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Por onde começar a ler Balzac?

Ivan Pinheiro Machado

Falei muito sobre o autor de A Comédia Humana nos 12 posts anteriores. Procurei dar uma ideia do tamanho de Balzac, suas ideias, suas contradições, seu gigantesco talento e sua obra sem precedentes na história da literatura universal. Mas a Comédia é vasta – 89 histórias sendo que mais de 60 romances com, pelo menos, 200 páginas cada – e o leitor se pergunta: “por onde devo começar?” Vai aqui minha sugestão. Depois de dar a partida, será muito fácil engatar Balzac.

Comece nessa ordem: O pai Goriot, Ilusões Perdidas, Esplendores e misérias das cortesãs. Por quê? Bem, O pai Goriot é o primeiro romance onde Balzac concebe a ideia central da Comédia, ou seja, a de criar um enorme conjunto de romances que se passam no mesmo período e que, contando histórias diferentes, “pintam” um retrato preciso da mesma sociedade, através de personagens que vão e vem de uma história para outra (veja o post desta série O monumento chamado Comédia Humana). O pai Goriot é emblemático da “descoberta” de Balzac. Nele surgem personagens, principais e secundários, que atravessarão toda a Comédia, com destaque para Engène Rastinagnac e Vautrin, o malfeitor. Em Ilusões Perdidas, Lucien Rubempré é o protagonista. Sua saga de “alpinista social e intelectual” prossegue e se conclui em Esplendores e misérias das cortesãs, uma continuação de Ilusões…, com os mesmos personagens e o retorno de outros que estavam em Pai Goriot.

Na informalidade que o seu “realismo” lhe concedia, o próprio Balzac nos dá claramente a pista dessa ordem de leitura na parte final de seu Esplendores e misérias das cortesãs. Ele escreve: “Jacques Collin (nome verdadeiro de Vautrin) e sua horrível influência são a coluna vertebral que liga O pai Goriot  a Ilusões perdidas e Ilusões perdidas a Esplendores e misérias das cortesãs”.

Costumo dizer que as 1.500 páginas que compõem estes três romances são o Guerra e Paz de Balzac. Embora seja uma fração minúscula da gigantesca Comédia Humana, ali estão os fundamentos, as intenções e a amostra perfeita da incrível capacidade de fabulação do mestre Honoré de Balzac.

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20 de maio: aniversário de Balzac
Sexo para todos os gostos
Balzac: o homem de (maus) negócios
O monumento chamado Comédia Humana
Por que ler Balzac
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Paris: a cidade-personagem

Ivan Pinheiro Machado

Balzac amava Paris.

Nasceu em Tours, na belíssima Touraine, região célebre pelos magníficos castelos construídos à beira do Rio Loire – este que é o maior rio da França, com cerca de 1.000 quilômetros, e que serpenteia por quase metade do território francês. E próximo a Tours, numa extensão que ocupa quase 100 mil hectares, estão os mais belos castelos do mundo que, no ano 2000, foram tombados como patrimônio da humanidade pela Unesco. Há castelos que estão por lá desde muito antes da descoberta do Brasil. A beleza, o luxo e a imponência de cerca de trezentos “châteaux” contam a história da arquitetura francesa – da sobriedade contida na Idade Média do século X ao ardor renascentista do século XV. Tours foi capital da França entre 1461 e 1560, quando Paris passou a ser a capital definitiva. Balzac saiu de lá adolescente, logo após abandonar o internato onde esteve isolado de tudo e de todos. Apostava numa carreira literária e conseguiu convencer seu pai a sustentá-lo em Paris, onde estudaria Direito e escreveria romances. De fato, Honoré de Balzac se formaria advogado, mas – naquele momento – não convenceria como romancista, nem no suspeito círculo dos familiares. Era 1820 e ele tinha 21 anos. Precisou de 10 anos mais para construir os alicerces da sua obra e finalmente convencer como escritor. Paris foi impactante o suficiente para submeter Balzac aos seus mistérios, suas mazelas e seus encantos. Magnetizado pela paisagem da cidade luz, fez com que o desconcertante contraste de ruelas medievais, miseráveis, mal-cheirosas, com salões reluzentes, parques esplêndidos e palácios fosse uma constante em sua obra. Posso até me arriscar em dizer que, se a Comédia Humana tem um personagem principal, este personagem é a cidade de Paris.

