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Adeus a Saramago, o único Prêmio Nobel da língua portuguesa

Por Ivan Pinheiro Machado

Aquela quarta-feira de outubro de 1998 parecia uma quarta-feira comum na Feira do Livro de Frankfurt. Os corredores apinhados de editores, agentes e livreiros em geral cumpriam a rotina de vender e comprar livros e direitos de publicação. O segundo andar da ala 5, no enorme espaço destinado às Feiras, era ocupado pelos estandes das editoras espanholas, italianas, gregas, turcas e pelo estande oficial do Brasil que ficava há poucos metros do estande oficial de Portugal. Um espaço bem grande, onde os editores portugueses recebiam seus clientes e amigos.

Estávamos tomando o primeiro café do dia no estande brasileiro, prontos para cumprir uma agenda que inclui uma média de 10 reuniões por dia, de quarta à sábado, quando ouviu-se uma explosão de gritos, risos e assovios vindos do estande ao lado. Parecia gol de Portugal. Os 30 hectares da Feira de Frankfurt, com seus longos corredores acarpetados e suas esteiras rolantes que comunicam os pavilhões, costumam guardar um certo recato silencioso. Negócios de milhões de dólares são sussurrados pelos estandes. Não é comum gritos, assovios, cantorias. Salvo quando um autor é comunicado de que acaba de ganhar o prêmio Nobel.

Enquanto saíamos curiosos de onde estávamos, tivemos tempo de ver um senhor magro e alto ser arrastado em triunfo por uma multidão de conterrâneos emocionados que cantava o hino da Revolução dos Cravos, “Grândola Vila Morena”. José Saramago havia recebido a notícia, coincidentemente no meio dos livros, em território do seu país, na grande feira internacional. A correria foi infernal. Em minutos, centenas de jornalistas, emissoras de TVs, curiosos e seguranças engolfavam o estande português marcado por aquele momento histórico. Todos estavam comovidos, inclusive nós brasileiros e nossa velha língua portuguesa. José Saramago escreveu, entre outros romances, “Evangelho segundo Jesus Cristo”, “A jangada de Pedra”, Ensaio sobre a cegueira”, “Memorial do convento” e o maravilhoso “O ano da morte de Ricardo Reis”.

Hoje pela manhã, enquanto a Sérvia estava prestes a derrotar a Alemanha na segunda rodada da Copa do Mundo, recebi a notícia de que José Saramago morrera na sua cidade de Lazarota, nas Ilhas Canárias, aos 87 anos. É sempre triste receber a notícia da morte de um homem bom. E com José Saramago morreu um símbolo de humanismo, fé na utopia e esperança de um mundo mais justo e igual. Membro do Partido Comunista Português, foi um dos pilares de sustentação intelectual da famosa Revolução de Cravos de 1975, que acabou com a terrível ditadura Salazarista. Aqueles “que são jovens há menos tempo do que nós”, como diz o Anonymus Gourmet, talvez não saibam. Mas não foi pouco acabar com a sanguinária tirania de Salazar, um déspota à altura dos seus piores colegas latinoamericanos da época. E Saramago lutou pelos seus ideais, foi perseguido, preso e, por fim, venceu a ditadura. Morreu fiel a sua utopia, acreditando que era possível haver um mundo melhor do este em que vivemos.

José Saramago recebendo o Prêmio Nobel de Literatura 1998