao ler um texto da Martha Medeiros. Você não vai atirar o jornal na lata de lixo, nem ligar para cancelar a assinatura. Também não vai ter de repisar uma frase para compreendê-la. Os sentimentos e ressentimentos da vida urbana, as vicissitudes comezinhas e pequenas glórias da existência moderna, isso tudo está cintilando nos textos da Martha Medeiros, mas cintilando sem agressividade e com objetividade. Como são as mulheres. Pegue o livro que a Martha Medeiros vai lançar sexta-feira na Saraiva do Shopping Moinhos, “Feliz por Nada“, da L&PM. O livro já anuncia suas intenções no título. Desde que foi “descoberta” por Zero Hora, há 18 anos, Martha Medeiros escreve sobre a felicidade corriqueira e suas possibilidades. Pegue agora, aleatoriamente, a abertura de algumas crônicas:

“Onde é que você gostaria de estar agora, nesse exato momento?”
“Tenho amigas de fé. Muitas.”
“Estou lendo ‘O quebra-cabeça da sexualidade’, do professor espanhol José Antônio Marina.”
“Eu estava quieta, só ouvindo. Éramos eu e mais duas amigas numa mesa de restaurante e uma delas se queixando, pela trigésima vez, do seu namoro caótico, dizendo que não sabia por que ainda estava com aquele sequelado etcetera, etcetera.”
“Quando eu era guria, adorava novela, mas aos poucos fui abandonando o vício e hoje assisto apenas uma ou outra, sem fissura.”
“Você gostaria de ter um amor que fosse estável, divertido e fácil.”
“Tem se falado muito na falta de limites das crianças de hoje.”

Basta correr os olhos pelas primeiras frases de um texto da Martha Medeiros para perceber que ela está se colocando inteira entre a capitular e o ponto final. Martha Medeiros não se esconde, abre-se para o leitor. Ela é sincera e reta, não há dissimulações entre vírgulas, não há o que ler nas entrelinhas. E é precisamente, justamente, exatamente essa precisa, justa e exata sinceridade que faz da Martha Medeiros um sucesso. As pessoas bebem dessa exposição de sentimentos comuns e se saciam com sua límpida simplicidade. O resultado disso é a bem-aventurança da carreira literária de Martha Medeiros num país de desventuras literárias. Martha Medeiros já teve obras adaptadas para o cinema, para a TV e para o teatro, e é admirada no Brasil inteiro. Apenas um dado, em números precisos, justos e exatos como o texto da Martha Medeiros: Doidas e Santas, outro livro lançado pela L&PM, está na quinta reimpressão de 20 mil exemplares cada. Ou seja: já vendeu 100 mil exemplares. Uma façanha. O que demonstra que os leitores estão errados. Martha Medeiros não escreve para as mulheres. Martha Medeiros escreve para as pessoas.

* Esta crônica foi publicada originalmente no Segundo Caderno do Jornal Zero Hora em 20 de julho de 2011. David Coimbra é escritor, jornalista e editor de esportes de ZH.

Martha Medeiros autografa sexta-feira em Porto Alegre a coletânea de crônicas “Feliz por Nada”

* * *

MOACYR SCLIAR: CONTOS DISFARÇADOS DE CRÔNICAS
Por Fabrício Carpinejar*

Moacyr Scliar (1937 – 2011) foi um atleta de triatlo da literatura brasileira. Nadava, pedalava, corria. Escreveu mais de 80 livros em praticamente todos os gêneros. Só não publicou em poesia para não humilhar seus colegas. Romancista que renovou o imaginário judaico, autor de clássicos como O Centauro no Jardim, quatro vezes premiado com Jabuti, Scliar mantinha seu condicionamento literário pelas crônicas, publicadas quase que diariamente nos jornais Zero Hora e Folha de S. Paulo. Os relatos afetivos e coloquiais formavam uma espécie de diário de seu conhecimento enciclopédico, em que ele comentava sobre qualquer assunto e nome, desde medicina até sociologia, de Antonio Vieira a J. K. Rowling. O escritor gaúcho, falecido em fevereiro, não era um generalista, mas um sábio à moda antiga, com cultura geral sólida, pronto para qualquer discussão e cafezinho.

Não se intimidava diante da complexidade das questões. Ao contrário de intelectuais que se tornaram referência, tal Paulo Francis na década de 1980, jamais escorregou em perfil conservador, mantendo-se sempre curioso e ávido pelas mudanças tecnológicas e de comportamento e aberto a diferentes pontos de vista.

A coletânea de 1984 A Massagista Japonesa, relançada agora pela L&PM, por vias tortas acena para o lado contista de Scliar, possibilitando o reencontro com sua capacidade de mimetizar dilemas do cotidiano e propor um suspense de pensamento. São 35 textos de natureza híbrida entre a narrativa curta e o ensaio. Poderiam constar facilmente em seus livros de contos as tramas de “Muitos e Muitos Graus Abaixo de Zero”, “A Massagista Japonesa”, “O Ocaso da Delação” e “O Homem que Corria”. O núcleo contístico traduz o ponto alto da obra, pelas histórias visível e invisível, concisão da ação e exagero da caracterização, além do final imprevisível.

