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Julia da Rosa Simões comenta desafio ao traduzir Montaigne

Jornal Zero Hora – Segundo Caderno, 19/08/2016

Julia da Rosa Simões está vertendo para o português os “Ensaios” do autor. O primeiro volume já está nas livrarias

Julia Simões está traduzindo os Ensaios de Michel de Montaigne (1533 – 1592) para a L&PM Editores. Montaigne deixou três volumes da obra, sendo que o inicial foi dividido em dois tomos. O primeiro já está nas livrarias. O segundo deve ser lançado nos próximos meses. No novo volume, a tradutora deparou com o termo “chacunière”, a partir do qual escreveu o texto a seguir.

Julia Simões visitou no ano passado o castelo no qual Montaigne escreveu os "Ensaios", em Bordeaux, na França.   Ao lado, a capa do primeiro volume traduzido por Julia, já nas livrarias

Julia Simões visitou no ano passado o castelo no qual Montaigne escreveu os “Ensaios”, em Bordeaux, na França. Ao lado, a capa do primeiro volume traduzido por Julia, já nas livrarias

 No capítulo 34 de seus Ensaios, intitulado De um defeito de nossa administração, Montaigne aborda um hábito de seu pai, que reconhece como valoroso mas que teme não conseguir reproduzir: “Método que sei elogiar mas não seguir”. O pai de Montaigne contratava alguém para escrever um diário, como diz o ensaísta, para registrar “as memórias da história de sua casa”. Coisa útil para quando surgisse uma dúvida ou dificuldade, mas também agradável quando o tempo apagasse as lembranças.

Montaigne encerra o ensaio com uma frase que contém uma expressão que me encanta: “Usage ancien, que je trouve bon à rafraichir, chacun en sa chacunière: et me trouve un sot d¿y avoir failly”. Chacun en sa chacunière. Não consigo não sorrir. Fico fascinada com a palavra chacunière, que soa a neologismo e, ao mesmo tempo, a arcaísmo. Antes de dar uma conferida no dicionário, penso na expressão “cada um com seu cada qual”. Que é boa, me agrada em português. Mas não é a mesma coisa: lembra demais o batido “sempre tem um pé torto para um chinelo velho”. Comentei-a com um amigo, apreciador das sutilezas da língua, que sugeriu uma versão em carioquês: “cada um com seus pobrema”. Ok, vale descontrair, mas não é exatamente isso o que está em questão para Montaigne.

Ao ir atrás do significado e da etimologia de “chacunière”, não me surpreendi ao ver que um dicionário como o Le Petit Robert não a registra. O excelente Trésor de la Langue Française Informatisé, no entanto, sempre corresponde às expectativas. Segundo ele, a palavra diz respeito a um local para o qual o indivíduo se retira, como uma casa ou um apartamento. Um trecho de Théophile Gautier, de 1863, confirma o uso, que segundo o dicionário é informal. Outro uso, menos comum mas também possível, seria o de considerar a chacunière a mulher do chacun. Muito menos interessante. O Grand Robert, por sua vez, dá a palavra como alusão arcaica à “casa de cada um” (maison de chacun), algo como um mutante “individuário” (casa do indivíduo).

Para quem gosta de perder tempo com essas coisas, como eu (em vez de seguir em frente com a tradução), foi bacana descobrir, ainda no TLFi, agora na seção Etimologia e História da Palavra, que o primeiro uso da expressão data de 1532. Rabelais, em seu Pantagruel (capítulo 14), já dissera: “Ainsi chascun s¿en va à sa chascunière”.

Interessante… 1532! Estou trabalhando com a versão de 1595 do Montaigne. Pontas parecem se unir – na minha cabeça, pelo menos. Algo pisca para mim, não sei bem o quê. Rabelais, um dos criadores da prosa francesa, segundo Sainéan em La langue de Rabelais, de 1922-23. (O oráculo Google pode nos levar a maravilhas.) Para Sainéan, chascunière seria uma “formação ou derivado analógico” de chaumière (choupana, cabana). A palavra também pode ser encontrada, segundo esse autor, em De Périers e Montaigne, em Madame de Sévigné e Scarron – todos fascinados, informa uma nota da edição da Bibliothèque de la Pleiade, por essa “fantasia verbal de consonância jurídica”.

Fico devendo na consonância jurídica, mas já estou satisfeita. É isso mesmo. Também em Rabelais chacunière tem a ver com a casa, o lugar de cada um. Daí que minha tradução da frase fica: “Costume antigo, que considero bom reavivar, cada um em seu lar; e me considero um tolo por ter falhado nisso”. Perco a sonoridade, a alusão, mas consigo manter o sentido.

E não é que, de repente, me ocorre a tradução perfeita, ou o equivalente exato da expressão para o português coloquial atual? O infame “cada um no seu quadrado”.

E não é que, de repente, me ocorre a tradução perfeita, ou o equivalente exato da expressão para o português coloquial atual? O infame “cada um no seu quadrado”.

