Arquivo da tag: A guerra no Bom Fim

Terminou a mais brasileira das Feiras do Livro de Frankfurt

Terminou neste domingo, 13 de outubro, mais uma Feira Internacional do Livro de Frankfurt. As novidades que a L&PM trouxe de lá logo serão divulgadas. Por enquanto, fica aqui mais uma imagem do Brasil em Frankfurt, registrada por nossos editores – a edição alemão de A guerra no Bom Fim. 

Clique sobre a imagem para ver mais fotos

Clique sobre essa imagem para ver mais fotos

E parece que o Brasil está mesmo na moda – e na roda –  das feiras literárias internacionais, pois será o país homenageado também nas Feiras de Paris em 2015, Londres em 2016 e Nova York em 2017. O que anda se dizendo por aí, no entano, que depois dos R$ 18,9 milhões gastos pelo governo brasileiro em Frankfurt, as torneiras serão fechadas nos próximos eventos do gênero.

É agosto: mês de cães danados

A primeira capa de "Mês de cães danados", de Moacyr Scliar

Há exatos 35 anos a L&PM editava o romance “Mês de cães danados” de Moacyr Scliar (1937-2011), então um jovem médico de 39 anos. Scliar já era conhecido nacionalmente por ser o escritor brasileiro que se destacava por abordar a chamada “temática judaica”. Sua literatura tratava do périplo dos judeus que fugiam das perseguições na Europa até a nova vida no Brasil. Scliar nasceu e cresceu no Bom Fim, o bairro judeu de Porto Alegre, filho de imigrantes russos. Até lançar “Mês de cães danados” ele era conhecido como autor de três clássicos da ficção judaico-brasileira; “A guerra no Bom Fim”, “O exército de um homem só” e “Os deuses de Raquel”.

Neste romance ele foge da sua temática para abordar o episódio da “Legalidade” no mês de agosto de 1961. Toda sua narrativa é construída em torno dos últimos dias de agosto – mês tido popularmente como “o mês dos cães danados” – daquele agitado ano de 1961, imediatamente à renúncia do então presidente Jânio Quadros. Os militares tentavam impedir que João Goulart, o vice-presidente, assumisse a presidência da República.

A capa atual, da Coleção L&PM Pocket

Através de uma narrativa nervosa – que se passa durante a crise da “legalidade” – este livro cativa o leitor até as suas últimas linhas. A trajetória de um homem, de tradicional família da fronteira do Rio Grande do Sul até a sarjeta de uma rua no centro de Porto Alegre. De rico filho de fazendeiro à mendigo e morador de rua. A história conta esta vida atribulada, os anos agitados, as aventuras, os amores e o heroísmo. “Mês de cães danados” é um livro especial dentro da extensa bibliografia de Scliar e uma das raras obras de ficção dentro da literatura brasileira a abordar ficcionalmente este que foi um mais críticos e importantes momentos da nossa história recente.

Para marcar o Dia da Imigração Judaica

“Havia guerra na Europa, mas a hora era de calma no Bom Fim. Os grandes negros da Colônia Africana ainda dormiam, ressonando forte e cheirando a cachaça. Três mulatas dormiam dilatando as narinas com volúpia. As gordas avós judias dormiam, os pálidos judeuzinhos dormiam, de boca aberta e respiração ruidosa por causa das adenóides. As mães judias dormiam seu sono leve e intranqüilo. Os pais judeus dormiam; logo acordariam e iriam, bocejando, acender os fogões de lenha, tossindo e lacrimejando quando as achas úmidas começassem a desprender fumaça.” (Moacyr Scliar em “A guerra no Bom Fim”)

Se há um escritor brasileiro que retratou a comunidade judaica no Brasil, ele é o saudoso Moacyr Scliar. Lembramos dele porque hoje, 18 de março, é o Dia Nacional da Imigração Judaica. E para marcar a data, aqui vão outros trechos de escritores judeus que a casa oferece. Além de Woody Allen, Allen Ginsberg e Franz Kafka, ainda há Isaac Singer, Freud e muitos outros.

