Arquivo mensais:junho 2011

Volta o Outono

Pablo Neruda
(do livro Residência na Terra II – tradução de Paulo Mendes Campos)

Um enlutado dia cai dos sinos
como trêmula teia de vaga viúva,
é uma cor, um sonho
de cerejas mergulhadas na terra,
é uma cauda de fumaça que chega sem descanso
a trocar a cor da água e dos beijos.

Não sei se me entendem: quando do alto
se avizinha a noite, quando o solitário poeta
à janela ouve correr o corcel do outono
e as folhas do medo pisoteado rangem nas suas artérias
há algo sobre o céu, como língua de boi
espesso, algo na dúvida do céu e da atmosfera.

Voltam as coisas ao lugar,
o advogado indispensável, as mãos, o azeite,
as garrafas,
todos os indícios de vida: as camas, sobretudo,
estão cheias dum líquido sangrento,
a gente deposita sua confiança em sórdidas orelhas,
os assassinos descem escadas,
mas não é isto, e sim o velho galope,
o cavalo do velho outono que tremula e dura.

O cavalo do velho outono tem a barba vermelha
e a espuma do medo lhe cobre as faces
e a aragem que o segue tem forma de oceano
e perfume de vaga podridão enterrada.

Todos os dias baixa do céu uma cor cinzenta
que as pombas devem repartir pelas terras:
a corda que o esquecimento e as lágrimas tecem,
o tempo que dormiu longos anos dentrodos sinos,
tudo,
os velhos trajes mordidos, as mulheres que olham
chegar a neve,
as papoulas negras que ninguém podem contemplar sem morrer,
tudo cai nas mãos que levanto
no meio da chuva.

Conheça todos os títulos de Pablo Neruda publicados pela L&PM.

Para comemorar o aniversário de 85 anos de Allen Ginsberg

“Allen Ginsberg nasceu em Mewark, Nova Jersey, a 3 de junho de 1926, filho de Louis e Naomi Ginsberg, ambos de famílias de judeus russos emigrados. Seu pai foi poeta e professor de literatura no secundário. Chegou a ser publicado em antologias importantes e frequentou círculos literários de prestígio. Sua mãe, também professora, passou boa parte da vida internada, vítima de esquizofrenia paranóica. Por isso, a infância e juventude de Ginsberg em Paterson, para onde logo se mudaram e Louis passou a lecionar, foram difíceis e dolorosas. Convivendo com crises e dificuldades, Ginsberg cresceu, contudo, em um ambiente culto, pelas leituras e pela produção do pai, e politizado, também por influência de Louis, socialista, e de Naomi, comunista militante. O drama familiar o levou a interrogar-se sobre sua identidade, seu papel na sociedade e no mundo. Contribuiu para que desenvolvesse, como observam seu biógrafo Barry Miles e outros comentaristas, tolerância e simpatia pela loucura e excentricidade, quer fossem de personalidades da literatura, os escritores visionários e desregrados, ou das pessoas com quem conviveu durante o período de formação da Geração Beat nos anos 40 e 50, e ao longo do restante da sua vida” (Claudio Willer* no prefácio de “Uivo“)

Allen Ginsberg, que faleceu em 5 de abril de 1997, faria 85 anos hoje. Para comemorar a data, desde 2003, seus fãs organizam o Howl! Festival em Nova York. É uma grande festa que começa no dia 3 de junho e vai até o dia 5, com eventos de música, dança, poesia e até um carnaval infantil. Basta chegar e participar. A comemoração acontece no Tompkins Square Park, que fica no East Village, bairro em que Ginsberg morou até o fim da vida.  Como de costume, o festival abre com um grupo de leitura de “Howl” (Uivo), o longo e pulsante poema de Ginsberg. No ano passado, cerca de 100 mil visitantes celebraram as palavras de Ginsberg. Quem estiver em Nova York já tem programa pra este final de semana.

*Claudio Willer realizou a tradução, seleção e notas de “Uivo” – editado em formato convencional e pocket pela L&PM

A maior saga poética de todos os tempos

“Eu inventei todas as festas, todos os triunfos, todos os dramas;  tentei inventar novas flores, novos astros, uma nova linguagem. Acreditei que tinha poderes sobrenaturais… Que nada! Devo enterrar minha imaginação e minhas lembranças! Uma bela glória de artista e de criador arrebatado!”  