 

Um grande presente para os fãs de Flaubert: o prefácio de “O idiota da família”

Gustave Flaubert nasceu em 12 de dezembro de 1821. Um gênio que daria origem à Madame Bovary, mas que quando criança foi considerado literalmente um idiota. Jean-Paul Sartre era obcecado por ele. Tanto que dedicou anos da sua vida a escrever a biografia definitiva de Flaubert. Em O idiota da família, Sartre proporciona ao leitor um livro de cerca de 3.000 páginas, dividido em três tomos, que é lido como uma grande aventura. Até hoje inédito em língua portuguesa, O idiota da família finalmente poderá chegar às mãos dos brasileiros em nossa língua mater. A L&PM Editores já recebeu da tradutora Júlia da Rosa Simões as primeiras mil páginas do volume 1 que será lançado em meados de 2013. E como hoje é aniversário de Flaubert, aqui vai um presente a todos aqueles que aguardam ansiosamente a chegada deste que é considerado um projeto soberbo, o livro que encerra a obra sartriana. Com vocês, o prefácio de O idiota da família finalmente em português:

PREFÁCIO

O idiota da família é a continuação de Questões de método. Seu tema: o que podemos saber de um homem, hoje em dia? Pareceu-me que só poderíamos responder a essa pergunta através do estudo de um caso concreto: o que sabemos – por exemplo – de Gustave Flaubert? Isso significa totalizar as informações de que dispomos sobre ele. Nada prova, de início, que essa totalização seja possível e que a verdade de uma pessoa não seja plural; os dados são muito diferentes por natureza: ele nasceu em dezembro de 1821, em Rouen ­– eis um; ele escreve à amante, muito tempo depois: “A Arte me espanta” – eis outro. O primeiro é um fato objetivo e social, confirmado por documentos oficiais; o segundo, também objetivo quando nos atemos à coisa dita, por seu significado remete a um sentimento vivido, e nada decidiremos sobre o sentido e o alcance desse sentimento se antes não tivermos estabelecido se Gustave é sincero, em geral e, particularmente, nesta circunstância. Não corremos o risco de chegar a camadas de significados heterogêneos e irredutíveis? Este livro tenta provar que a irredutibilidade é apenas aparente e que cada informação colocada em seu devido lugar torna-se a parte de um todo que continua a fazer-se e, ao mesmo tempo, revela sua profunda homogeneidade com todas as outras.

Porque um homem nunca é um indivíduo; seria melhor chamá-lo de universal singular: totalizado e, por isso mesmo, universalizado por sua época, ele a retotaliza ao reproduzir-se nela como singularidade. Universal pela universalidade singular da história humana, singular pela singularidade universalizante de seus projetos, ele exige ser estudado simultaneamente pelas duas pontas. Precisaremos encontrar um método apropriado. Apresentei os princípios de um em 1958 e não repetirei o que disse então: prefiro mostrar, cada vez que necessário, como ele se faz no próprio trabalho para obedecer às exigências de seu objeto.

Uma última palavra: por que Flaubert? Por três motivos. O primeiro, bastante pessoal, há muito tempo deixou de valer, apesar de estar na origem dessa escolha: em 1943, ao reler sua Correspondência na má edição Charpentier, tive a sensação de ter contas a ajustar com ele e que devia, com vistas a isso, conhecê-lo melhor. Desde então, minha antipatia inicial transformou-se em empatia, única atitude exigida para compreender. Por outro lado, ele se objetivou em seus livros. Qualquer pessoa dirá: “Gustave Flaubert é o autor de Madame Bovary”. Qual, então, a relação do homem com a obra? Eu nunca o disse até agora. Nem ninguém, que eu saiba. Veremos que é dupla: Madame Bovary é derrota e vitória; o homem que se manifesta na derrota não é o mesmo exigido para sua vitória; será preciso entender o que isso significa. Por fim, suas primeiras obras e sua correspondência (treze volumes publicados) manifestam-se, veremos, como a confidência mais estranha, a mais facilmente decifrável: como se ouvíssemos um neurótico falando “ao acaso” no divã do psicanalista. Acreditei que seria permitido, para esta difícil demonstração, escolher um tema fácil, que se revela facilmente e sem o saber. Acrescento que Flaubert, criador do romance “moderno”, está na interseção de todos os nossos problemas literários de hoje.

Agora, é preciso começar. Como? Pelo quê? Pouco importa: penetramos em um morto da maneira que quisermos. O essencial é partir de um problema. Daquele que escolhi, geralmente pouco se fala. Leiamos, no entanto, essa passagem de uma carta à srta. Leroyer de Chantepie: “É de tanto trabalhar que consigo calar minha melancolia natural. Mas o velho fundo muitas vezes reaparece, o velho fundo que ninguém conhece, a chaga profunda sempre escondida”[1]. O que isso quer dizer? Uma chaga pode ser natural? Seja como for, Flaubert nos remete à sua proto-história. O que se precisa tentar conhecer é a origem dessa chaga “sempre escondida” e que, em todo caso, tem origem em sua primeira infância. Este não será, acredito, um mau começo.

[1]Croisset, 6 de outubro de 1864.

Lançamento de peso: os três volumes de "O idiota da família" na edição francesa. O primeiro volume chega em meados de 2013 pela L&PM