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O prazer de traduzir Maigret

Desde 1986, Paulo Neves dedica-se à tradução. Para a L&PM, já traduziu, entre outros, Sartre, Balzac, Stendhal, Rousseau e muitas histórias de Simenon vividas pelo famoso comissário Jules Maigret. No momento que acaba de entregar mais um Simenon inédito no Brasil, Uma confidência de Maigret (que ele considera um dos melhores que já traduziu), Paulo nos falou sobre Maigret, processo de tradução e sua carreira como escritor e poeta. Vale a pena ler essa entrevista e descobrir o que pensa e sente o responsável por fazer com que os livros de Simenon – e de tantos outros autores – sejam lidos em português. Aliás, em bom português.

L&PM: Você acaba de traduzir o seu 16º Maigret. Qual é a sua relação com as histórias do famoso comissário criado por Georges Simenon?

Paulo Neves: Desde que traduzi o primeiro em 2006, curiosamente Memórias de Maigret, passei a ter uma relação muito íntima com esse personagem. Não só porque gosto do gênero policial, das investigações de um Dupin, de um Sherlock Holmes, de um Hercule Poirot. O caso de Maigret é diferente: para ele importa menos decifrar do que compreender o crime, com todas as suas implicações sociais e psicológicas. Sua maneira de investigar, ao mesmo tempo metódica e compassiva, suas dúvidas, a consciência de suas limitações e a honestidade consigo mesmo, contêm algo de uma ética estoica. Simenon não muda muito o quadro de suas histórias: os lugares e os crimes se repetem, ele insiste nos hábitos, nos cachimbos de Maigret, mas isso de modo algum cansa o leitor, que aos poucos vai se impregnando do sentido mais profundo dessa rotina. Foi o que descobri também como tradutor, confrontado à linguagem despojada e aos diálogos curtos que Simenon utiliza para que as coisas fiquem, mais do que entendidas, subentendidas. Isso requer muita precisão narrativa.

Há outro aspecto que me atrai particularmente nas histórias de Maigret. São as paisagens apenas entrevistas de Paris, por ligeiras pinceladas impressionistas que mostram as ruas, as árvores, o céu, as mudanças de estação do ano, a vida miúda da cidade. Estive lá uma única vez, exatamente há quarenta anos, muito antes de sonhar que seria tradutor e que passaria a habitá-la em imaginação através de vários autores franceses traduzidos, como Balzac, por exemplo. Mas Simenon tem sido meu guia favorito, talvez porque reencontro, nas suas descrições breves, aquela impressão vaga da minha memória distante, como o vestígio de um sonho. Para quem lê ou para quem traduz, a imaginação é mais importante do que a presença real. Pode ser que algum dia eu retorne a Paris, mas nunca deixei de vê-la através dos olhos de Maigret.

L&PM: Na sua opinião, quais são os melhores Maigret de Simenon?

PN: Difícil responder, porque não lembro detalhes de todos que traduzi. Citei antes Memórias de Maigret, que é interessante pela reconstituição dos começos de sua carreira. Outros, como A louca de Maigret, Maigret e o ministro, Maigret em Vichy, me agradaram pela trama ou pelos personagens que contracenam. Mas vou destacar o último que traduzi, Uma confidência de Maigret, porque condensa o drama desse personagem que, encarregado de investigar, gostaria às vezes de suspender o julgamento (ou, como ele diz, de ter escolhido outra profissão). Um crime é cometido e a imprensa, o público, os juízes não têm dúvidas sobre o culpado que, no entanto, se declara inocente. Maigret não tem provas suficientes para incriminá-lo e tenta em vão aprofundar uma investigação. O que ele relata é sua impotência diante da pressa com que a sociedade busca encontrar culpados ou explicações para tudo o que acontece, quando às vezes é preciso esperar longamente. É uma história quase filosófica pela amplitude de suas reflexões. Mas esse é um ponto de vista pessoal, da minha predileção.  O leitor encontrará aspectos da mesma filosofia do cotidiano em todas as histórias de Maigret.

L&PM: Além de Simenon, você já traduziu, para a L&PM, clássicos da literatura e títulos das coleções Biografias e Encyclopaedia. Existe alguma preferência, na tradução, por determinado gênero literário?