A grande cortesã

Impregnado do bucolismo das paisagens de Tours e arredores, Balzac capitulou diante da diversidade arquitetônica, econômica, moral e espiritual de Paris. Foi um amor à primeira vista. Ele certamente diria o que disse Henrique IV, o rei da França, 250 anos antes, ao ser obrigado a renunciar ao protestantismo para agradar seus súditos de maioria católica: “Paris vaut bien une messe” (Paris vale bem uma missa).

Ele se apoderou da cidade para ambientar seus quase 3.000 personagens. Para usar uma expressão bem balzaquiana, “pintou” Paris como poucos. Tanto é verdade que uma das partes centrais da Comédia, que inclui cerca de um terço do total dos quase cem títulos é exatamente Cenas da Vida Parisiense. Portanto, a Comédia Humana é um dos mais importantes documentos literários sobre a cidade. Pela primeira vez na literatura, uma cidade é personagem de uma grande obra. Ele a descreveu maravilhosamente e a elevou a proporções quase humanas. A frase final de O Pai Goriot reflete a idéia de Balzac: o jovem Rastignac está chocado e decepcionado com a vida quando enterra seu amigo Goriot. Do alto do cemitério Père-Lachaise ele vê Paris imensa espalhada em volta do Sena e exclama: “Paris, agora é entre nós dois!”

Eugène Rastignac era o alter ego de Balzac. Ambos enfrentaram Paris. Entenderam que era necessário ser cínico, ser duro e ser forte para não serem engolidos pelo turbilhão daquela cidade fascinante. São centenas as passagens em que Balzac fala sobre Paris. Eu escolhi uma, que se não é a mais bonita, nem a mais brilhante, pelo menos fará você entender a relação “literária” dele com a cidade, a ponto de transformá-la em protagonista em muitas de suas tramas:

 “Há aqueles que conhecem tão bem sua fisionomia que percebem nela até mesmo uma verruga, um sinal de nascença, o menor rubor. Para outros, Paris é sempre uma maravilha monstruosa, um espantoso conjunto de acontecimentos, a cidade em que transcorrem cem mil romances, a verdadeira cabeça do mundo. Só que para estes Paris é uma criatura completa: cada ser humano, cada detalhe de prédio são apenas um fragmento do tecido celular dessa grande cortesã (…).”

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Balzac e a política: um autor de direita e uma obra de esquerda

Ivan Pinheiro Machado

Balzac viveu em um dos períodos mais movimentados e importantes da história da humanidade. Nasceu em 20 de maio de 1799 e morreu em 19 de agosto de 1850. Isto significa que, 10 anos antes de seu nascimento, seu pai – advogado e vereador em Tours, cidade onde morava a família de Balzac – estava às voltas com a Revolução Francesa que eclodiu em 14 de julho de 1789. Este dia é o começo do fim do poder absoluto de Luis XVI que acabou definitivamente em setembro de 1792 quando foi proclamada a República. Meses mais tarde, em fevereiro de 93, o rei e a rainha foram decapitados. Começou então o período do Terror, comandado pelos radicais Marat, Danton e Robespierre. Marat acabou assassinado na banheira por Charlotte Corday. Depois foi Danton e, por fim, a cabeça do “incorruptível” Robespierre foi parar no cesto, encerrando o período do Terror um ano depois de seu começo. O Diretório passou a governar a França. É a época do início das guerras napoleônicas, da ascensão fulminante da burguesia, e da instituição da corrupção generalizada. Em 18 brumário do ano IX, segundo o calendário da Revolução (9 de novembro de 1799), aconteceu o famoso golpe de Estado que conduziu Napoleão à chefia da Nação. Balzac tinha 8 meses quando ele assumiu o poder e 6 anos quando autoproclamou-se Imperador. Napoleão caiu em 1814, mas  voltou do exílio na Ilha de Elba para reassumir o governo dos “100 dias”. Seu fim ocorreu em 1815 quando foi derrotado em Waterloo. Balzac tinha 15 anos e assistiu nas Tulherias quando o Imperador fez a pomposa revista das tropas que iam para Waterloo. 20 anos depois, ele descreveria esta cena impressionante de forma magistral em A mulher de 30 anos.

