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56. Estreia de luxo com o personagem do lixo. E com prefácio do grande Erico

Por Ivan Pinheiro Machado*

Ontem foi o dia em que morreu Erico Verissimo, no longínquo ano de 1975. De certa forma, este que é um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos está ligado ao nosso destino. Erico era muito amigo do Mario de Almeida Lima, pai do Paulo Lima, o “L” da L&PM.  Para orientação do leitor, vou fazer uma pequena rememoração; o Lima e eu vínhamos de uma desastrada experiência comercial com uma agência de publicidade, na qual éramos sócios do grande desenhista brasileiro Edgar Vasques. Na época, 1974, o Edgar fazia grande sucesso na mídia com seu personagem Rango, que era publicado em tiras diárias na Folha da Manhã. Muito crítico contra o governo, paradoxalmente, o Rango era publicado num jornal conservador. E só por isso os militares ainda não tinham acabado com ele. Ao colocarmos um ponto final na nossa Ciclo Cinco Propaganda, sentamos numa churrascaria em Porto Alegre, o Edgar, o Lima e eu, e ficamos assuntando sobre o que faríamos da vida dali em diante. Eu e o Edgar estudávamos Arquitetura e o Lima, Administração. Vivíamos os tumultuados anos 70. A ditadura na ofensiva. Intimidava e reprimia os estudantes que eram os grandes responsáveis por uma enorme onda de protestos que havia tomado conta do país. Decidimos então fazer uma editora e publicar o Rango. Pra incomodar os “milicos” como eram chamados,  pejorativamente, os militares que espancavam e torturavam aqueles que discordavam da ditadura. Reunimos as tiras e publicamos o Rango 1, cuja história já contei num post bem no comecinho destas publicações.

Mas voltando ao ponto; o Erico era amigo do Mario de Almeida Lima. Nós íamos publicar o Rango. Pedimos ao Mario Lima que fizesse uma “embaixada” junto a ele,  para que escrevesse o prefácio do livro de estreia da L&PM Editores. A contragosto, o “velho” Lima foi ao Erico e disse: “estes malucos querem fazer uma editora e querem que tu faças o prefácio do primeiro livro”.

Para os que não conheceram Erico Verissimo: guardo dele a imagem de um homem afável e extremamente generoso. Éramos muito, muito jovens e ele, o grande escritor, nos levava a sério, como se fossemos adultos experientes. Cada ida à sua casa, era uma ou duas horas da melhor conversa. Convocado pelo amigo, Erico pediu os originais e uma semana para fazer o prefácio. E não poderia ter sido melhor. Veja o fac-simile da página ofício onde ele escreveu um elogio definitivo ao nosso primeiro livro. Ele foi sincero, pois gostava do Rango e generoso ao extremo por topar a empreitada de fazer o prefácio do livro que fundou esta editora.

A edição em pocket de Rango 1, mais recente, mantém o prefácio de Erico

Foi graças a este prefácio que eu me salvei das garras da polícia da ditadura, quando fui “convidado” a prestar esclarecimentos no sinistro prédio da Polícia Federal em Porto Alegre. Era um edifício que, uma vez lá dentro, ninguém tinha certeza de que sairia.

O chefe da Polícia Federal de Porto Alegre, um pobre diabo com muito poder, em pessoa, depois de um longo chá de banco, me recebeu com o Rango aberto na sua frente. Ele não levantou a cabeça. Folheava lentamente o livro e fazia comentários tipo “olha aqui, piada com coronel… não é possível uma coisa destas”. Mais adiante, “estes comunistinhas usam até a bandeira do Brasil para fazer sacanagem…”. E eu ali, nem me mexia. Até que ele finalmente me olhou e disse: “isto aqui é uma revistinha e revista tem que ter um registro no departamento de censura. Onde está o registro?”. Eu gaguejei; “mas isto não é revista, é livro!”. “Como não é revista?” berrou o gorila, isto aqui é uma revistinha de quadrinhos e uma revistinha muito vagabunda!”. Aí eu tive uma iluminação. Procurei a voz mais firme que eu conseguiria para o momento e disse: “É livro sim! Olha o prefácio do Erico Verissimo”. Quis Deus, na sua infinita bondade, que o prefácio do Erico começasse assim: “Recomendo este livro com o maior entusiasmo…”. O troglodita leu, me olhou, abanou a cabeça desolado e por fim disse delicadamente: “Te manda daqui seu comunistinha, mas abre o teu olho…”

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o quinquagésimo sexto post da Série “Era uma vez… uma editora“.

Erico Verissimo recomenda Edgar Vasques

O autor de O tempo e o vento escreveu o prefácio do primeiro livro publicado pela L&PM lá em 1974, quando a editora foi criada. Erico morreu pouco tempo depois, em 28 de novembro de 1975, há exatos 36 anos, e para homenageá-lo, recuperamos o fac-símile do texto batido à máquina e corrigido à mão pelo próprio Erico.

“Recomendo este livro com o maior entusiasmo”, diz ele sobre as tirinhas do Rango, personagem criado por Edgar Vasques. Leia você mesmo:

(clique para ampliar e ler melhor)

 

52. Sebastian B. Dangerfield: o vagabundo iluminado

Por Ivan Pinheiro Machado*

Todos têm aqueles cinco livros da sua vida. Eu até tenho dúvida sobre os outros quatro. Teria de escolher entre dez, quinze. Mas sei bem qual é o primeiro da lista: Ginger Man, de J. P. Donleavy. A primeira vez que eu li tinha 18 anos. A segunda vez, eu já estava com 40 anos. Agora, quatro décadas depois de ter lido pela primeira vez, eu mantenho intacta a emoção, o fervor que as frases elípticas, barrocas, transgressoras e debochadas me causaram no primeiro encontro. Procuro, procuro e não me lembro de um livro cujo impacto tenha sido igual com tanta diferença de tempo entre a primeira e a segunda leitura.  Tudo porque este é um livro genial.