PN: Já traduzi para a L&PM clássicos da literatura como O vermelho e o negro de Stendhal, clássicos da filosofia como Discurso do método de Descartes, biografias de artistas como Van Gogh ou estudos sobre o economista Keynes, por exemplo, para a Coleção Encyclopaedia, e quase sempre foi com gosto que traduzi. Posso dizer que não tenho uma preferência por gênero literário, contanto que o livro seja bem escrito e que o assunto me interesse. Claro que existem diferenças ao traduzir: um livro de ficção ou mesmo de filosofia dão muito mais trabalho e requerem uma atenção redobrada na escrita. Mas sempre tive um interesse amplo e diversificado em minhas leituras. Gosto de quase tudo e gosto principalmente de variar minhas traduções. Com exceção talvez do Maigret, que se tornou ao mesmo tempo um prazer e uma fatalidade, pois nele reconheço, de certo modo, uma imagem transposta da minha condição de tradutor.

L&PM: Qual é a sua trajetória profissional? Quando começou a traduzir? E quais seriam, a seu ver, as características necessárias a um bom tradutor?

PN: Comecei a trabalhar como jornalista em São Paulo, onde morei de 1967 a 1981. Foram diversas experiências em agência de notícias, rádio, jornal, TV, até mesmo no setor de jornalismo empresarial. Mas eu não tinha diploma, que naquela época não era exigido, e, quando voltei a viver em Porto Alegre, tive dificuldade de arranjar emprego. Foi essa circunstância que me levou a procurar traduções, já que eu tinha um conhecimento razoável do francês e do inglês. E foi justamente a L&PM que me ofereceu o primeiro trabalho, Pés nus sobre a terra sagrada, um belo livro de um antropólogo que recolhe a palavra dos índios norte-americanos.  Daí por diante as encomendas foram se sucedendo e me tornei um tradutor de tempo integral, me especializando cada vez mais no francês. Isso modificou meu modo de vida, porque o tradutor, como todos sabem, é um trabalhador solitário, hoje terceirizado. Por outro lado, fui compelido a acompanhar o processo de mudança dos instrumentos de escrita, da máquina de escrever dos anos 1980 até chegar na Internet, quando o que mais aprecio ainda é escrever com papel e lápis. Muitas vezes me perguntei como pude resistir tanto tempo nessa condição de enclausuramento forçado diante da tela. A única explicação que encontro é que eu possuía, sem saber, certas características psicológicas indispensáveis para esse tipo de trabalho, como ser paciente, metódico e inventivo quando necessário. Características que talvez se possa generalizar a todo bom tradutor e que reconheço, mais uma vez, em Maigret.

L&PM: Além de tradutor, você também é poeta. Continua escrevendo?

PN: Sempre gostei de escrever, mas nunca tive um projeto de ser escritor. Cheguei a redigir um texto, a partir de uma pesquisa da Funarte sobre “Arte e técnica”, que acabou sendo publicado por uma pequena editora de São Paulo em 1985, intitulado Mixagem, o ouvido musical do Brasil. Mas foi só depois que comecei a traduzir que a escrita pessoal se tornou de fato, talvez por necessidade de um contrapeso interno, um exercício diário e sistemático, nas horas que me restavam à noite após o trabalho diurno. Em 2006 saiu pela Companhia das Letras um livro, Viagem, espera, no qual reúno poemas e textos em prosa escritos ao longo de vários anos. Posteriormente, mantive durante um ano e meio um blog (www.nolimiar.wordpress.com) que também resultou num livro, No limiar, ainda virtual, não publicado em papel. Acho que a escrita independe do seu meio de difusão, embora o livro seja o modo melhor de guardá-la. Mas para mim ela é antes, ou passou a ser, uma necessidade vital, um exercício sem finalidade como a poesia. Continuo escrevendo, portanto, mas em trânsito, intransitivamente.

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Onde há fumaça… há literatura

Já não se fazem mais escritores como antigamente. Pelo menos não daqueles de cachimbo em punho (ou nos lábios). Acessório que já foi tão fundamental quanto a máquina de escrever, ele parece ter caído em desuso. Ou porque os escritores de hoje andam mais saudáveis. Ou porque a moda mudou. De uma forma ou de outra, que o cachimbo tem (ou tinha) estilo, isso é verdade. Jack Kerouac e seus companheiros que o digam…

Jack Kerouac

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Hunter Thompson

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Raymond Chandler

William Faulkner