Finda a era de Napoleão, foi restaurada a monarquia com Luis XVIII, depois sucedido por seu primo Carlos X em 1824. Conservador, Carlos X tentou derrubar as conquistas de julho de 1789 e caiu com a Revolução de julho de 1830. Subiu ao trono, Luis Felipe I, o “Felipe Égalité”, um monarca “esclarecido” situado bem à esquerda de Carlos X e simpatizante de Revolução. Mas Felipe foi destronado em 1848 quando, desgastado pela crise econômica e pelas intrigas palacianas, caiu em desgraça tanto pela esquerda como pela direita. Foi proclamada então – para desespero de Balzac – a II República. Balzac morreu em 1850 e não viu a volta da França Imperial. Em 1852, o sobrinho de Napoleão Bonaparte, Luis Bonaparte, foi coroado imperador, após um plebiscito com a concordância de 95% dos franceses. O Napoleão III ficaria 18 anos no poder.

 O “relator” de um novo mundo

Pode-se dizer que Balzac viveu, na plenitude de sua vida, toda a efervescência política da França e da Europa da primeira metade do século XIX.  E não foi pouca coisa. Os primeiros 25 anos do século XIX foram uma viagem vertiginosa com mudanças que se refletiriam nos rumos da civilização ocidental. O jovem Balzac estava lá e teve a sensibilidade de perceber que aquela era uma nova sociedade. Havia uma burguesia financeira e industrial nascente, uma classe média composta de funcionários públicos, profissionais liberais e comerciantes. E havia, sobretudo, a possibilidade de mudar de classe, de ascender socialmente. Enfim, um novo mundo estava batendo à sua porta. E Balzac percebeu que era sua chance de entrar para o panteon da história; ele iria ser o “relator” deste novo mundo. Sua Comédia Humana é o documento definitivo desta transformação.

Enquanto os historiadores se preocuparam em documentar os eventos históricos, Balzac fez o inestimável serviço de narrar a chamada “vida privada” da Europa neste meio século. Marx e Engels nunca esconderam sua admiração por Balzac – que os próprios comunistas consideravam “um vassalo da aristocracia”. Mas Engels teve a percepção correta de que “Balzac descreveu melhor a sociedade francesa do que todos os tratados de historiadores, economistas e estatísticos”.

Politicamente falando, Balzac é o paradoxo em pessoa. Auto-intitulado monarquista e legitimista, era a favor da monarquia do “direito divino”. Seu legado literário é um verdadeiro brado contra a usura, contra a sociedade do dinheiro pelo dinheiro. Suas presas prediletas são os banqueiros, os agiotas, os funcionários super-graduados do Estado francês. Não há um elogio da monarquia como sistema (embora muitas vezes ele apregoe “um governo forte”), mas existe um cinismo impregnado em seus personagens que freqüentam o poder. Sua literatura expõe as vísceras de um sistema geralmente corrupto; o tráfico de influências, o nepotismo, as seduções do poder, o fisiologismo político, a troca de favores.

Se foi “progressista” em sua obra e “reacionário” na vida real, esta é apenas mais uma contradição deste homem que viveu os paradoxos e, dentro deles, construiu a maior obra da história da literatura. No final da sua vida, estava indignado com a Revolução de 1848 quando Luis Felipe, que ele considerava um monarca “liberal demais”, foi derrubado. As barricadas nas ruas de Paris, a II República, deixaram Balzac perplexo. Para ele, era demais absorver a entrada de uma nova classe, no caso, a classe operária, no jogo social. Politicamente, manifestava-se cansado e decepcionado, no ocaso de sua vida. Mesmo assim, apresentou-se como candidato a deputado pelo partido conservador na nova Constituinte. Não foi eleito.

Balzac defendia os aristocratas, era contra a República e tinha um fascínio deslumbrado pela nobreza, pelo “faubourg” Saint Germain, onde moravam os bem nascidos. Este homem de direita fez uma obra de esquerda. Balzac queria ser rico e nobre a qualquer custo. Mas expôs as mazelas de um mundo fútil e corrupto. Era fascinado pelas altas rodas, pelo luxo, mas em seus romances ridicularizava os banqueiros, os agiotas e os grandes proprietários.

A nossa sorte é que ele foi um desastre para os negócios, como vimos no post “Um homem de (maus) negócios”. Porque na impossibilidade de ser rico e poderoso só restou a ele ganhar a vida escrevendo a Comédia Humana.

