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1. O começo: da cozinha para o porão

Por Ivan Pinheiro Machado*

Uma editora publica histórias – e vive muitas delas. Principalmente quando tem mais de três décadas como nós. Quantas e quantas histórias para contar… O pessoal que “é jovem a menos tempo do que nós”, aqui mesmo na L&PM, sempre quer saber curiosidades, “causos” passados, fatos hilários, outros nem tanto. Enfim, há uma vontade natural de conhecer mais desta convivência entre editores e autores. E também de descobrir um pouco sobre como uma editora atravessou dezenas de crises econômicas, quatro moedas diferentes e uma ditadura brutal. Eu vou tentar, semanalmente, no espaço deste blog, resgatar um pouco desta história.

Foi assim:

Fundamos a editora em agosto de 1974 e a primeira sede foi na cozinha do escritório de advocacia do meu pai, o Dr. Antonio Pinheiro Machado Netto. Ah! Ía me esquecendo de esclarecer; pra quem não sabe, L&PM quer dizer Lima e Pinheiro Machado. Escolhemos este nome por acaso, quase como uma brincadeira, porque nunca imaginávamos chegar onde chegamos… Mas eu falava na primeira sede da L&PM. Mandamos acarpetar a cozinha do escritório de advocacia do “velho” Pinheiro que era num imponente sobrado na Avenida Venâncio Aires em Porto Alegre. Ficamos lá quase um ano, até que faltou espaço. Fomos então para o porão do escritório do pai do Lima, o Mario de Almeida Lima, mais conhecido como “velho” Lima, combativo jornalista, diretor da sucursal de O Estado de S. Paulo em Porto Alegre e dono de uma das principais livrarias de Porto Alegre, a Livraria Lima. Assim, os nosso pais, ambos já falecidos e de saudosa memória, contribuíram decisivamente, aos nos albergar gratuitamente, para o começo desta aventura. Só fomos pagar o primeiro aluguel em 1976. Já tínhamos 25 anos de idade e quase três como editores. Nosso livro de estreia havia sido a coletânea de tiras de quadrinhos do Rango, personagem de Edgar Vasques de grande sucesso na época e que acabou sendo o livro o mais vendido da Feira do Livro de Porto Alegre em 1974. Havíamos publicado ainda a “Antologia Brasileira de Humor” em dois volumes, o livro “Oposição” de Paulo Brossard, “Só dói quando eu respiro” de Caulos –  o primeiro livro brasileiro inteiramente de cartuns sobre ecologia –e estávamos em vias de publicar Millôr Fernandes e Josué Guimarães. Voltando ao começo do começo, vivíamos uma truculenta ditadura que perseguia os intelectuais, artistas e todos aqueles que criticavam o governo. Havia uma severa censura à imprensa e todos os editores independentes eram sistematicamente vigiados e perseguidos. Logo, logo teríamos nosso encontro com esta sombria realidade. Nosso “batismo de fogo” ocorreu exatamente no primeiro livro. A Polícia Federal nos convocou para “prestar esclarecimentos” sobre o conteúdo do livro “Rango 1”. Foi uma tarde inesquecível, pelo desprezo com que o gorila que examinava o livro do Vasques me tratava e o medo que eu sentia lá naquele lugar sinistro de onde alguns conhecidos nossos jamais saíram.  Eles achavam o “Rango” de “subversivo” porque tinha como tema a miséria brasileira.

Para falar bem a verdade, não era a melhor época para fazer uma editora. No auge da ditadura, o livro não tinha nenhum prestígio. Era o tipo do negócio que, como diria o Paulo Francis, “não fazia bem à saúde”. Foi naquele tempo que eu encontrei o grande antropólogo, romancista, ensaísta e educador Darcy Ribeiro, de quem publicamos um belo livro,“Ensaios Insólitos”. Num dado momento da conversa, ele me perguntou “Vocês não tinham um negócio melhor pra fazer?”. Eu não lembro da minha resposta, mas recordo muito bem quando ele falou que o mundo se movia baseado na “inciência (sic) da juventude”. Ou seja, sem sombra de dúvida, era uma maluquice fazer uma editora em plena ditadura.

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