Quando Arthur Rimbaud (1854-1891) escreveu à sua irmã Isabelle “a vida é uma miséria, uma miséria sem fim. Porque existimos?” ele tinha 37 anos e apenas mais alguns meses de vida. Mas que importância tem isto para alguém que viveu muitas vidas em uma só; uma vida de aluno precoce, uma vida de adolescente rebelde, uma vida efêmera de poeta genial, uma vida de amante de Paul Verlaine, uma vida de grande viajante ao redor do mundo, uma vida de negociante na Abissínia, uma vida de estropiado, de aleijado, errando pelos desertos da África Oriental, uma vida de tragédia grega, de verbo e de silêncio. A vida e a obra se confundem e se unem para formar a incrível saga de Arthur Rimbaud na terra. 

“Rimbaud” de Jean-Baptiste Baronian é o novo livro da Série Biografias da nossa coleção L&PM Pocket. Um livro escrito com o arrebatamento digno de Jean Nicolas Arthur Rimbaud, o mito, cuja vida envolta de mistérios, se constitui numa das maiores aventuras poéticas de todos os tempos. (Ivan Pinheiro Machado

Rimbaud está na Série Biografias L&PM

 

A L&PM publica Uma temporada no inferno, de Arthur Rimbaud, em edição bilingue. E também A hora dos assassinos, um estudo de Henry Miller sobre a poesia de Rimbaud.

Adriana Calcanhoto canta Alexandre, o Grande

“Alexandre nasceu em julho de 356 a.C., em Pella, capital do reino macedônio, da união entre a princesa Olímpia, filha do rei dos molossos, e de Felipe II, rei da Macedônia após a morte do rei Pérdicas, em 359 a.C. Muito foi escrito sobre a herança psicológica de Alexandre, mas quem pode dizer o que no seu temperamento ele deve aos pais?” 

Assim tem início a introdução de Alexandre, o Grande, livro que faz parte da Série Encyclopaedia. A obra não é uma biografia do maior de todos os conquistadores, mas um livro que tenta “apresentar os principais aspectos de um fenômeno histórico que não pode ser reduzido apenas à pessoa de Alexandre”, segundo consta no prólogo.

Alexandre não apenas virou filme com Richard Burton no papel principal (e, anos depois, com Colin Farrell no papel título e Angelina Jolie como sua mãe Olímpia), como também inspirou Caetano Veloso a criar uma canção sobre ele. Música que foi gravada por Adriana Calcanhoto para o CD e DVD Adriana Partimpim 2. A letra é uma verdadeira aula de história como você poderá escutar abaixo:

Os contos de Caio Fernando Abreu, por Lygia Fagundes Telles

O que me inquieta e fascina nos contos de Caio Fernando Abreu é essa loucura lúcida, essa magia de encantador de serpentes que, despojado e limpo, vai tocando sua flauta e as pessoas vão-se aproximando de todo aquele ritual aparentemente simples, mas terrível porque revelador de um denso mundo de sofrimento. De piedade. De amor.

Mundo de uma desesperada busca, onde as palavras se procuram no escuro e no silêncio como mãos que raramente (tão raramente, meu Deus) se encontram e se separam em meio do vazio. Da solidão. “O pensamento verte sangue” diz o poeta. É desse sangue que essas páginas ficam impregnadas – mas tão disfarçadamente, tão ambiguamente: por pudor, talvez, Caio Fernando Abreu disfarça, escamoteia através das personagens (sempre anti-heróis) a “dor que deveras sente” . O medo, a perplexidade, a cólera, a ironia, o fervor – o sentimento do homem caça e caçador é redescoberto neste corpo a corpo de criador e criação. Sim, suas personagens são os antiheróis, mas com eles Caio não constrói o anticonto tão ao gosto de seus companheiros de geração. Revolucionário sempre. Original sempre, mas sem se preocupar com modismos (importados ou não) que tentam impressionar um público que, de resto, já não se impressiona com nada. Ele não escreve o antitexto, mas O TEXTO que reabilita e renova o gênero. Caio Fernando Abreu assume a emoção.