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O homem que amava as mulheres

Por Ivan Pinheiro Machado

Para desespero de madame Balzac, Laure de Berny tinha 45 anos, era casada com um conde e tinha nove filhos. E foi o primeiro e maior amor de seu filho mais velho, Honoré.

Dela, ele recebeu o carinho que a mãe havia lhe negado e a definitiva iniciação sexual. Balzac era um menino do interior, tinha 22 anos. Laure excitava a imaginação do jovem Honoré, tão chegado no brilho da aristocracia. Afinal – prato cheio para um futuro romancista – Mme. de Berny traía um conde, e seus pais foram íntimos dos reis decapitados; a mãe foi dama de companhia de Maria Antonieta e o pai, harpista de Luis XVI… Não era pouca coisa. E o que no começo foi um escândalo provinciano, acabou por se transformar em uma amizade para toda a vida. Laure também foi decisiva na execução e concepção do grande projeto da Comédia Humana.

Zulma Carraud foi outra paixão da juventude. Casada com um militar, ela foi sua confidente, leitora e orientadora. Mas para desespero do escritor, jamais houve sexo entre eles.

Especialista no chamado “roman a clef” Balzac usava os livros para acertar contas e  concentrava o fogo de sua fúria nos homens. Já para as mulheres, dedicava toda a sua compreensão e tolerância. Como toda a regra tem exceção, seu belo romance “A Condessa de Langeais”, teria sido uma espécie de vingança ao desprezo da Marquesa de Castries, cuja mão foi recusada ao escritor. Mas, ao ler este livro pertencente à magnífica trilogia “História dos treze”, você verá que a marquesa não tinha nada do que reclamar, pois a condessa é um dos grandes personagens de Balzac.

Era conhecido nos ambientes mundanos como grande “causer” ou homem de excelente conversa. George Sand disse numa carta, “Quando entrava num salão, imediatamente o enchia”. No começo da década de 1830, principalmente depois do enorme sucesso de A pele de Onagro, ele já era um personagem célebre e colecionava “casos”, embora perseguisse obstinadamente um “bom casamento”, de preferência com uma condessa rica e viúva. Como Laure D’Abrantés, que foi sua amante por um breve tempo e, além de condessa, era viúva do célebre Marechal Junot, conquistador do Egito com Napoleão.

A celebridade em Paris da Restauração, como de resto em todas as épocas e em todo o mundo, atraía belas mulheres. Balzac recebia dezenas de cartas perfumadas e “diariamente, lindas desconhecidas batiam à sua porta”. Circulava entre os dândis “confirmados” de Paris. Um dos pontos altos da Comédia é a descrição das cortesãs. São várias, todas lindas e inteligentes como Josepha, Esther, Valeria, entre tantas outras que adoravam desfilar nos camarotes da Opéra com os garotos endinheirados. As descrições são tão verossímeis que pressupõe uma familiaridade que ele realmente teve na vida real.  Uma de suas prediletas foi a “demi-mondaine” Olympie Pélisser, uma das mulheres mais lindas de Paris por quem teve uma rápida paixão que custou até um pedido de casamento, por sinal, negado. Olympie foi amante do músico Rossini e do escritor de folhetins, famoso na época, e rival literário de Balzac, Eugène Sue. Dizia-se que a bela cortesã teria sido modelo para a deslumbrante e insensível Foedora de “A pele de Onagro”.

Mas entre as muitas mulheres que passaram pela sua vida, a que mais o marcou foi Eveline Hanska, condessa polonesa, leitora de Balzac que aproximou-se dele através de uma carta anônima. Balzac já era o escritor mais lido na Europa e nesta carta a condessa declarava sua admiração. Balzac investigou muito, acabou descobrindo a sua identidade e foi encontrá-la numa viagem a Suíça. Imediatamente tornaram-se amantes. A correspondência entre os dois é imensa e as cartas de Balzac para a “estrangeira” são a principal fonte de seus biógrafos. Já as cartas de Eveline para Balzac são raríssimas e supõe-se que Balzac as tenha destruído pois, afinal, ela era uma senhora casada. Esta ligação de duas décadas só consumou-se seis anos depois que a condessa enviuvou. E aos 50 anos, cansado e doente, Honoré de Balzac atingiu o sonho da vida inteira que era casar com uma condessa de verdade. Morreria seis meses mais tarde.

