A(s) possibilidade(s) de uma ilha – Parte III

Alexandre Boide conta a história dos Mangás* (Leia antes a parte I e parte II)

Livres da obrigação autoimposta de agradar somente a uma faixa de público específica, os mangás puderam atingir o grande público a partir de temas quase sempre inexplorados e evitados pelos quadrinhos ocidentais produzidos para o consumo de massa: a violência gráfica explícita e impactante de artistas como Buronson (de Hokuto no Ken) e Ryoichi Ikegami (de Crying Freeman); o retrato glamourizado da atividade criminosa na obra de quadrinistas como Takao Saito (de Golgo 13) e Monkey Punch (de Lupin III); a sensualidade despudorada do traço de Oh! great (de Tenjho Tenge); a ficção intimista dos retratos urbanos presentes nas histórias curtas de Yoshihiro Tatsumi e Jiro Taniguchi; a ficção científica apocalíptica de Katsuhiro Otomo (de Akira) e Masamune Shirow (de Ghost in the Shell); o terror visualmente fascinante de Junji Ito (de Uzumaki) e Hitosi Iwaaki (de Parasyte).

Da mesma forma como não se limita a uma determinada faixa etária, a popularidade dos mangás também não faz distinção de gênero. Aliás, a própria noção dos quadrinhos como uma diversão destinada a meninos pode ser considerada uma herança maldita do Comics Code, que vetava qualquer abordagem de temas românticos que não viesse impregnada de um escancarado viés moralizante. No Japão, as histórias para meninas estão presentes desde os primórdios das revistas de mangás, com títulos dedicados exclusivamente a elas. E, pelo menos desde a década de 1960, são elas que põem a mão na massa: com poucas exceções (como A princesa e o cavaleiro, de Osamu Tezuka), os grandes sucessos dos mangás para meninas são de autoras do sexo feminino. Nesse universo, personagens masculinos de aparência andrógina também são bastante frequentes, assim como romances envolvendo personagens do mesmo sexo, especialmente meninos.

"A princesa e o cavaleiro" de

"A princesa e o cavaleiro", de Osamu Tezuka

Passados mais de 60 anos desde a publicação de Shin-Takarajima, a aventura pioneira de Osamu Tezuka, existem mangás para todos os públicos, gostos, gêneros e faixas etárias. O leque de opções é o mais variado possível: desde as onipresentes sagas de samurais, histórias de ação e humor ininterruptos voltadas para meninos e as tradicionais aventuras de capa e espada até temas muito mais improváveis como gastronomia, pescaria, jogos de tabuleiro e degustação de vinhos finos. E isso sem levar em conta um mercado de quadrinhos alternativos repleto de subgêneros de assimilação nem sempre tão fácil, como lolicon (ou “complexo de Lolita”, com suas fantasias sexuais envolvendo adolescentes) ou ero-guro (“erótico grotesco”, cuja denominação dispensa maiores explicações).

Os dois primeiros mangás a ser lançados pela L&PM são um bom exemplo dessa diversidade. Os dois volumes de Solanin, de Inio Asano — publicado na revista Weekly Young Sunday, da editora Shogakukan, entre 2005 e 2006 —, narram a luta de um jovem casal de recém-formados para se integrar à sociedade adulta sem abrir mão de seus sonhos e ideais. Transformada em filme no Japão, a série foi indicada ao Harvey Award de Melhor Edição de Material Estrangeiro ao ser publicada nos Estados Unidos, em 2008. Já Aventuras de menino, do veterano Mitsuru Adachi, é uma compilação de sete histórias publicadas na revista Big Comic Original, também da Shogakukan, entre 1998 e 2006, e têm em comum o fato de tratarem de recordações do universo infantil, um terreno que o autor explorou com maestria em seus popularíssimos mangás para meninos.

Apesar de tudo isso, ainda há quem pense que os quadrinhos japoneses se resumem à violência extrema e imagens que beiram o pornográfico. Afinal, no Brasil, os mangás são um fenômeno um tanto recente. Alguns títulos chegaram a ser publicados no final da década de 1980 e no início dos anos 1990, mas foi só no ano 2000 que eles desembarcaram por aqui com toda a força, a reboque do sucesso dos desenhos animados na televisão, e respeitando na medida do possível o formato de publicação das histórias em volumes encadernados no Japão. Nessa época, não havia muita gente disposta a apostar no potencial de histórias em quadrinhos em preto e branco feitas para ser lidas “de trás para a frente”. Hoje elas são maioria nas bancas, e estão chegando ao mercado de pocket books através da maior coleção de livros de bolso do país.

(Fim)

(leia aqui a parte II)

*Alexandre Boide é tradutor e coordenador editorial dos Mangás que serão publicados no final de 2011 pela L&PM. “A(s) possibilidade(s) de uma ilha” foi escrito especialmente para este Blog e será publicado em três partes, do dia 01 ao dia 03 de setembro. Não deixe de acompanhar.

2 ideias sobre “A(s) possibilidade(s) de uma ilha – Parte III

  1. Luciano A.Santos

    Creio que o traço praticado nos mangás da atualidade também ajudaram bastante nesta popularização dos títulos por aqui: praticamente todos os protagonistas tem cabelo espetado, e traços sutis, quase femininos – muitas vezes andróginos. Um traço mais forte, como de Hokuto no Ken, JoJo’s Bizarre Adventure e até mesmo City Hunter fariam torcer, infelizmente, alguns narizes.

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