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Obrigado Doutor Scliar!

Por Ivan Pinheiro Machado

Era o ano de 1977, a L&PM Editores, literalmente, engatinhava. Estávamos na Livraria Lima, na rua Borges de Medeiros em Porto Alegre, quando entrou o jovem escritor e médico Moacyr Scliar. Ele já havia escrito o livro de contos “O carnaval dos animais” e tivera uma excelente repercussão de público e crítica com dois romances, “A guerra no Bom Fim” e “O exército de um homem só”. Começamos a conversar, ele cumprimentou-nos pela ousadia de fazer uma editora naquela época tão difícil, econômica e politicamente. Foi um papo simpático, o Lima e eu ficamos muito tocados pela atenção. Tínhamos 24 e 23 anos, respectivamente, e uma editora com 25 livros publicados e dois anos e meio de vida. Poucos dias depois, o telefone tocou na “sede” da L&PM, na rua 24 de Outubro, numa velha casa que dividíamos com o arquiteto Roque Fiori (tínhamos duas salas).

– Vou direto ao ponto. Disse Scliar. Vocês querem publicar um livro meu?

"Doutor" Scliar entre Edgar Vasques, Luis Fernando Veríssimo e Josué Guimarães, o grupo de "Pega pra Kaputt"

Ficamos eufóricos. Recém havíamos publicado “É tarde para saber” de Josué Guimarães, e “Devora-me ou te decifro” de Millôr Fernandes. A editora ia bem e publicar Scliar seria um passo muito importante. Foi assim que editamos “Mês de Cães Danados”, um romance que se passa na época da célebre Campanha da Legalidade, quando Leonel Brizola evitou o golpe militar que teria sucesso três anos mais tarde em 1964. Neste mesmo ano de 1977, fizemos “Pega pra Kaputt”, o primeiro (e único) romance coletivo brasileiro que misturava texto e quadrinhos, com Josué Guimarães, Moacyr Scliar, Luis Fernando Veríssimo e Edgar Vasques na HQ e emplacamos o livro mais vendido da Feira do Livro de Porto Alegre com “Mês de Cães Danados”. Logo no ano seguinte, publicamos “Os Deuses de Raquel”, “”Doutor Miragem”. Em 1979, editamos “Os voluntários”. Em 1980, reeditamos o maravilhoso “O exército de um homem só” e “A guerra no Bom Fim”. Em 1983, relançamos o premiadíssimo “O centauro no jardim”, lançado pela Editora de Sérgio Lacerda, a Nova Fronteira, em 1980.

Enfim, de lá para cá, foram 34 anos de convívio e 24 livros lançados.

Ontem, recebemos a notícia que temíamos desde que, no final de janeiro, Scliar hospitalizara-se acometido de um Acidente Vascular Cerebral. O Doutor, como o chamávamos, tinha lutado, mas não conseguiu resistir à gravidade da doença. Em dezembro, Paulo Lima e eu encontramos Scliar no vôo que ia para o Rio. Nós íamos para uma reunião e ele para uma sessão na Academia. No final da tarde, nos encontramos novamente no Santos Dumont, para pegar o vôo de volta. Na ocasião, conversamos bastante e ele falou de seus planos para o futuro, que eram muitos. Estava trabalhando em vários projetos, tinha “uns três ou quatro” romances na cabeça e estava se dedicando a dois. Gentil como sempre, se disse fascinado com a distribuição dos pockets da L&PM: “Semana passada eu estava no interior do interior de Minas para uma palestra e estava lá o display dos pockets, e tinha livros meus!”

Numa carreira que teve seus primeiros passos com o livro “Histórias de um médico em formação” (uma obra de juventude, escrita em 1962, que ele não gostava muito de incluir na sua bibliografia) e “Carnaval dos Animais”, de 1972, foram mais de 70 títulos entre ensaios, contos e romances. A qualidade, inventividade e originalidade da sua obra o levaram ao reconhecimento nacional, internacional (foi traduzido em várias línguas) e à Academia Brasileira de Letras.

Nascido e criado no Bom Fim, o bairro judeu de Porto Alegre, ele soube como ninguém expressar os mistérios ocultos da suas ruas, as múltiplas vozes de emigrantes, refugiados, o humor ácido cultivado numa tradição de sofrimento e fugas. E esta foi sua grande marca. Traduzir esta compatibilidade de uma cultura universal para os nossos trópicos. Sem perder a alma de tradições ancestrais. Scliar, assim, foi universal, razão pela qual seus livros transitam pelo mundo com naturalidade em várias línguas.

Mas recordando a conversa leve e divertida no aeroporto Santos Dumont, um mês e meio atrás, não posso deixar de pensar na velha e batida precariedade das nossas vidas. Scliar estava bem, lépido em seus 73 anos, rápido como sempre, apressado e cheio de planos. Scliar tinha uma urgência em viver. E ele vivia muito através de suas histórias. Escrevia sempre, sempre.

A multidão dos seus leitores terá como consolo uma obra vasta, de enorme qualidade. Mas aqueles que ficam privados dele terão muita saudade. Scliar era amigo e solidário. Não cultivava nem uma grama de inveja, tão comum entre nós; estimulava os jovens escritores como muito poucos, tinha sempre uma palavra de carinho para todos e usava seu espaço na imprensa para divulgar tudo o que ele achava que tinha qualidade ou era promissor. Aqui na L&PM temos o exemplo clássico da generosidade do Doutor. No final dos anos 90, atravessamos uma crise séria, quase fechamos as portas. Scliar, preocupado, acompanhou a “crise” desde os piores momentos, até o final feliz. E nos ajudou muito mais do que ele imaginava. Pois o voto de confiança que depositou em nós, os livros novos que editamos naquele momento incerto, a sua adesão irrestrita à coleção de bolso, lá em 1997, quando todos – autores, imprensa e livreiros – duvidavam que pudesse dar certo, foi fundamental para chegarmos até aqui. Hoje, a L&PM tem a maior coleção de bolso do país e um lugar de destaque entre as grandes editoras brasileiras. O Doutor Scliar faz parte disso e nós seremos gratos para sempre.