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O verbete de hoje é: Millôr Fernandes

Com o lançamento da nova Enciclopédia dos Quadrinhos“, de Goida e André Kleinert, este Blog publicará, nos domingos, um verbete deste livro. O de hoje é  o brasileiro Millôr Fernandes (1924 – 2012), que se foi esta semana. 

Durante muito tempo ele não foi Millôr, foi Vão Gôgo, nome com o qual assinava suas colaborações para as revistas O Cruzeiro e A Cigarra (décadas de 40 e 50). Aliás, o próprio e estranho nome de Millôr ele assim explica: “Meu pai queria registrar-me com o nome de Milton. Na hora, o funcionário do cartório errou e o Milton virou Millôr. E ficou por isto mesmo”. Carioca do Méier, nascido em 16 de agosto, iniciou-se na imprensa em 1943, como humorista e cartunista. Com o decorrer dos anos, tornou-se escritor e autor teatral (Um elefante no caos, Liberdade, Liberdade – junto com Flávio Rangel –, É, Os órfãos de Jânio). Foi também tradutor brilhante, pintor, artista gráfico e editor. Desentendendo-se com a cúpula de O Cruzeiro, por motivos de censura, fundou a publicação de humor Pif Paf (nome das páginas que mantinha naquela revista) e mais tarde ajudou também a editar O Pasquim. Manteve, desde a década de 60, incrível atividade diária na imprensa (Correio da Manhã, Jornal do Brasil) e semanal em revistas como Veja e Isto É. Em mais de sessenta anos de atividades, Millôr/Vão Gôgo já escreveu e desenhou milhares e milhares de páginas, sempre com um nível impressionante e busca de renovação. E quadrinhos, o Millôr fez? Mas claro que fez, senão estaria fora desta obra. Nas páginas do Pif Paf (tempos de O Cruzeiro) ele sempre ensaiava essa forma de comunicação. Em 1948, junto com outro notável humorista e desenhista (Carlos Estevão, veja em C), Millôr roteirizou as tiras de um personagem chamado Ignorabus, o contador de histórias, publicadas no Diário da Noite. Uma das razões de sua saída de O Cruzeiro foi a publicação de A verdadeira história do paraíso, onde misturava textos, desenhos e técnicas de quadrinhos. Para O Pasquim, de boa lembrança é também O último baião em Caruarú, uma divertidíssima gozação com o filme-escândalo de Bertolucci, O último tango em Paris. Isso é o que nos lembramos. Quem pesquisar toda a imensa obra de Millôr, certamente vai encontrar mais. Sem dúvida, o livro mais importante dele (sem ilustrações e sem quadrinhos) foi Millôr Definitivo, a bíblia do caos, editado pela L&PM em 1994 e com reedições até 2000. Foram selecionadas 5.142 frases, pensamentos, máximas, insultos e outras incríveis definições do autor, em volume único de mais de 500 páginas. Mais recentemente, de 2006 para cá, quem vem reeditando as obras de Millôr é a Desiderata. Já saíram A verdadeira história do paraíso, Ministério de perguntas cretinas (com ilustrações de Jaguar), Trinta anos de mim mesmo, Que país é este? e Novas fábulas & contos fabulosos, esse ilustrado por Angeli. 

58. O Primeiro-ministro que amava as novelas

Por Ivan Pinheiro Machado*

Em 1976, Portugal era uma festa. Depois de 40 anos da sinistra ditadura salazarista, a cidade de Lisboa vivia a euforia dos cravos vermelhos. Tudo começara um ano antes, em 1975, quando a Revolução dos Cravos havia devolvido a democracia ao povo português.

Naquele ano, eu debutava na Feira Internacional do Livro de Frankfurt, onde, levado pela mão do grande editor brasileiro Fernando Gasparian, fiz os primeiros contatos com importantes agentes e editores internacionais. Gasparian era um homem internacional na exata acepção da palavra. Circulava nas rodas mais influentes da intelectualidade de esquerda europeia. Havia morado em Londres e feito política no Brasil, onde chegou a ser Secretário da Indústria do Estado de São Paulo. Foi empresário, fazendeiro, ganhou muito dinheiro e sempre se manteve firme nos seus ideais democráticos. Participou ativamente da resistência, foi sócio de O Pasquim e dono do legendário Opinião um dos jornais mais sérios e ativos no combate à ditadura. Na época, Portugal era uma espécie de paraíso para nós, brasileiros nostálgicos da democracia. Um verdadeiro exército de exilados invadia Lisboa. Eram professores, militantes, profissionais liberais, políticos cassados… enfim, uma legião de expatriados que já havia fugido da Argentina, que caíra nas mãos dos militares, e depois escapara do Chile, que estava nas mãos igualmente sinistras de Pinochet. Os que conseguiram sair do Chile acabaram, a maioria, ou em Paris ou em Portugal pós Revolução dos Cravos.

Fernando Gasparian já tinha vários encontros agendados e no domingo, quando a Feira de Frankfurt acabou, nós voamos para Lisboa. Eu fui para a casa do escritor Josué Guimarães, um dos principais correspondentes de jornais brasileiros sediados em Lisboa, que juntamente com sua mulher Nídia me acolheu principescamente. Chegamos por volta do meio-dia e, ao anoitecer, Gasparian me ligou e disse “vamos a um jantar meio formal, seria bom que você colocasse uma gravata”. Era o seu estilo afirmativo, sua maneira peculiar de fazer convites. Eu ri e perguntei onde iríamos. Ele estava apressado: “Vamos nos encontrar às 8h no Tivoli”. Às 8 horas lá estava eu de gravata em frente ao tradicional Hotel Tivoli. O Gasparian chegou pontualmente num táxi, eu subi e em 15 minutos estávamos no… Palácio Presidencial. “O Mário (Soares) nos convidou para jantar”, disse o Fernando rindo, “você vai gostar dele, é um boa praça”.

