Nem Poirot conseguiu resolver o maior mistério de Agatha Christie

O carro de uma novelista inglesa é encontrado abandonado, com as portas abertas, à beira de um lago. Não há nenhum bilhete e nem sinal da condutora que sumiu sem deixar vestígios. As buscas começam, passam-se alguns dias e a polícia começa a supor que possa ter acontecido um rapto, talvez suicídio, quem sabe até assassinato. O marido da desaparecida, que dias antes havia confessado à esposa que a deixaria por outra mulher, passa a ser o principal suspeito. Os jornais noticiam o fato nas primeiras páginas.

Na capa do jornal Daily Mirror, de 7 de dezembro de 1926, o desaparecimento de Agatha Christie

A trama poderia ser a sinopse de algum livro de Agatha Christie. Mas o acontecimento não foi ficção: na realidade, teve a “Rainha do Crime” como personagem principal. Em 3 de dezembro de 1926, Agatha desapareceu, após a crise de seu casamento culminar com o marido Archie dizendo que estava apaixonado por outra, no caso, Nancy Neele. Depois de abandonar seu carro, a escritora ficou 12 dias sumida até que o empregado de um hotel na cidade de Harrogate contatou a polícia para informar que uma das hóspedes parecia-se muito com as fotos divulgadas nos jornais. Chegando ao local, os investigadores descobriram tratar-se mesmo de Agatha Christie. Ela estava registrada no hotel como nome de Theressa Neele, o mesmo sobrenome da amante de seu marido. Alguns falaram em jogada de marketing, mas o fato é que esse mistério de Agatha jamais ficou realmente resolvido. A declaração oficial foi a de que ela sofrera amnésia temporária devido a um colapso nervoso já que, na mesma época, sua mãe havia falecido.

Em cartaz: Agatha Christie

Desde 1928, a obra de Agatha Christie vem ganhando ainda mais vida graças à sétima arte. O detetive Hercule Poirot, Miss Marple, Tommy e Tuppence, além de outros personagens como Mr. Quin e Parker Pyne, foram parar no cinema. De todos os livros, O caso dos dez negrinhos foi o mais adaptado, a primeira vez em 1945 como “And then there were none” (Então Não Sobrou Ninguém) e, nos anos 60, ganhou nova versão com o nome de “Ten little Indians” (Os dez indiozinhos).  Aqui, separamos alguns dos mais célebres cartazes.

Filme de 1945, baseado em O caso dos dez negrinhos (que será publicado em HQ pela L&PM):

Filme de 1947, baseado em “Philomel Cottage”, história de Agatha publicada na revista Grand Magazine em 1924:

Filme de 1960, baseado em A teia da Aranha (Coleção L&PM POCKET):

Filme de 1963, baseado em Depois do funeral (Coleção L&PM POCKET):

Filme de 1966, também baseado em O caso dos dez negrinhos:

Filme de 1974 (Oscar de melhor atriz coadjuvante para Ingrid Bergman), baseado em Assassinato no Expresso do Oriente (publicado em HQ pela L&PM)

Agatha Christie na crista da onda

Você aí, que acha que Agatha Christie já nasceu com aquele seu  jeito de vovó, prepare-se para mudar seus conceitos em relação à Rainha do Crime. Em fevereiro de 1922, ela e o marido, Archie (Archibald Christie), partiram para uma volta ao mundo que duraria dez meses. Entre outras aventuras, o casal surfou na África e em Honolulu. Ou melhor, em Honolulu eles tentaram, como a própria escritora contou em sua Autobiografia (publicada em 1979 no Brasil pela Nova Fronteira).

