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O impressionante livro “Antes que eu queime”

Por José Antonio Pinheiro Machado

Antes que eu queime é um livro de qualidade impressionante.  O jovem autor norueguês Gaute Heivoll ambienta num pacato vilarejo do interior do seu país a ação. E que ação! De repente, logo no início, a casa de um casal de modestos moradores é incendiada. A princípio, parece que se trata de uma infeliz fatalidade, resultante do calor do verão, falta de chuvas etc.. Haverá muitas explicações e conjeturas para aquele aparente acidente, mas pende, como se fosse a lâmina de uma guilhotina, um mudo ponto de interrogação sobre todas as cabeças: será que foi mesmo um acidente? Alguns dias se passam, a rotina pouco a pouco se restabelece, a vida continua e, quando todos estão quase esquecendo o desagradável episódio, ocorre outro incêndio! E depois mais outro… A situação se torna incontrolável, diante da absoluta ausência de qualquer indício ou pista que possa apontar um suspeito. O primeiro incêndio ocorre no dia do nascimento do narrador que, muitos anos depois, volta ao vilarejo em que nasceu para contar a história e desvendar o mistério. A escritura é de primeira classe e o resultado, um suspense incontornável, impossível largar antes do ponto final. Depois de ler a primeira página só é possível parar depois da última frase: “Permita-me escrever isso tudo antes que eu queime.” (L&PM Editores, 2013 – 253 páginas, Tradução de Guilherme da Silva Braga)

O livro de Gaute Heivoll com tradução de Guilherme da Silva Braga

O livro de Gaute Heivoll com tradução de Guilherme da Silva Braga

Uma visita a Finsland, cenário de “Antes que eu queime”

Texto e fotos:  Guilherme da Silva Braga*

Em agosto de 2012, enquanto eu dava os toques finais na tradução de Antes que eu queime, o romance de Gaute Heivoll recém-publicado pela L&PM, tive a oportunidade de viajar à Noruega e conhecer os lugares que aparecem no livro graças a uma bolsa para tradutores oferecida pela NORLA – a fundação norueguesa responsável por divulgar a cultura do país no estrangeiro.

Na década de 70, o pequeno vilarejo de Finsland, no Sul da Noruega, foi assolado por uma série de incêndios criminosos. Foi também nesse mesmo vilarejo e nessa mesma época que Gaute Heivoll nasceu – e a história de Antes que eu queime gira em torno das simetrias entre a trajetória pessoal do autor, a história do incendiário e o turbulento período atravessado pelos moradores do pacato vilarejo, numa obra em que as descrições das estradas, dos lagos, das planícies e de outros cenários característicos de Finsland são uma parte importante da ambientação.

Meu plano inicial era passar uns dias em Kristiansand (a capital da província de Vest-Agder, onde parte da história também se passa) e de lá tomar um ônibus para Finsland, sozinho. Mas, já na Noruega, resolvi escrever para o autor – e para minha grata surpresa o autor se dispôs a me buscar em Kristiansand e me levar a dar um passeio de carro em Finsland pelos lugares mais importantes da história.

No dia marcado, Heivoll manobrou no estacionamento do Budget Hotel Kristiansand e me cumprimentou de trás do volante com um aceno de mão. Depois de me apresentar, ocupei o banco do carona e, enquanto percorríamos os quarenta quilômetros de estrada que nos separavam de nosso destino, fomos conversando a agradável conversa de dois estranhos que se encontram por conta de um motivo caro a ambos.

Gaute ao volante / Foto Guilherme da Silva Braga

Gaute Heivoll dirigindo pelas estradas de Finsland / Foto Guilherme da Silva Braga

Quando chegamos, o panorama que se descortinou ante os meus olhos confirmou muitas das impressões que tive durante as minhas leituras de Antes que eu queime. Mesmo assim, foi bom poder ver – com a perspectiva cênica do livro – as águas plácidas do Livannet, a pequenina estação de incêndio comandada por Ingemann e a casa do incendiário. Enquanto me apontava lugares e falava sobre a escritura do romance, Heivoll também me perguntou se eu tinha conseguido visualizar aquele cenário. Explicou que, como autor, estava curioso para saber como as descrições soavam para alguém menos familiarizado com os cenários do norte da Europa – pois, conforme se justificou com os rr guturais típicos do sotaque da região, Du kommer fra en annen verden – “Você vem de outro mundo”.  Satisfeito, expliquei que tudo era bastante parecido com o que eu tinha imaginado.