“E, como se seu Q. I. já não o isolasse bastante, sofria injustiças e perseguições por causa de sua religião, principalmente vindas de seus pais. É verdade que tanto seu pai quanto sua mãe frequentavam a sinagoga, mas não conseguiam admitir a ideia de que o filho fosse judeu. ‘Como foi acontecer isto?’ perguntava seu pai, indignado. Minha cara não mente, pensava Weinstein todo dia ao barbear-se. Tinha sido confundido várias vezes com Robert Redford, mas sempre por um cego. E havia também Feinglass, outro amigo de infância.”

“Por que nego o maná para os outros? / Porque o nego para mim. / Por que me neguei para mim mesmo? / Quem mais me rejeitou? / Agora acredito que você seja adorável, minha alma, alma de Allen, Allen – e você tão amada, tão doce, tão lembrada na sua verdadeira amabilidade, / seu Allen original nu respirando / alguma vez você voltará a negar alguém? / Querido Walter, obrigado pelo seu recado / Proíbo-o de deixar de tocar-me, homem a homem / Autêntico Americano / Bombardeios rasgam o céu (…)

“Tudo isso não era, por certo, um fenômeno isolado, as coisas se passavam de maneira semelhante em grande parte dessa geração de transição judaica, que emigrou do campo para as cidades ainda relativamente religiosa; acontecia espontaneamente, apenas acrescentava à nossa relação, à qual já não faltavam agudezas, mais uma bem dolorosa. Por outro lado também aqui tu deves, do mesmo modo que eu, acreditar em tua ausência de culpa…”

Obrigado Doutor Scliar!

Por Ivan Pinheiro Machado

Era o ano de 1977, a L&PM Editores, literalmente, engatinhava. Estávamos na Livraria Lima, na rua Borges de Medeiros em Porto Alegre, quando entrou o jovem escritor e médico Moacyr Scliar. Ele já havia escrito o livro de contos “O carnaval dos animais” e tivera uma excelente repercussão de público e crítica com dois romances, “A guerra no Bom Fim” e “O exército de um homem só”. Começamos a conversar, ele cumprimentou-nos pela ousadia de fazer uma editora naquela época tão difícil, econômica e politicamente. Foi um papo simpático, o Lima e eu ficamos muito tocados pela atenção. Tínhamos 24 e 23 anos, respectivamente, e uma editora com 25 livros publicados e dois anos e meio de vida. Poucos dias depois, o telefone tocou na “sede” da L&PM, na rua 24 de Outubro, numa velha casa que dividíamos com o arquiteto Roque Fiori (tínhamos duas salas).

– Vou direto ao ponto. Disse Scliar. Vocês querem publicar um livro meu?

"Doutor" Scliar entre Edgar Vasques, Luis Fernando Veríssimo e Josué Guimarães, o grupo de "Pega pra Kaputt"

Ficamos eufóricos. Recém havíamos publicado “É tarde para saber” de Josué Guimarães, e “Devora-me ou te decifro” de Millôr Fernandes. A editora ia bem e publicar Scliar seria um passo muito importante. Foi assim que editamos “Mês de Cães Danados”, um romance que se passa na época da célebre Campanha da Legalidade, quando Leonel Brizola evitou o golpe militar que teria sucesso três anos mais tarde em 1964. Neste mesmo ano de 1977, fizemos “Pega pra Kaputt”, o primeiro (e único) romance coletivo brasileiro que misturava texto e quadrinhos, com Josué Guimarães, Moacyr Scliar, Luis Fernando Veríssimo e Edgar Vasques na HQ e emplacamos o livro mais vendido da Feira do Livro de Porto Alegre com “Mês de Cães Danados”. Logo no ano seguinte, publicamos “Os Deuses de Raquel”, “”Doutor Miragem”. Em 1979, editamos “Os voluntários”. Em 1980, reeditamos o maravilhoso “O exército de um homem só” e “A guerra no Bom Fim”. Em 1983, relançamos o premiadíssimo “O centauro no jardim”, lançado pela Editora de Sérgio Lacerda, a Nova Fronteira, em 1980.