“Nossa viagem foi lenta, parando em Fidji e em outras ilhas antes de chegarmos. Achamos Honolulu muito mais sofisticado do que pensáramos, com muitos hotéis, estradas e automóveis. Chegamos cedo, pela manhã, fomos para nosso quarto do hotel e, imediatamente, vendo pela janela gente a fazer surf, correndo para a praia, alugamos pranchas e mergulhamos no mar. Éramos, claro, totalmente ingênuos. Estava um dia ruim para fazer surf – um desses dias em que só os peritos vão para o mar; mas nós, que havíamos feito surf na África do Sul, acreditávamos que surf para nós, já não era mistério algum. Acontece que em Honolulu era diferente. A prancha, por exemplo, era um grande pedaço de madeira, quase que pesado demais para que o pudéssemos erguer. Deitamo-nos em cima dela e nadamos vagarosamente até os recifes, a uma milha de distância – pelo menos foi o que me pareceu. Aí, colocamos-nos na devida posição e esperamos por uma dessas ondas que nos atiram pelo mar a fora até a praia. Não é tão fácil quanto parece. Primeiro, temos que reconhecer a espécie de onda própria para isso e depois, ainda mais importante, temos que reconhecer a onda que não serve, porque se somos apanhados por uma daquelas que nos arrasta para o fundo só Deus nos poderá ajudar! Eu não era uma nadadora tão experiente quanto Archie, de modo que demorei mais tempo a atingir os recifes. Por essa altura já perdera Archie de vista; presumi que estivesse flutuando em direção à praia, negligentemente, como os outros estavam fazendo. De modo que me coloquei apropriadamente em cima da minha prancha e esperei pela onda. Ela veio. Era da espécie imprópria. Num abrir e fechar de olhos eu e minha prancha fomos atiradas para milhas uma da outra. Primeiro, a onda, depois de me arrastar violentamente para o fundo do mar, sacolejou-me muito. Quando atingi a superfície, sem respiração e tendo engolido enormes quantidades de água salgada, avistei minha prancha, flutuando a meia milha de mim, em direção à praia. Nadei laboriosamente atrás dela. Foi recuperada para mim por um jovem norte-americano que me cumprimentou com as seguintes palavras: `Escute, irmã, se eu fosse você, hoje não faria surf. Você está arriscando demais. Tome a prancha e nade direitinho para a praia.´ Segui imediatamente seu conselho.”

Agatha e sua prancha em Honolulu

A casa de Balzac em Paris

Ivan Pinheiro Machado

A “Maison de Balzac”, ou museu Balzac, é um dos últimos vestígios daquilo que foi a cidade de Passy, antes de virar, em 1860, um bairro de Paris. Sua origem remonta do final do século XVIII e hoje o bairro de Passy tem o aspecto cosmopolita e agitado dos bairros que margeiam o Sena e a Île de La Cité. O museu Balzac foi adquirido pela prefeitura de Paris no começo do século XX e é a única residência de Honoré de Balzac que ainda está de pé. Ele foi morar lá em 1840 por questões estratégicas. Primeiro, porque era distante de Paris, ou seja, dos bairros onde estão o Boulevard Saint Germain, a região do Louvre e o centro financeiro da época, perto da Ópera. Segundo, porque era o lugar ideal para fugir dos credores, lembrando que naquele tempo os devedores podiam ser presos no momento em que fossem “protestados”. Nesta época, Balzac já se tornara uma celebridade, mas mesmo assim era pressionado por enormes dívidas acumuladas de seus negócios fracassados: uma coleção de clássicos para vender ao público, uma gráfica, uma tipografia, uma revista e um jornal. Trocando em miúdos, na década de 1840, ele devia o que hoje seria em torno de R$1.800.000,00. Esta dívida era com familiares, amantes e empresas em geral.

Atual Bairro Passy em Paris / Foto: Ivan Pinheiro Machado

Pois Balzac achou Passy um bom lugar para poder escrever sem a pressão daqueles para os quais devia. E, mais ainda, esta casa possuía três andares e estava construída em três planos. A entrada é pela Rue Raynouard e, três andares abaixo, há uma saída no primeiro piso, na rue Du Roc. Hoje, o museu ocupa todo o imóvel. Na época, Balzac alugava apenas o andar do meio e dispunha de duas saídas, em caso de emergência. Em 1847, ele abandonou Passy e mudou-se para rua Fortune, hoje rue Balzac, próxima ao Champs Elisée e ao arco do Triunfo, na expectativa de casar com a Condessa Eveline Hanska, o amor da sua vida (casa que foi comprada pelo barão Rotschild e demolida para a construção de outro imóvel). Neste museu, os fãs de Balzac encontrarão o mundo Balzaquiano que foi possível preservar. Lá está, intacto, o seu gabinete de trabalho, seus quadros, desenhos, retratos, esculturas, entre as quais o célebre busto esculpido por Rodin, mais fac-similes de seus livros, provas e todo o tipo de objeto que cercou e fez parte do mundo de Balzac e que foi possível ser recuperado para a posteridade. Embora famoso, demorou muito tempo para que ele fosse considerado o gênio que já imaginava ser na década de 30, quando criou a Comédia Humana. “Acho que tornei-me um gênio” escreveu à sua irmã imediatamente depois de conceber o projeto da Comédia. Assim, Paris foi negligente em relação a sua memória e muita coisa que fez parte da vida de Balzac desapareceu ou foi destruída por ser considerada “sem importância”. Demorou 50 anos para que percebessem que aquela cidade havia sido o “campo de batalha” do maior de todos os escritores franceses de todos os tempos.