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O poder das mulheres na Comédia humana

Por Ivan Pinheiro Machado

“Você tem uma sensibilidade em relação ao coração da mulher como nenhum outro homem… Ainda há algumas misérias deste pobre sexo que lhe escapam; mas, decerto, nunca um homem conseguiu entrar mais fundo na existência delas…”

Essas palavras da grande amiga de Balzac, Zulma Carraud, dão uma ideia da grandeza dos personagens femininos da Comédia Humana. Pode-se dizer, sem medo de errar, que entre a imensa galeria de protagonistas, se tirássemos todos os principais personagens masculinos, ainda assim a Comédia Humana se manteria de pé. Mas se deletássemos as mulheres, o edifício fatalmente ruiria.

Há nas 89 histórias (romances, novelas e contos) que compõe o monumental conjunto, um número formidável de extraordinárias mulheres. Só para citar algumas: a terrível prima Bette, a intensa e apaixonada Duquesa de Langeais, a condessa de Mortsauf que, literalmente, morre de amor em O lírio do vale, Julia d’Aiglemont, de A mulher de 30 anos, as fortes e belas Ginevra Pitombo e Eugénie Grandet, as cortesãs cuja beleza deslumbrante colocavam aos seus pés os barões de Paris como Málaga, Esther e Valéria, a maravilhosa e enigmática Paquita Valdés, de A Menina dos Olhos de Ouro e a incrível condessa Fedora, de Pele de Onagro. E há mais uma centena de grandes mulheres, personagens destacados que perambulam pelos volumes da Comédia Humana. São deliciosas as descrições que Balzac faz de uma bela mulher. Ele deleita-se, exagera, atiça a imaginação do leitor. Joga de maneira admirável com sua imensa capacidade de fazer frases de efeito. Veja como ele descreve uma de suas “musas”: “A profundidade de um abismo, a graça de uma rainha, a corrupção dos diplomatas, o mistério de uma iniciação e o perigo de uma sereia”.

No imenso e intrincado “sistema” da Comédia Humana, os personagens femininos possuem uma grandeza e uma dimensão que só uns poucos personagens masculinos conseguem ter. Elas são o centro do círculo social, comandam a cena. Os homens geralmente são marionetes nas mãos de mulheres poderosas. São traídos e humilhados, são mesquinhos e prepotentes, são vaidosos, arrogantes e quase sempre, ridículos.

Ele foi revolucionário ao narrar as vicissitudes do casamento, das uniões sem amor, numa época em que a “suave hipocrisia dos salões” recusava o divórcio e a separação. Criticou duramente os casamentos por interesses. Pregou as virtudes das “balzaquianas” em A mulher de 30 anos, seu livro mais célebre. E tolerou as traições, justificou as adúlteras mal-amadas e não raro, louvou as cortesãs. Na vida real, sempre procurou o amor das mulheres. Teve vários casos rumorosos, mas disso trataremos no próximo post.

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Balzac e as balzaquianas

Balzac prestou às mulheres um serviço imenso, pois duplicou para elas idade do amor. Curou o amor do preconceito da mocidade…”. Georges Viacaire, crítico francês, referia-se a enorme repercussão que A mulher de 30 anos teve quando foi lançado. Duzentos anos depois, em dezenas de línguas, “balzaquiana” é o adjetivo que designa, como diz o respeitável dicionário Houaiss da língua portuguesa, “aquela que tem mais de 30 anos”. A maioria esmagadora das milhões de pessoas que empregam a expressão nem sonham que ela vem de um livro escrito por um certo Honoré de Balzac há 180 anos atrás. Existe maior glória para um escritor?

A mulher de 30 anos não está entre os melhores livros de Balzac. É irregular, foi escrito num período muito longo, entre dezenas de outros romances e concluído às pressas, numa verdadeira colagem de trechos esparsos. Mas mesmo assim possui grandes momentos que, por si só, justificam a fama de mais famoso de todos os cem livros escritos por Balzac.