Fomos recebidos pelo cerimonial do palácio, umas três ou quatro pessoas. Uma das encarregadas não demorou a explicar a ausência do anfitrião: “O Primeiro-ministro pede que aguardem no salão uns 15 minutos, pois ele está a ver a novela brasileira”. Nós sorrimos e sentamos no magnífico salão. O jantar foi divertidíssimo, pois o Primeiro-ministro Mário Soares, amigo do Gasparian, era um homem culto e muito divertido. E não perdia por nada nenhum capítulo de “Gabriela Cravo e Canela”, que liderava a audiência em Portugal em 1976.

Armando Bogus e Sônia Braga eram Nacib e Gabriela na novela brasileira que era sucesso em Portugal

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o quinquagésimo oitavo post da Série “Era uma vez… uma editora“.

Os malditos Laerte, Angeli, Adão, Glauco e Nani

Estreou em São Paulo, no último final de semana, o documentário Malditos cartunistas, que traça um panorama sobre a profissão de desenhista de humor no Brasil, desde o inesquecível O Pasquim, nos anos 60, até hoje. Dirigido e produzido de forma independente pelos também “malditos” Daniel Paiva e Daniel Garcia, este é o primeiro longa metragem feito sobre o assunto no Brasil. Foram 40 entrevistados, dos quais 25 entraram na versão final, entre eles Laerte, Angeli, Adão Iturrusgarai, Glauco e Nani.

Os realizadores tiraram do próprio bolso a verba para a produção do longa, mas a falta de recursos não interferiu na qualidade do trabalho. Malditos cartunistas já ganhou o prêmio do júri popular no festival de cinema Íbero Americano CineSul no Rio e participou do Cine Ouro Preto, onde teve excelente aceitação do público e crítica.

O filme já foi exibido em sessões especiais em algumas cidades, como São Paulo e Porto Alegre. Enquanto o longa não entra no circuito comercial (se entrar), dê uma olhada no trailer:

Estão disponíveis no canal oficial no Youtube algumas cenas inéditas que não entraram na versão final do longa. Vale conferir os depoimentos de Laerte, Angeli, Adão Iturrusgarai, Glauco e Nani (clique sobre o nome para abrir o respectivo vídeo). Outros nomes de peso no universo dos quadrinhos no Brasil também participaram do documentário, como Allan Sieber, Chiquinha, Fábio Zimbres, Schiavon, Reinaldo, Leonardo, Ziraldo, Arnaldo Branco, Jaguar, Guazzelli, Ota e André Dahmer.

Sobre “Millôr Definitivo”

Mais de 600 páginas de Millôr em estado puro

Este livro espetacular é o resultado de uma verdadeira operação “pente-fino” na obra de Millôr Fernandes. Muitas foram as pessoas que colaboraram no “rastreamento” das frases deste grande intelectual brasileiro, dentro e fora da L&PM. Mas foi aqui na editora que executamos a monumental tarefa de selecionar, reunir, “xerocar” e assinalar quase 10.000 frases. Esta equipe foi capitaneada por Jó Saldanha, Fernanda Veríssimo e por mim. Consultamos as coleções de “O Cruzeiro”, “Veja”, “Isto É”, “O Pasquim”, “Pif-Paf”, “Jornal do Brasil” e todos os livros publicados por Millôr como “30 anos de mim mesmo”, “A história é uma história”, “A verdadeira história do Paraíso”, “O livro vermelho dos pensamentos de Millôr”, “Fábulas fabulosas”, “Hai-kais”, “Poemas” entre muitos outros, além das 21 peças de teatro originais, criadas por ele (para quem não sabe, Millôr também traduziu mais de 100 peças de teatro, entre elas “Hamlet”, “Rei Lear” e “A megera domada” de Shakespeare, “Pigmaleão” de Bernard Shaw e “Gata em telhado de zinco quente” de Tennessee Williams. O material original, com as páginas de livros, jornais e cópias de revistas formariam uma pilha de mais ou menos três metros de altura, caso fossem empilhadas, é óbvio… Millôr analisou as 10 mil frases e cortou mais de 4 mil. Foram aprovadas 5.142 frases. O trabalho começou em 1988 e o livro saiu finalmente em 1994 com um mega lançamento na churrascaria Marius em Ipanema, Rio de Janeiro. Um mês depois, faríamos outro grande lançamento na pizzaria “Birra e Pasta” em Porto Alegre, numa grande festa comemorando os 20 anos da L&PM Editores. De lá para cá, este livro já vendeu bem mais de 50 mil exemplares.

São mais de 600 páginas de Millôr Fernandes em estado puro. Há no mercado uma edição de luxo em capa dura, no valor de R$ 74,00 e  a versão em bolso, com texto integral por R$ 29,00. É um fantástico conjunto de preciosidades intelectuais. Uma síntese do pensamento de Millôr Fernandes. Frases que marcaram nossa história recente e traduzem de maneira genial o que se viu, sonhou, sofreu e vibrou nestas últimasd décadas. (Ivan Pinheiro Machado)