A estação de incêndios que está presente no livro "Antes que eu queime" / Foto: Guilherme da Silva Braga

A pequena estação de bombeiros comandada por Ingemann / Foto: Guilherme da Silva Braga

Mesmo assim, a visão daqueles lugares e a conversa com Heivoll deixaram-me pensando sobre as estranhas relações entre a realidade e a ficção. Afinal de contas, Antes que eu queime é um romance documental – ou seja, uma obra de ficção baseada em fatos reais. Este método de escrita já tinha sido usado pelo autor em Himmelarkivet (2008) e, depois de Antes que eu queime (2010), foi mais uma vez empregado no romance Kongens Hjerte (2011), onde Gaute Heivoll escreveu:

[Este livro] é baseado no que aconteceu, mas ao mesmo tempo foi escrito no espaço livre entre a realidade e o sonho.

Esta abordagem gera uma grande incerteza em relação aos “fatos” apresentados numa obra deste tipo: mesmo sabendo que os incêndios em Finsland foram uma ocorrência real, como interpretar o que Gaute Heivoll disse quando parou o carro junto a uma pequena igreja e falou, referindo-se a uma cena de Antes que eu queime, “Foi dentro desta igreja que Kåre andou de moped”? Será que existiu um menino chamado Kåre? Caso tenha existido, será que perdeu mesmo uma das pernas em consequência de um acidente de esqui, como acontece no romance? Por fim, será que teria de fato andado de moped no interior da igreja?

A igreja de Finsland, onde Kåre andou de moped

A igreja de Finsland, onde Kåre andou de moped

Apesar do meu inevitável sentimento de perplexidade, não fiz nenhuma dessas perguntas ao meu companheiro de viagem. E isto por um motivo simples: a resposta não vinha ao caso. A literatura consiste justamente de incertezas e dúvidas organizadas numa estrutura rigorosa – e foram justamente esse aspectos que tanto me cativaram enquanto eu lia e traduzia Antes que eu queime.

O livro de Gaute Heivoll com tradução de Guilherme da Silva Braga

O livro de Gaute Heivoll publicado no Brasil pela L&PM com tradução de Guilherme da Silva Braga

 * Guilherme da Silva Braga é Licenciado em Letras (português-inglês), mestre em Literatura Comparada e doutorando em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Desde 2005 dedica-se à tradução literária, e durante esses anos traduziu dezenas de obras clássicas e modernas a partir do inglês. Em 2010 começou a traduzir a partir de línguas escandinavas como o sueco e o norueguês.

Memórias do fogo norueguês

Se você colocar as palavras “incêndio” e “Noruega” no Google, vai ver a enorme quantidade de notícias sobre incêndios no país. São dezenas de cidades e vilarejos destruídos, casas de madeira, prédios modernos, edificações tombadas como patrimônio histórico: as chamas não escolhem local, não poupam nada e fortes ventos ajudam a alastrar a destruição.

Os incêndios ajudaram a formar geográfica e politicamente a Noruega. Ao longo dos anos, constantes incidentes destruíram peças arquitetônicas importantes da cidade, principalmente na época em que muitos edifícios eram inteiramente de madeira e, assim, facilmente consumidos pelo fogo. Foi após um incêndio histórico que durou 3 dias, em 1624, que o rei Cristian IV decidiu que a cidade velha não deveria ser recuperada novamente e ordenou a construção de uma rede de estradas em Akershagen perto da Fortaleza de Akershus. Ele exigiu que todos os cidadãos saíssem de suas antigas residências, lojas e locais de trabalho para se instalarem na nova cidade de Christiania, que mais tarde seria rebatizada de Oslo – hoje, capital da Noruega.

Por muito tempo, os incêndios não tinham causa conhecida: eram uma fatalidade, geralmente resultado da combinação de forças implacáveis da natureza. Mas o impacto dessas fatalidades sobre as pessoas começou a adquirir, com o passar do tempo, certos ares de mistério…

capa_antes_queime2.inddEm 1978, diversos incêndios começaram a atingir o pequeno vilarejo  de Finsland, no sul da Noruega. Logo a polícia constata que um incendiário está a solta, e o medo se instaura entre os moradores da região. Nesse turbulento cenário nasce o menino Gaute Heivoll, que anos mais tarde funde este enredo policial a uma reflexão sobre o ofício da escrita em meio às chamas do romance Antes que eu queime, uma das obras mais instigantes da literatura escandinava contemporânea, que acaba de chegar ao Brasil pela L&PM em tradução direta do original, feita por Guilherme da Silva Braga.