Enfim, de lá para cá, foram 34 anos de convívio e 24 livros lançados.

Ontem, recebemos a notícia que temíamos desde que, no final de janeiro, Scliar hospitalizara-se acometido de um Acidente Vascular Cerebral. O Doutor, como o chamávamos, tinha lutado, mas não conseguiu resistir à gravidade da doença. Em dezembro, Paulo Lima e eu encontramos Scliar no vôo que ia para o Rio. Nós íamos para uma reunião e ele para uma sessão na Academia. No final da tarde, nos encontramos novamente no Santos Dumont, para pegar o vôo de volta. Na ocasião, conversamos bastante e ele falou de seus planos para o futuro, que eram muitos. Estava trabalhando em vários projetos, tinha “uns três ou quatro” romances na cabeça e estava se dedicando a dois. Gentil como sempre, se disse fascinado com a distribuição dos pockets da L&PM: “Semana passada eu estava no interior do interior de Minas para uma palestra e estava lá o display dos pockets, e tinha livros meus!”

Numa carreira que teve seus primeiros passos com o livro “Histórias de um médico em formação” (uma obra de juventude, escrita em 1962, que ele não gostava muito de incluir na sua bibliografia) e “Carnaval dos Animais”, de 1972, foram mais de 70 títulos entre ensaios, contos e romances. A qualidade, inventividade e originalidade da sua obra o levaram ao reconhecimento nacional, internacional (foi traduzido em várias línguas) e à Academia Brasileira de Letras.

Nascido e criado no Bom Fim, o bairro judeu de Porto Alegre, ele soube como ninguém expressar os mistérios ocultos da suas ruas, as múltiplas vozes de emigrantes, refugiados, o humor ácido cultivado numa tradição de sofrimento e fugas. E esta foi sua grande marca. Traduzir esta compatibilidade de uma cultura universal para os nossos trópicos. Sem perder a alma de tradições ancestrais. Scliar, assim, foi universal, razão pela qual seus livros transitam pelo mundo com naturalidade em várias línguas.

Mas recordando a conversa leve e divertida no aeroporto Santos Dumont, um mês e meio atrás, não posso deixar de pensar na velha e batida precariedade das nossas vidas. Scliar estava bem, lépido em seus 73 anos, rápido como sempre, apressado e cheio de planos. Scliar tinha uma urgência em viver. E ele vivia muito através de suas histórias. Escrevia sempre, sempre.

A multidão dos seus leitores terá como consolo uma obra vasta, de enorme qualidade. Mas aqueles que ficam privados dele terão muita saudade. Scliar era amigo e solidário. Não cultivava nem uma grama de inveja, tão comum entre nós; estimulava os jovens escritores como muito poucos, tinha sempre uma palavra de carinho para todos e usava seu espaço na imprensa para divulgar tudo o que ele achava que tinha qualidade ou era promissor. Aqui na L&PM temos o exemplo clássico da generosidade do Doutor. No final dos anos 90, atravessamos uma crise séria, quase fechamos as portas. Scliar, preocupado, acompanhou a “crise” desde os piores momentos, até o final feliz. E nos ajudou muito mais do que ele imaginava. Pois o voto de confiança que depositou em nós, os livros novos que editamos naquele momento incerto, a sua adesão irrestrita à coleção de bolso, lá em 1997, quando todos – autores, imprensa e livreiros – duvidavam que pudesse dar certo, foi fundamental para chegarmos até aqui. Hoje, a L&PM tem a maior coleção de bolso do país e um lugar de destaque entre as grandes editoras brasileiras. O Doutor Scliar faz parte disso e nós seremos gratos para sempre.