Emoção esta que é vertida para uma linguagem que em alguns momentos atinge a rara plenitude próxima de um estado de graça. Linguagem que o coloca na família dos possessos (que já nos deu um Van Gogh, um Dostoievski, um Orson Welles), cultivadores não só da “paixão da linguagem”, na expressão de Octavio Paz, mas também da “linguagem da paixão”.

Gostaria de destacar aqui os contos que mais amei deste singular livro do moço gaúcho que um dia me escreveu numa carta: “Os crepúsculos têm sido lindos. Passei o melhor verão da minha vida, ganhei um gatinho chamado Saturno (ele é Capricórnio), amei muito, fiz ioga à beira-mar. Enfim, tenho agradecido por estar vivo e ter andado por todos os lugares onde andei e ter vivido tudo o que vivi e ser exatamente como sou”.

Apontar este ou aquele conto? Mas se vejo cada um dos textos que formam O ovo apunhalado como peças de um jogo, destacáveis e curiosamente inseparáveis na sua alquimia mais profunda, cada qual trazendo sua parcela de realidade e sonho, rotina e poética magia – vida e desvida com seu mistério e sua revelação.

Quando nos seminários de literatura os teóricos pedantes acabam por condenar a palavra, minha vontade é simplesmente mostrar-lhes um livro como este. Provar-lhes a atualidade da desacreditada palavra com a própria palavra, quando a serviço de uma técnica rica de recursos. Aliada a uma imaginação cintilante.

Lygia Fagundes Telles – São Paulo, abril de 1975

Texto publicado no Prefácio do livro O ovo apunhalado, de Caio Fernando Abreu – Coleção L&PM POCKET

Caio e Lygia nos anos 1970

O nascimento de um mito

Assim, conta ela, era uma vez uma menininha pobre nascida às nove e meia da manhã do dia 1º de junho de 1926 na enfermaria do Hospital Geral de Los Angeles. Um bonito bebê, explodindo de saúde, de pele muito branca, com alguns cachinhos castanho-claros e olhos incrivelmente azuis. Do lado materno, um bisavô suicida, um avô que morreu louco, uma avó ciclotímica, alcoólatra e maníaco-depressiva. A mãe, por sua vez, era instável e sujeita a diferentes psicoses. Quanto à ascendência paterna, tudo é possível. A menininha não tem pai. O declarado, Martin Edward Mortensen, de endereço desconhecido, é simplesmente um nome vazio, sem rosto. O verdadeiro pai morreu, ou se mandou sem avisar, ou mesmo ignorava ser o pai. Talvez tenha preferido não saber. Gladys Baker, a mãe, não conhece verdadeiramente amores duradouros. Saberia com certeza quem a engravidara?

(…) Gladys quer ficar com ela. Fica com ela. É sua revanche, sua recompensa arrancada das noites de espera frustrada, das promessas quebradas, dos dois filhos que lhe tomaram. É seu filme na grande tela. Pois será uma menina e um dia uma star de cinema. É o desejo de Gladys e ela lhe dá o nome de suas atrizes preferidas: Norma Shearer – ou seria Norma Talmadge? -, com quem ela acha que se parece um pouco, e Jean Harlow, nome ao qual ela acrescenta um e porque é o costume no Oeste.
Norma Jeane.

 Norma Jeane, filha do abandono mais que do amor, do desespero mais que do desejo, de um capricho mais que de uma necessidade.*

O bebê Norma Jeane em três momentos

Marilyn Monroe nunca conseguiu se desligar totalmente do nome escolhido pela mãe. A carência latente e a sensação de abandono sempre estiveram com ela, mesmo quando não havia dúvidas de que havia se tornado a mulher mais desejada do planeta. Se viva fosse, Marilyn seria uma octogenária festejando seu aniversário hoje. Encontrada morta no dia 5 de agosto de 1962, ela jamais envelheceu.

A futura Marilyn Monroe com a mãe, Gladys, em um dos raros momentos em que passeavam juntas

*Os trechos iniciais do post fazem parte do livro Marilyn Monroe, de Anne Plantagenet, Série Biografias L&PM.