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A Índia de Gandhi por Eduardo Galeano

Em 15 de agosto de 1947 a independência [da Índia] foi proclamada. Enquanto o país, tomado de um delírio de alegria, a festejava aos gritos de Mahatma Gandhi Ki jai, “vitória ao Mahatma Gandhi”, este se ausentava. “Agora que temos a independência, parece que estamos desiludidos. Eu pelo menos estou”.

(Trecho da biografia de Mahatma Gandhi na Coleção L&PM Pocket)

Quem relembra este episódio é Eduardo Galeano em seu novo livro Os filhos dos dias:

(clique na imagem para ampliar e ler melhor)

O último jejum de Gandhi

Em 1948, a Índia passava por graves conflitos sociais, devido principalmente ao grande número de imigrantes que chegava ao país fugindo do terror que dominava nações e territórios vizinhos. Os acampamentos e os hospitais estavam sobrecarregados e cadáveres apodreciam nas ruas. Trens carregados de estrangeiros eram detidos e os passageiros, fuzilados. A morte estava por todo lado e não havia alguém capaz de controlar a situação. No meio do caos geral, a paz  parecia um sonho muito, muito distante.

Gandhi vestido como satyagrahi, ativista da não-violência, em 1913.

Talvez o único que mantinha viva a esperança de dias melhores era o líder Mahatma Gandhi, que resolveu iniciar aquele que seria, segundo ele, seu maior jejum. “Agir ou morrer” tinha virado seu lema naqueles dias de caos. Ninguém o deteve nesta última e derradeira tentativa de instaurar a paz em seu país. Estava disposto a jejuar até a morte se fosse necessário. E assim aconteceu, só que de outra forma.

Após duas semanas de jejum, Gandhi estava seriamente doente. Tinha cogitado interromper a penitência, mas resistira, pois daria a vida para restaurar a paz. Nem mesmo um atentado à bomba ocorrido dias antes no local onde realizava orações o faria mudar de ideia. Pelo contrário: para ele, a tentativa de assassinato tinha sido mais uma prova de que deveria perseverar. Além da fragilidade física, ele sabia que sua vida corria perigo, mas proibiu que reforçassem a segurança.

Talvez hoje eu seja o único a ter conservado a fé na não-violência. (…) Assim, tanto faz que haja ou não policiais e militares postados para minha proteção. Pois é Rama [Deus] que me protege… Estou cada vez mais convencido de que todo o resto é fútil. (do livro Gandhi na Série Biografias L&PM)

Ele continuava a fazer seu trabalho, animado pela fé em meio ao caos geral. Mas em 30 de janeiro, depois de 17 dias de jejum ininterrupto, a violência superou o sentimento de paz, conforme descreve a biógrafa Christine Jordis:

Apoiado nas duas sobrinhas, Ava e Manu, ele atravessou a grandes passos a multidão; muitos se levantaram, outros se inclinavam até o chão. Desculpou-se pelo atraso juntando as mãos à maneira hindu, em sinal de saudação. Foi nesse momento que um jovem se precipitou, afastou brutalmente Manu, prosternou-se diante do Mahatma em sinal de reverencia e disparou três tiros à queima-roupa. Gandhi caiu em seguida, pronunciando apenas, como queria, a palavra Rama: “He Rama” (Ó Deus!).

O mito Rimbaud: a dor que fascina

Por Ivan Pinheiro Machado

Nos próximos meses, publicaremos uma biografia de Arthur Rimbaud, por Jean-Baptiste Baronian, na Série Biografias da Coleção L&PM POCKET. Esta série foi produzida originalmente pela editora francesa Gallimard e sua principal característica é a clareza e a qualidade do texto. Todos os “biografados” são retratados de forma a aproximar e cativar o leitor. Alguns destes livros, como os dedicados a Van Gogh, Cézanne, Gandhi e Átila receberam importantes prêmios literários na França.