Scliar maneja a arte de criar lógica da incoerência. Ele nos convence do absurdo a ponto de parecer normal. Como a trama do advogado que se apaixona pela maratona a ponto de transformar o casamento, o escritório e os filhos em meras linhas de chegada de uma corrida interminável pelo melhor tempo. E não é uma metáfora, o sujeito pretende fazer tudo mesmo correndo por Porto Alegre. Uma das virtudes da trajetória do ficcionista, demonstrada com astúcia em “A Orelha de Van Gogh” e “O Carnaval dos Animais”, é justamente exumar metáforas: converter parábolas em situações literais, objetivar o figurado. Na contramão bíblica, transforma o vinho em água, leva a sério a chuva de rãs, traz à tona os efeitos colaterais dos milagres.

Magistral contador de causos, flaubertiano assumido, não deixa nenhum ponto sem nó, nunca desperdiça migalha jogada ao chão (é caminho de volta), não despreza informação abordada antes. Se uma personagem tricota um pulôver é que a roupa vai fazer a maior diferença no desfecho. Nada é avulso. Sua competência é desviar atenção a um contexto de maior movimentação, para que outra zona exploda secretamente e surpreenda o leitor. Exemplo é a antipatia que ajuda a alimentar pelo delator da escola. Afinal, não existe motivo para admirar o guri que dedura por prazer. Toda hora alerta o professor para colegas colando na prova, trocando bilhetes de amor, conversando no fundo. Nem o professor suporta tamanha alcaguetagem e pede que ele procure se concentrar no conteúdo. Ao cabo, o fofoqueiro é pego fumando no banheiro e sumariamente expulso da instituição. O alívio dá lugar a um mal-estar, já que se descobre que o próprio delator se denunciou por bilhete anônimo e tudo aquilo que o movia era uma absoluta carência.

Scliar é cruel sendo emotivo. Um engano supor que A Massagista Japonesa servirá para matar saudade do seu trabalho. De modo nenhum: apenas aumenta sua falta.

* Esta crônica foi publicada originalmente no Segundo Caderno do Jornal Zero Hora em 20 de julho de 2011. Fabrício Carpinejar é jornalista, escritor, poeta, cronista e colaborador do Jornal Zero Hora.

Marilyn

Por Luiz Antonio de Assis Brasil*

Em 2012 decorrem 50 anos do suicídio [?] de Norma Jeane Mortensen, aliás, Marilyn Monroe. Sua vida foi um longo ensaio para a loucura e a morte. Desde que nasceu a morte e a loucura a perseguiram, a começar por uma lendária cena de tentativa de homicídio, em que sua avó, louca, a asfixiava com um travesseiro. Depois foi a vez de internar Gladys, sua mãe, também por insanidade.

Seu pai, desconhecido.

Deu-se a sequência de ups and downs: matriculada sob o número 3463 num orfanato de Los Angeles, saiu de lá para diversos lares de ocasião, encontrando segurança apenas com Ana Lower, que tentou de todas as formas compensar os anos de abandono de sua pupila. Então surge a vida, com o desabrochar de uma beleza morena e forte, bem mais natural do que a famosa loira química dos anos seguintes.

O trabalho numa fábrica de paraquedas não poderia durar muito: descoberta por um fotógrafo, começou sua corrida irresistível rumo às páginas dos jornais, às capas das revistas ilustradas, à solitária foto que acabou nas paredes das borracharias, à Fox, ao cinema. Logo fez fama de loira burra, entregando-se, complacente, a essa imagem de caricatura.

Dentro dela, porém, subsistia a caipira Norma Jeane, um ser perplexo ante o sucesso que, no íntimo considerava imerecido. Começava a época dos ensaios: ensaios de vários casamentos, cada qual mais ruinoso do ponto de vista humano; ensaios de suicídios, alguns falsos, alguns verdadeiros. Daí foi um passo para as drogas, para o álcool, para as pílulas de dormir, de acordar.

O coquetel entre a demência e a compulsão para a morte começava a fazer seus efeitos, e a forma de superar esse círculo de ferro foi a sedução erótica – mas de fachada: Tony Curtis disse que beijar Marilyn era o mesmo que beijar Hitler. Paradoxo: o símbolo sexual do século não encontrou jamais qualquer espécie de consolo sentimental.

Grandes vidas, grandes biografias: tudo isso está no livro Marilyn Monroe, de Anne Plantagenet, saído em tradução de Rejane Janowitzer, pela L&PM, que consegue, numa habilidade e refinamento bem franceses, recriar essa mulher que, antes de um ser humano concreto, era uma tentativa em pessoa – até a última, a morte final, em 1962.

* Pela L&PM, Luiz Antonio de Assis Brasil publica Cães da Província, Perversas Famílias, Videiras de Cristalentre outros. Este texto foi originalmente publicado na pg. 06 no Segundo Caderno do Jornal Zero Hora, no dia 25 de abril.