A belíssima marquesa Julia d’Aiglemont é a famosa mulher de 30 anos. Infeliz no casamento, renasce numa paixão extraconjugal pelo jovem Carlos Vandenesse que… bem… leia o livro. Como degustação, para ilustrar este post, colocamos abaixo um fragmento deste romance que glorificou e eternizou as balzaquianas:
“A jovem conta apenas com sua coqueteria, e acredita ter dito tudo quando tirou o vestido(…) A mulher de trinta anos pode fazer-se jovem, representar todos os papéis, até tornar-se mais bela com uma infelicidade. A jovem sabe apenas gemer. Entre as duas há a incomensurável diferença entre o previsto e o imprevisto, a força e a fraqueza. Armada de um saber obtido quase sempre ao preço de infelicidades, a mulher de trinta anos ao entregar-se, parece dar mais do que ela mesma; ao passo que a jovem, ignorante e crédula, nada sabendo, nada pode comparar nem apreciar (…).” (Tradução de Paulo Neves)

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Ouro e prazer

Por Ivan Pinheiro Machado

Balzac tinha a pretensão de ir muito além da literatura com a sua “Comédia Humana”.
Segundo ele, seus livros na realidade eram “tratados de costumes” que facilitariam a vida dos historiadores do futuro na “compreensão do século XIX”. E ele retratou com a precisão de um sociólogo a Paris dos tempos da Restauração. E com isso realizou um verdadeiro mergulho na alma humana. Dizia que, no fundo, Paris se movia por uma busca desenfreada por “ouro e prazer”; “a luta de todos contra todos sob a amável hipocrisia dos salões, o choque feroz de instintos insaciáveis”.

Era uma sociedade transformada inexoravelmente pela revolução de 1789. Em 30 anos vivera uma revolução sangrenta, uma república, um império e a restauração de uma monarquia saudosista e ineficiente. Era um novo mundo. Uma classe média ascendente e uma burguesia definitivamente influente transitavam entre velhos aristocratas falidos e novos-ricos em busca de nobreza. Esta tensão se transportava para o Bois de Bologna, as Tulherias, o hipódromo, a ópera, os salões majestosos dos palacetes de Saint-Germain de Près. Uma Paris deslumbrante, onde “dândis” impecavelmente cafajestes contracenavam com condessas de pele alva e olhos mediterrâneos.

Balzac foi o cronista desta sociedade em transe. Descreveu as paixões desenfreadas, os brutais jogos de interesses e “a busca de ouro e prazer”. Ilusões que nasciam e se perdiam num mundo contraditório, que redundava em fortuna para poucos e sofrimento e frustrações para quase todos. Assim pensava Honoré de Balzac.

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20 de maio: aniversário de Balzac

Por Ivan Pinheiro Machado

Hoje, Balzac estaria de aniversário.
Ele nasceu em 20 de maio de 1799 em Tours, uma bela e clássica cidade da província francesa, batizada como a capital do vale do rio Loire, cercada de castelos, distante 240 quilômetros de Paris. Atualmente, o TGV (trem-bala) faz este percurso em 55 minutos. Na época de Balzac, com bons cavalos, se fazia em dois dias. Muito jovem, ele conseguiu licença da família e foi para Paris. Em poucos anos, tornou-se o mais cosmopolita de todos os escritores de seu tempo, sendo o primeiro grande romancista francês a ser lido em toda a Europa. Não é por acaso que Paris é personagem e pano de fundo para este grande monumento literário que é a Comédia Humana e que abriga as quase 100 histórias que ele escreveu nos seus 20 anos de grande vigor criativo. Em no nosso site, você encontra todas as informações sobre Honoré de Balzac e principalmente sobre a Comédia Humana, da qual já publicamos quase duas dezenas de romances e novelas. Balzac morreu em 1850 aos 51 anos. Era célebre, mas não conseguiu realizar o sonho de ser milionário. Ao contrário. Deixou dívidas, muitas dívidas, e uma obra que o eternizou como um dos maiores artistas de todos os tempos.