Verlaine e Rimbaud em detalhe do famoso quadro "Un coin de table" (1872) de Henri Fantin-Latour

Agora chegou a vez de Rimbaud. Com maestria, Jean-Baptiste Baronian traça, em menos de 200 páginas, um perfil realista de Jean-Nicolas Arthur Rimbaud. Ele consegue transportar o leitor ao universo denso e trágico do poeta, mostrando as bases e as causas da existência do “mito Rimbaud”. Porque o grande poeta francês deixou no seu rastro uma longa trilha de mistérios, contradições e indagações que construíram toda uma mitologia que só se amplia com o passar do tempo. Arthur Rimbaud teve uma vida tumultuada e uma obra incomparável. O enigmático divórcio da literatura com pouco mais de 20 anos; um caso de amor com Paul Verlaine, também um grande poeta; onze anos errando pela África Oriental, traficando de tudo, inclusive armas, numa época em que menos de cem europeus aventuravam-se pela Abissínia (hoje Etiópia), quase uma terra de ninguém. O poeta que escreveu toda a sua obra entre os 15 e os 20 anos e é considerado um dos maiores poetas franceses em todos os tempos. Estes são apenas alguns ingredientes irresistíveis para a construção de um mito. E a prova disso são os milhares de livros escritos “sobre” Rimbaud, sua vida e, principalmente, seu périplo africano. O jovem bonito de grandes olhos azuis com apenas 14 anos já havia vencido o concurso de poemas em latim da sua escola. Com 19 anos escreveu “Uma temporada no Inferno”, pouco depois, com 20 anos escreveu “Iluminações”. Além destes dois grandes poemas a obra de Rimbaud é composta de uma centena de poemas entre os quais o célebre “Bateau Îvre” escrito aos 17 anos.

O errante Rimbaud na Abissínia

Adolescente, leu todos os autores fundamentais e, de repente, inconformado com a vida na província e a mãe autoritária, iniciou um rosário de fugas. De Charleville, departamento de Roche, ele ganhou o mundo, deixando no seu rastro histórias de escândalos em Paris, Bruxelas e Londres. Rodou pelo Oriente Médio, na marinha mercante, trabalhou em Chipre, Genova, voltou à França e finalmente sumiu na África. Aden, Harar, Choa, os desertos da Abissína. Onze anos vivendo numa vida terrível, sob 50 graus à sombra, cujo testemunho são as cartas para a família e depoimentos ocasionais de mercadores e europeus que o encontraram ou que trabalharam com ele. Tráfico de armas, suspeitas de tráfico de escravos, Arthur Rimbaud vendia tudo o que era possível vender. Falava mais de 10 línguas, inclusive o árabe. Nunca mais falou em poesia. Nunca mais se referiu a literatura em nenhum relato conhecido a partir dos seus 21 anos. Com 33 anos começou a ter problemas na perna direita. Depois de muito sofrimento foi diagnosticado um câncer. Voltou para a França para morrer depois de imensos sofrimentos. Inclusive a amputação da perna direita.

A história de Arthur Rimbaud intriga e apaixona. Dele, restou o mistério impenetrável. Como um homem abandona um dom no qual era perfeito? Ninguém sabe, nem saberá. Um dos milhares de autores que escreveram com maior ou menor brilhantismo sobre o poeta, Charle Nicholl, finaliza seu brilhante “Rimbaud na África” com um parágrafo que pode definir o grande enigma. Ele refere-se a um registro encontrado em um hotel em Aden:

“A profissão que consta é a de ‘negociante’, e quanto ao endereço, o funcionário escreveu apenas ‘de passage’. Este é o seu verdadeiro epitáfio. Ele é o homem ‘de passagem’, o nômade ou beduíno, o caminhante das grandes estradas. Está – tomando-se a expressão em sua intensidade máxima – apenas de passagem. E mesmo agora, um século depois, em pé diante de seu túmulo em Charleville, não sinto nem um pouco como se estivesse diante de seu último repouso, mas sim batendo à porta de mais uma hospedaria deserta, indagando inutilmente por Monsieur Rimbaud, que já foi ‘traficar no desconhecido’, e não deixou endereço para a posteridade.”

O túmulo de Rimbaud em Charleville, cidade natal do poeta