Lendo Walden

Por Denise Bottmann*

Dizem que Thoreau fez três coisas quando morava em Walden: escreveu Uma semana nos rios Concord e Merrimack, foi preso por não ter pagado o imposto do município e escreveu muitas notas que vieram a fazer parte de sua obra mais famosa, Walden.

Já comentei que a leitura de Walden às vezes pode ser opaca, embora todas as pistas estejam lá. É o caso de uma passagem belíssima, onde se mesclam ironias, coloquialismos, metáforas, repetições, jogos de palavras e outras figuras de estilo, misturam-se planos temporais, fazem-se digressões de caráter geral e apenas insinua-se o sentido:

Não faz muito tempo, um índio andarilho foi vender cestos na casa de um famoso advogado de minha vizinhança. “Querem comprar cestos?”, perguntou ele. “Não, não queremos”, foi a resposta. “O quê!”, exclamou o índio ao sair pelo portão, “querem nos matar de fome?” Tendo visto seus industriosos vizinhos brancos tão bem de vida – que bastava o advogado tecer argumentos e, por algum passe de mágica, logo se seguiam a riqueza e a posição –, ele falou consigo mesmo: vou montar um negócio; vou tecer cestos; é uma coisa que sei fazer. Pensando que, feitos os cestos, estava feita sua parte, agora caberia ao homem branco comprá-los. Ele não tinha descoberto que precisava fazer com que valesse a pena, para o outro, comprá-los, ou pelo menos fazê-lo pensar que valia, ou fazer alguma outra coisa que, para ele, valesse a pena comprar. Eu também tinha tecido uma espécie de cesto de tessitura delicada, mas não tinha feito com que valesse a pena, para ninguém, comprá-los. Mas nem por isso, em meu caso, deixei de pensar que valia a pena tecê-los e, em vez de estudar como fazer com que valesse a pena para os outros comprar meus cestos, preferi estudar como evitar a necessidade de vendê-los. A vida que os homens louvam e consideram bem-sucedida é apenas um tipo de vida. Por que havemos de exagerar só um tipo de vida em detrimento dos demais?

Vendo que meus concidadãos não pareciam dispostos a me oferecer nenhuma sala no tribunal de justiça ou nenhum curato ou sinecura em qualquer outro lugar, mas que eu teria de me arranjar sozinho, passei a me dedicar em caráter mais exclusivo do que nunca às matas, onde eu era mais conhecido. Decidi montar logo meu negócio, em vez de esperar até conseguir o capital habitual, usando os magros recursos que eu já tinha. Meu objetivo ao ir para o lago Walden não era viver barato nem viver caro, e sim dar andamento a alguns negócios privados com o mínimo possível de obstáculos; mais do que triste, parecia-me tolo ter de adiá-los somente por falta de um pouco de siso, um pouco de tino empresarial e comercial.

A que “negócios privados” Thoreau queria dar andamento ao se mudar para Walden? E que “cesto de tessitura delicada” seria aquele para o qual não conseguiu compradores?

Por muitos anos Thoreau alimentou a vontade de ir morar sozinho na mata, e vários elementos se compuseram para que decidisse ir para Walden. A oportunidade propícia surgiu quando Emerson comprou uma propriedade no local. O poeta Ellery Channing, conhecendo os anseios do amigo Thoreau, sugeriu que se instalasse lá. Thoreau combinou com Emerson, e assim foi.

Mas uma das ideias que por anos vinham ocupando seu espírito era fazer uma homenagem à memória ao irmão, falecido em idade prematura em 1842, e escrever um livro narrando a excursão que ambos tinham feito em 1839, percorrendo os rios Concord e Merrimack. Morando em Concord, não tinha o vagar e a liberdade mental de que precisava para escrever a obra. Estes eram os “negócios privados” (ou assuntos particulares) a que queria dar andamento “com o mínimo de obstáculos”.

Tendo efetivamente escrito A Week on the Concord and Merrimack Rivers durante sua permanência em Walden, o livro foi publicado em 1849. Nos anos em que refletiu sobre a experiência em Walden e reelaborou essas reflexões ao longo de cinco a sete versões diferentes de Walden (que viria a ser publicado em 1854), Thoreau pôde conhecer a fortuna do tributo que fizera ao irmão: um fracasso de vendas – duzentos exemplares vendidos em quatro anos… Diga-se de passagem que apenas em décadas recentes tem-se reconhecido a finíssima lavra de A Week: até então, era tida como obra canhestra e desconjuntada.

Assim se entende qual era o cesto de delicada tessitura que ninguém se interessara em comprar… Notem-se os movimentos temporais: o parágrafo inicial é uma reflexão posterior ao relato apresentado no parágrafo seguinte; dentro do inicial, há também uma sutil circunvolução: o episódio do índio funciona como uma espécie de justificativa a posteriori de sua decisão em adotar uma forma de vida que lhe permitisse tecer seus textos/cestos em paz, sem a premência de vendê-los. Vivendo em Walden, pôde construir uma narrativa com trama de singular e complexo lirismo, que demandaria mais de cem anos para vir a ser devidamente reavaliada.

De passagem, entende-se também o sentido, de outra forma obscuro, do adjetivo triste: “mais do que triste, seria tolo” adiar seus planos de construir o memorial ao irmão, se fosse apenas por questões de fundo pragmático.

Outra característica de Walden, também ilustrada nos trechos acima: as referências, em sua imensa maioria, são concretas. O episódio do índio é autêntico, e Thoreau chegou a registrar em seu diário o nome do advogado (Samuel Hoar, figura muito conhecida na cidade).

(Uma boa fonte de consulta é a bela edição anotada de Walden com introdução e notas de Walter Harding, Houghton Mifflin, 1995. Também interessante é The Thoreau Reader, site com suas obras anotadas. Ilustração: verso de página da primeira edição de A Week, em exemplar pessoal de Thoreau. Citação dos trechos: Walden, tradução minha, L&PM, 2010, pp. 31-32. Para o original, ver aqui.)

*Denise Bottmann é tradutora de Walden, publicado pela L&PM. Semanalmente Denise escreve no seu blog Não gosto de plágio


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