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Sexo para todos os gostos


Por Ivan Pinheiro Machado

Algum moralista de plantão poderia dizer que Balzac era um amoral convicto. E estaria absolutamente certo. Grande parte da obra balzaquiana trata do adultério com absoluta naturalidade. Alguns dos casos de amor mais tórridos de seus romances foram, na sua maioria, casos extraconjugais. Mas há exceções: no grande O lírio do Vale, a condessa de Mortsauf morre de paixão para não consumar fisicamente seu violento amor adúltero pelo jovem Felix de Vandensse. Uma abstinência que não é comum entre as páginas de Balzac. Na Comédia Humana é tão natural ter amantes quanto ter esposas. Ou seja, o “kit” é, invariavelmente, mulher & amante. Entre os abastados, claro.  Mesmo porque os pobres povoam a Comédia como coadjuvantes e só ficam sob os refletores quando há a possibilidade de rápida ascensão social. A homossexualidade masculina é tratado abertamente em Ilusões Perdidas e Esplendores e misérias das cortesãs. Vautrin, misterioso personagem em O Pai Goriot e vilão em Ilusões perdidas e Esplendores…  é apaixonado pelo herói do romance, Lucien de Rubempré, descrito como o homem mais bonito de Paris. A homossexualidade feminina está escancarado em A Menina dos Olhos de Ouro, livro em que o dândi Henri de Marsay, um dos personagens masculinos favoritos de Balzac na “Comédia”, inadvertidamente apaixona-se loucamente por Paquita Valdès, que por sua vez tem um caso com Margarita-Euphèmia Porrabéril. O final é trágico e a amante traída mata a sua paixão, a bela Paquita. Não sendo suficiente esta ampla demonstração de liberalismo sexual, Balzac surpreende a todos em Uma paixão no deserto; nada mais nada menos do que o caso de amor entre um soldado e uma pantera. E isto em 1830…

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Balzac: o homem de (maus) negócios


Por Ivan Pinheiro Machado

Honoré de Balzac foi um homem estranho. Nasceu em 1799 em Tours, à beira do rio Loire, em uma família tipicamente provinciana e praticamente cresceu em um internato. Na solidão de sua infância e pré-adolescência, criou um mundo à parte, onde desenvolveu sua incrível capacidade de fabulação. A ambição e a fantasia faziam parte de sua personalidade, herdada em parte de seu pai, 33 anos mais velho do que sua mãe, e cujo sobrenome Balssa, Honoré transformou em Balzac (uma cidadezinha próxima a Tour e também nome de uma velha família aristocrata). Discretamente, Monsieur Balzac acrescentou um “de” que, na época, era sinal de nobreza – e sentia enorme prazer em usar esta partícula. Em última análise, queria ser rico. Fez negócios de todo o tipo: tentou adquirir sem sucesso ações de uma mina de prata na Sardenha, criou uma editora e uma fundição de caracteres tipográficos financiada com as magras economias de sua família e foi à falência acumulando dívidas que o perseguiriam pela vida inteira. Obcecado crítico da imprensa, sonhava em ter seus próprios jornais. Em 1936, fundou o jornal La Chronique de Paris que quebrou em pouco tempo. Cinco anos mais tarde, já muito endividado, fundou  a Revue Parisiense e inventou coleções de clássicos para vender de porta em porta. Fracassou novamente.
E foi graças a este péssimo tino para os negócios, aliado a uma enorme ambição, que a literatura ganhou um dos seus maiores gênios. Na verdade, sua imensa obra foi criada para ganhar a vida, ganhar dinheiro. Entregava livros contra o pagamento dos editores.
Mas, no fundo, muito mais do que ser um escritor, o que Balzac queria era desfilar pelas Tullerias num fiacre, exibir-se como se fosse um nobre. No fim das contas, ele trabalhava dezoito, vinte horas por dia, para arrumar dinheiro e livrar-se dos credores que o perseguiam. Foi um best seller na sua época e um dos autores mais lidos e publicados na Europa. Ganhou dinheiro com a literatura. Mas morreu esgotado aos 51 anos quando recém realizara o seu sonho de comprar um palacete finamente decorado e casar com uma condessa de verdade.
Sua rotina durante quase 20 anos foi acordar à meia noite e escrever até as seis da tarde. Só dormia 4 ou 5 horas e voltava ao trabalho extenuante na tentativa de cumprir prazos e entregar textos aos editores que lhe pagavam. Mesmo tento vivido a glória das ruas, sendo reconhecido como escritor popular, foi sistematicamente desdenhado pela crítica que jamais reconheceu seu valor em vida. Balzac morreu pobre, num palacete, sustentado pela Condessa Hanska, o amor de toda a sua vida. Mas sem conseguir seu grande objetivo que era… pagar as dívidas.

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