Casa em Passy, Busto de Balzac na entrada do museu, Balzac por Rodin e Gabinete de Balzac / Fotos: IPM

Na Coleção L&PM POCKET, estão disponíveis 16 obras de Balzac.

O Marquês de Sade é torturado pela invenção do depilador elétrico feminino

O Marquês de Sade está em seu castelo quando, de repente, encontra um depilador elétrico. Furioso, chama por Justine… Assim começa o comercial da Walita criado no início dos anos 70 pela DPZ Propaganda e que traz o ator Raul Cortez no papel de Sade. Hilário, o filme de um minuto foi premiado com o Leão de Bronze no Festival de Cannes de 1972. E para quem quer mais do Marquês de Sade, a Coleção L&PM POCKET publica Os crimes do amor e O marido complacente.

Maigret, um policial acima do gênero

Ivan Pinheiro Machado

Sempre que posso, eu falo de Maigret, o personagem de Georges Simenon. Portanto, já que estamos lançando “Maigret sai de viagem” e eu acabo de reler “Os escrúpulos de Maigret”, também recém lançado, vou voltar ao tema. O comissário Jules Maigret é, sem dúvida, um dos grandes personagens da literatura moderna. Não só no gênero policial, mas em todos os gêneros, já que os fãs de Simenon não são necessariamente fãs de romances policiais. Maigret transborda os estereótipos do detetive dos romances policiais. O velho comissário, antes de ser um detetive clássico, é um verdadeiro estudioso da natureza humana. Um homem sensível às fraquezas de seus semelhantes. Sua argúcia está ligada, menos à genialidade dedutiva, do que a uma profunda capacidade de compreender a alma de suspeitos e vítimas. Maigret nos comove exatamente por isso. Pelo paradoxo que se estabelece quando temos um policial generoso, capaz de sofrer pela sorte de culpados e inocentes. Uma curiosidade: a ideia de Georges Simenon ao lançar a primeira aventura do comissário Maigret era fazer um total de 18 livros. Devido à insistência do editor francês Gaston Gallimard, dono da legendária editora Gallimard, ele concordou em prosseguir a série “Maigret” que terminou em…75 livros. Simenon publicou mais de 300 obras.

Estátua de Maigret (1966), de Pieter d'Hont, que está numa praça em Delfzijl, nos Países Baixos, local exato onde se passa a primeira aventura de Jules Maigret: "Maigret nos Países Baixos" (1931)

 A L&PM Editores pretende lançar todos os romances de Maigret ainda inéditos no Brasil. Reeditamos, na coleção L&PM POCKET, cerca de 20 títulos que já haviam sido publicados na década de 70 pela editora Nova Fronteira. Agora, vamos lançar cerca de 30 títulos totalmente inéditos para o leitor brasileiro. 

Ex-libris: um jeito só seu de dizer “esse livro é só meu”

Você sabe o que é Ex-libris? Não, não é um livro que deixou de ser seu como um… ex-marido ou ex-namorada. Ex-libris é justamente o contrário: em latim, quer dizer “livro de”. E por ter esse significado virou o nome da etiqueta que, impressa em papel e personalizada, vem há séculos sendo colocada na contra-capa ou na folha de rosto dos livros, indicando assim quem é o seu proprietário. Mas não basta trazer um nome, nem mesmo é suficiente que ele seja uma espécie de logotipo – isso seria sem graça demais para um Ex-libris. Eles precisam ser uma pequena obra de arte. Tanto é assim que ricos amantes dos livros, donos de vastas bibliotecas, encomendavam seus Ex-libris a artistas famosos. Picasso, Dalí, Paul Klee e Giacometti chegaram a desenhar Ex-libris sob encomenda.

Todo Ex-libris traz, necessariamente, um desenho que tenha a ver com seu dono, seja algo que ele goste, que ele faça ou mesmo que ele pense. Até o século XVIII, também era muito comum serem usados brasões de família. Chamados de Bookplates nos EUA, os Ex-libris são praticamente ignorados pela maioria dos leitores brasileiros. Mas nunca é tarde para redescobri-los. É por isso que fizemos uma intensa pesquisa na internet e encontramos algumas dessas elegantes marcas de posse.

