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Uma visita a Finsland, cenário de “Antes que eu queime”

Texto e fotos:  Guilherme da Silva Braga*

Em agosto de 2012, enquanto eu dava os toques finais na tradução de Antes que eu queime, o romance de Gaute Heivoll recém-publicado pela L&PM, tive a oportunidade de viajar à Noruega e conhecer os lugares que aparecem no livro graças a uma bolsa para tradutores oferecida pela NORLA – a fundação norueguesa responsável por divulgar a cultura do país no estrangeiro.

Na década de 70, o pequeno vilarejo de Finsland, no Sul da Noruega, foi assolado por uma série de incêndios criminosos. Foi também nesse mesmo vilarejo e nessa mesma época que Gaute Heivoll nasceu – e a história de Antes que eu queime gira em torno das simetrias entre a trajetória pessoal do autor, a história do incendiário e o turbulento período atravessado pelos moradores do pacato vilarejo, numa obra em que as descrições das estradas, dos lagos, das planícies e de outros cenários característicos de Finsland são uma parte importante da ambientação.

Meu plano inicial era passar uns dias em Kristiansand (a capital da província de Vest-Agder, onde parte da história também se passa) e de lá tomar um ônibus para Finsland, sozinho. Mas, já na Noruega, resolvi escrever para o autor – e para minha grata surpresa o autor se dispôs a me buscar em Kristiansand e me levar a dar um passeio de carro em Finsland pelos lugares mais importantes da história.

No dia marcado, Heivoll manobrou no estacionamento do Budget Hotel Kristiansand e me cumprimentou de trás do volante com um aceno de mão. Depois de me apresentar, ocupei o banco do carona e, enquanto percorríamos os quarenta quilômetros de estrada que nos separavam de nosso destino, fomos conversando a agradável conversa de dois estranhos que se encontram por conta de um motivo caro a ambos.

Gaute ao volante / Foto Guilherme da Silva Braga

Gaute Heivoll dirigindo pelas estradas de Finsland / Foto Guilherme da Silva Braga

Quando chegamos, o panorama que se descortinou ante os meus olhos confirmou muitas das impressões que tive durante as minhas leituras de Antes que eu queime. Mesmo assim, foi bom poder ver – com a perspectiva cênica do livro – as águas plácidas do Livannet, a pequenina estação de incêndio comandada por Ingemann e a casa do incendiário. Enquanto me apontava lugares e falava sobre a escritura do romance, Heivoll também me perguntou se eu tinha conseguido visualizar aquele cenário. Explicou que, como autor, estava curioso para saber como as descrições soavam para alguém menos familiarizado com os cenários do norte da Europa – pois, conforme se justificou com os rr guturais típicos do sotaque da região, Du kommer fra en annen verden – “Você vem de outro mundo”.  Satisfeito, expliquei que tudo era bastante parecido com o que eu tinha imaginado.

A estação de incêndios que está presente no livro "Antes que eu queime" / Foto: Guilherme da Silva Braga

A pequena estação de bombeiros comandada por Ingemann / Foto: Guilherme da Silva Braga

Mesmo assim, a visão daqueles lugares e a conversa com Heivoll deixaram-me pensando sobre as estranhas relações entre a realidade e a ficção. Afinal de contas, Antes que eu queime é um romance documental – ou seja, uma obra de ficção baseada em fatos reais. Este método de escrita já tinha sido usado pelo autor em Himmelarkivet (2008) e, depois de Antes que eu queime (2010), foi mais uma vez empregado no romance Kongens Hjerte (2011), onde Gaute Heivoll escreveu:

[Este livro] é baseado no que aconteceu, mas ao mesmo tempo foi escrito no espaço livre entre a realidade e o sonho.

Esta abordagem gera uma grande incerteza em relação aos “fatos” apresentados numa obra deste tipo: mesmo sabendo que os incêndios em Finsland foram uma ocorrência real, como interpretar o que Gaute Heivoll disse quando parou o carro junto a uma pequena igreja e falou, referindo-se a uma cena de Antes que eu queime, “Foi dentro desta igreja que Kåre andou de moped”? Será que existiu um menino chamado Kåre? Caso tenha existido, será que perdeu mesmo uma das pernas em consequência de um acidente de esqui, como acontece no romance? Por fim, será que teria de fato andado de moped no interior da igreja?

A igreja de Finsland, onde Kåre andou de moped

A igreja de Finsland, onde Kåre andou de moped

Apesar do meu inevitável sentimento de perplexidade, não fiz nenhuma dessas perguntas ao meu companheiro de viagem. E isto por um motivo simples: a resposta não vinha ao caso. A literatura consiste justamente de incertezas e dúvidas organizadas numa estrutura rigorosa – e foram justamente esse aspectos que tanto me cativaram enquanto eu lia e traduzia Antes que eu queime.

O livro de Gaute Heivoll com tradução de Guilherme da Silva Braga

O livro de Gaute Heivoll publicado no Brasil pela L&PM com tradução de Guilherme da Silva Braga

 * Guilherme da Silva Braga é Licenciado em Letras (português-inglês), mestre em Literatura Comparada e doutorando em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Desde 2005 dedica-se à tradução literária, e durante esses anos traduziu dezenas de obras clássicas e modernas a partir do inglês. Em 2010 começou a traduzir a partir de línguas escandinavas como o sueco e o norueguês.

Mary Shelley e sua visão

No ano de 1816, conhecido como “o Ano sem Verão”, a jovem Mary Wollstonecraft Godwin, então com apenas dezenove anos, hospedou-se às margens do Lago Léman, na Villa Deodati, a convite de Lord Byron. Também integravam a companhia John Polidori, médico pessoal de Byron e escritor e Percy Bysshe Shelley, com quem Mary viria a se casar no mesmo ano. Reunidos no pé da lareira para fugir do frio e da chuva fora de época, os amigos passavam o tempo lendo histórias de fantasmas, até que Byron sugeriu que cada um escrevesse uma história baseada em algum evento sobrenatural. Mal sabia o lorde inglês que esta prosaica sugestão acabaria dando ensejo a uma das ocasiões mais célebres da história da literatura. Dia após dia perguntavam a Mary Godwin se havia pensado em uma história; dia após dia a resposta era uma negativa. Até que, certa noite, a autora teve uma visão:

Depois de repousar a cabeça no travesseiro, não dormi, nem se poderia dizer que eu estivesse pensando. A minha imaginação, agindo por vontade própria, possuiu-me e guiou-me, conferindo sucessivas imagens que surgiram na minha mente uma vividez muito além dos limites ordinários da fantasia. Eu vi – os olhos fechados, mas com uma visão mental precisa -, eu vi o pálido estudante das artes profanas de joelhos ao lado da coisa que havia montado. Vi o odioso espectro de um homem estendido, que então, sob a influência de algum móvel poderoso, deu sinais de vida e agitou-se com movimentos canhestros, dotados de uma espécie de semivida.

Logo o tempo melhorou e o grupo foi passear nos Alpes – porém Mary, obcecada pela ideia do monstro e graças ao incentivo e ao apoio de Shelley, saguiu lapidando o texto que culminaria no romance Frankenstein, finalmente publicado em 1818.

Trecho de Breve esboço sobre a vida literária dos monstros, texto de Guilherme da Silva Braga que abre o livro Clássicos do Horror da Série Ouro L&PM e que traz, no mesmo volume, Frankenstein, Drácula e O médico e o monstro, títulos que também são publicados na Coleção L&PM Pocket.