A primeira edição que li chamava-se, na edição brasileira, Sexta-feira triangular, lançado pela editora Civilização Brasileira. Meu exemplar, comprado pelo meu pai em 1970 é um dos 30 ou 40 livros que eu conservo daquela época. Colado com durex na lombada e no miolo, meu velho Sexta-feira triangular resistiu ao tempo, a várias leituras e chegou combalido ao começo da segunda década do século 21. E o mais impressionante é que este desgrenhado, rasgado, velho e amarelado livro contém um texto de divina vanguarda, refinada loucura e deslumbrante beleza quando trata das vicissitudes, das misérias e das grandezas da condição humana.

A edição colada com durex, a primeira lida por Ivan Pinheiro Machado

Certa vez, com pouco mais de 20 anos de idade, convidado pelo meu amigo Fernando Gasparian, eu fui a um jantar na sua casa. Sentei ao lado de Enio Silveira, o dono da Civilização Brasileira. Era um homem em torno dos 55 anos, cuja dignidade e postura de resistência à ditadura militar serviam de exemplo para todos nós. Sua grande livraria no centro do Rio de Janeiro fora incendiada pelo famigerado CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Enfim, eu o admirava profundamente e estava tenso sentado ao seu lado quando ele me olhou, me examinou de alto a baixo e perguntou: “E você, tão jovem, o que você faz?”. Eu não tive coragem de dizer que era editor e balbuciei que era jornalista, amigo do Gasparian. A seguir eu disse a ele: “Eu li Sexta-feira Triangular, que o senhor editou e achei um livro incrível, um dos mais impressionantes que eu já li”. O Enio afastou a cadeira e me olhou de novo de alto a baixo: “Você leu este livro?”. Eu confirmei com a cabeça. Ele sorriu e me disse que eu tinha sido um dos poucos que tiveram esta grande experiência, pois este livro “tinha sido um dos maiores fracassos de venda da Civilização Brasileira”.

J. P. Donleavy, seu autor, firme e forte com 80 anos hoje, publicou Ginger Man com pouco mais de 29 anos e é sua obra-prima. Americano, filho de pais irlandeses, morou nos EUA, em Dublin e hoje reside em Londres. Uma vez, trabalhando como fotógrafo para o jornal Zero Hora, antes da existência da L&PM, fui fotografar Erico Verissimo em sua casa no bairro Petrópolis em Porto Alegre. O repórter era o saudoso Marcos Faermann, criador de vários jornais alternativos, entre eles o famoso “Versus”. Terminada a sessão de fotos, eu perguntei ao Erico, que era um homem extraordinariamente gentil e generoso: “Erico, tu já ouviste falar de um tal de J. P. Donleavy? Eu li um livro dele que eu adorei, mas ninguém conhece este cara”. O Erico abriu um sorriso e disse “Ginger Man!”. Eu fiquei paralisado e bradei “Este mesmo!”. “É um livro belíssimo – ele disse -, louco, mas belíssimo”.

Por anos a fio eu dizia (de sacanagem) “este livro que só eu e o Erico Verissimo lemos no Brasil, é um livro genial…” Passou-se o tempo, muito tempo… Em 2006, estávamos eu e Caroline Chang, editora aqui da L&PM, numa reunião na Bienal de São Paulo com a agente inglesa-brasileira Tassy Bahran, quando ela falou: “tenho um livro aqui que o Johnny Deep  comprou os direitos para filmar, chama-se ‘Ginger Man’”. Eu, que estava distraído, dei um pulo. “O quê????”. A Tassy arregalou seus belos olhos verdes e perguntou no seu sotaque british-carioquês: “O que houve?”. Eu respondi apenas “Eu quero publicar este livro”. E contei toda esta história acima.

Pois bem. Compramos os direitos e a Cacá (como é conhecida mundialmente a Caroline Chang), num trabalho de detetive, localizou os herdeiros do tradutor Mario Mascherpe e comprou os direitos de utilizar sua tradução feita para a Civilização Brasileira. Cabe aqui uma homenagem a este grande tradutor, pois este trabalho é quase intransponível pela velocidade na narrativa, pelas expressões de gíria e basicamente por ser um livro falado o tempo todo por desqualificados, vagabundos, miseráveis e personagens muito estranhos. Tudo isso em Dublin. Num clima joyceano de neblina, uísque, chuva fina, em meio à desesperança característica dos anos que sucederam a 2ª Grande Guerra. Pois Mario Mascherpe conseguiu a proeza de traduzir e manter intacta a linguagem e a magia do livro.

Capa de "Um safado em Dublin", que deve chegar à Coleção L&PM Pocket no fim de novembro

O grande Enio Silveira que me perdoe, mas mudamos o título, já que “Ginger Man” é praticamente intraduzível (homem-gengibre) no seu sentido irlandês. Optamos por Um safado em Dublin. Achamos que tem mais sex appeal. O livro sairá no final de novembro. A saga de Sebastian B. Dangerfield. E continua sendo um dos poucos livros geniais que eu li na minha vida.

* Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o quinquagésimo segundo post da Série “Era uma vez… uma editora“.