 

Ex-libris de Charles Dickens, Georges Simenon, Greta Garbo, Jack London, Edgar Allan Poe, Santos Dumont, Einstein e Hemingway

Horror total

A “Série Ouro” é uma coleção de grandes textos e quadrinhos célebres que a L&PM Editores bolou para atender a várias demandas. Primeiro, suprir o desejo daqueles leitores que gostam de “livrões”. Segundo, reunir vários textos importantes num livro de tamanho grande e magnífico acabamento. E, terceiro, oferecer uma alternativa de presente bem bacana, que realmente impressione. Já foram lançados “Shakespeare, obras escolhidas”, com 18 das principais peças do “bardo”; “Machado de Assis” com seus três principais romances; “Livro dos Poemas”, um belo trabalho de edição e seleção do escritor Sergio Faraco que cobre 300 anos da poesia em língua portuguesa; “Garfield – 2.582 tiras” de Jim Davis, onde os fãs do gato pop vão encontrar mais de 600 páginas de diversão. E, finalmente, – neste tempo de vampiros – acabamos de lançar um livro belíssimo que reúne as três histórias mais célebres de horror: “Drácula” de Bram Stoker, “Frankenstein” de Mary Shelley e finalmente “O médico e o monstro” de Robert Louis Stevenson. É como a nascente de um rio:  tudo o que veio depois tem a influência decisiva destes super-clássicos fundadores do gênero.

Bram Stoker, Mary Shelley e Robert Louis Stevenson

 

Os fantasmas de Van Gogh e os fantasmas de Dickens

Em agosto de 1877, Vicent Van Gogh era um jovem estudante em Amsterdam. Nessa época, escreveu, em provável tom de brincadeira, ao irmão Theo: “Esta manhã, o meu pequeno-almoço foi um bocado de pão duro e um copo de cerveja – isto é o que Dickens aconselha para aqueles que estão à beira de cometer suicídio como uma boa forma de mantê-los, pelo menos durante algum tempo, longe dos seus propósitos.” Doze anos depois, enquanto preparava as malas para partir rumo ao hospital psiquiátrico de Saint-Rémy-de-Provence, Van Gogh mais uma vez lembrou o conselho de Dickens e escreveu à sua irmã Wil: “Todos os dias, tomo o remédio que o incomparável Dickens prescreve contra o suicídio. Consiste num copo de vinho, um bocado de pão com queijo e um cachimbo de tabaco. Você dirá que tal não é complicado e dificilmente conseguirá acreditar que isto é o limite a que a melancolia me leva; sempre o mesmo, em alguns momentos – valha-me Deus.” Na verdade, Van Gogh parece ter adaptado o remédio de Dickens ao seu gosto, já que, na realidade, o “incomparável” não fala em pão, e muito menos em queijo, ao terminar o conto “O Barão de Grogzwig”: “O conselho que dou a todos os homens é que, se um dia ficarem deprimidos e sorumbáticos por motivos semelhantes (como ocorrem a muitos), que examinem os dois lados da questão, usando uma lupa no melhor lado; se, ainda assim, sentirem-se tentados a retirar-se sem licença, que antes fumem um cachimbo bem grande, bebam uma garrafa inteira e mirem-se no louvável exemplo do barão de Grogzwig.”

“O Barão de Grogzwig” é um dos treze contos que está no livro Histórias de fantasmas, de Charles Dickens, publicado na Coleção L&PM POCKET.

Para Jack Kerouac, não havia diferença entre Buda e Jesus.

Jack Kerouac nasceu católico apostólico romano. Mas ao descobrir o budismo no início dos anos 50, não apenas interessou-se pelo assunto como inspirou-se nele para escrever alguns de seus livros. Teve origem assim o “budismo beat”. Em Despertar: uma vida de Buda, escrito em 1955, dois anos antes do lançamento de On the Road, Kerouac refaz o caminho de Sidarta Gautama, de seu nascimento em um rico palácio à busca pela iluminação. Não é de se espantar, portanto, que as crenças de Kerouac fossem tema recorrente nas perguntas feitas por jornalistas. Foi assim, por exemplo, em uma entrevista conduzia por Ted Berrigan em 1967 e publicada no Brasil em 1989 pela Companhia das Letras no livro “Os escritores 2: as históricas entrevistas da Paris Review”. Leia o trecho inicial.

Apresentação:

       Jack Kerouac tem hoje 45 anos. Seu décimo terceiro livro, Vanity of Duluoz, foi publicado no início do ano (1967). Casado há um ano, mora com a esposa, Stella, e a mãe – inválida -, num bairro residencial de Lowell, Massachusetts, a cidade onde passou a infância. Os Kerouac não têm telefone. Havia entrado em contato com Kerouac há alguns meses, quando então o convencera a dar a entrevista. Quando senti que a hora do encontro tinha chegado, simplesmente apareci na casa de Kerouac. Dois poetas amigos me acompanharam, Aram Saroyan e Duncan McNaughton. Kerouac atendeu a porta. Apresentei-me e expliquei o motivo da visita. Kerouac cumprimentou os poetas, mas, antes que pudéssemos entrar, sua mulher, uma pessoa muito decidida, segurou-o por trás e disse ao grupo que fôssemos embora imediatamente. Jack e eu começamos a falar ao mesmo tempo, dizendo Paris Review! Entrevista! etc. Nisso, Duncan e Aram já estavam voltando para o carro. Tudo parecia perdido, mas continuei falando, num tom de voz que tentava ser o mais civilizado, razoável, calmo e cordial possível. A sra. Kerouac acabou deixando a gente entrar, por vinte minutos, com a condição de não beber nada.  Lá dentro, quando ficou claro que nosso propósito era sério, a sra. Kerouac tornou-se mais amistosa, e deu para começar a entrevista. Pelo jeito as pessoas ainda aparecem com freqüência na casa de Kerouac, à procura do autor de On the road, e ficam por vários dias, acabando com a bebida e distraindo Jack de suas atividades mais sérias. O clima mudou muito no decorrer da noite. Stella, a sra. Kerouac, revelou-se uma anfitriã agradável e charmosa. A coisa mais incrível em Jack Kerouac é a voz, mágica, que parece saída de seus livros, capaz das mudanças mais assombrosas e desconcertantes num piscar de olhos. Ela tem a capacidade de dominar tudo, a começar por esta entrevista (…).

PERGUNTA: De que maneira o zen influenciou seu trabalho?
KEROUAC: O que realmente influenciou meu trabalho foi o budismo maaiana, o budismo original de Gautama Sakyamuni, o próprio Buda, da lndia de velhas… O zen foi o que sobrou de seu budismo, ou Bodhi, quando passou para a China, e de lá para o Japão. A parte do zen que influenciou minha obra foi o zen presente nos haicais, como já falei, os poemas de três versos e dezessete sílabas escritos há séculos por gente como Bashô, Issa e Shiki, e mestres mais recentes. Uma frase curta e suave, com uma mudança brusca do pensamento, é uma forma de haicai, e há muito prazer e liberdade quando a gente é surpreendido por ela, deixando a mente pular, solta, do galho para o pássaro. No entanto, meu budismo sério, aquele da lndia antiga, influenciou a parte da minha obra que você pode chamar de religiosa, fervorosa ou piedosa, quase tanto quanto o catolicismo. O budismo original pregava a compaixão consciente, permanente, a fraternidade, a dana paramita, quer dizer, a perfeição da caridade, não fazer mal a uma mosca e tudo mais, humildade, mendicância, o rosto suave sofrido do Buda (que era de origem ariana, por falar nisso, de uma casta guerreira persa, e não oriental, como o pintam) …. No budismo original nenhum menino que chegasse a um mosteiro seria advertido que ali “enterram gente viva”. Apenas o encorajavam, com suavidade, a meditar e ser gentil. O zen começou, na verdade, quando Buda reuniu todos os monges para fazer um sermão e anunciar o primeiro patriarca do culto maaiana: em vez de falar, ele simplesmente mostrou uma flor. Todo mundo ficou surpreso, menos Kasyapa, que sorriu. Kasyapa foi escolhido para ser o primeiro patriarca. Esta idéia encantou os chineses, como no caso do sexto patriarca, Hui-Neng, que disse: “Desde o princípio nunca existiu nada”, e queria destruir os registros das palavras do Buda, conservadas nos sutras; os sutras eram “fiapos de sermões”. De certo modo, portanto, o zen é uma forma suave e simplória de heresia. Mesmo assim, deve haver alguns bons velhos monges de verdade, em algum lugar, mas nós só temos ouvido falar dos malucos. Nunca fui ao Japão. O Maha Roshi Yoshi não passa de um seguidor de tudo isso, e nunca o fundador de qualquer coisa nova, é claro. No programa de Johnny Carson ele nem citou o nome do Buda. Talvez o Buda dele seja Mia.
PERGUNTA: Por que você nunca escreveu sobre Jesus? Já escreveu sobre Buda, não? Jesus não foi um cara incrível, também?
KEROUAC: Como não escrevi nunca sobre Jesus? Quer dizer que você é um impostor maluco que veio na minha casa… e … eu só escrevo sobre Jesus. Sou Everhard Mercurian, general do exército jesuíta.
SAROYAN: Qual a diferença entre Jesus e Buda?
KEROUAC: Esta é uma boa pergunta. Não há diferença.

Desenho de Kerouac: “Face of the Buddha”, Pencil on paper, 1956 (?), NYPL, Berg Collection