Oh yes

por Rafael Raffa*

Eu estava morando em outro país. Sozinho. Trabalhava 12 horas por dia, seis dias por semana. Acordava e ia para o trabalho. Voltava de madrugada para lavar roupas, louça, limpar o banheiro. E toda madrugada, eu aleatoriamente abria o livro The Pleasures of the Damned, de Charles Bukowski, e lia alguns poemas. A naturalidade deles me fazia bem. Havia alguém por trás das palavras, realmente. Não havia mentira. Apenas alguns exageros, claro. E o segredo estava nesses exageros. Toda a miséria cotidiana traduzida num simples amarrar de cadarço. A vida simplificada em arte. Como se tudo aquilo pudesse acontecer. O jeito que as palavras rolavam página abaixo, encaixando-se perfeitamente em sua confusão. Humor nos momentos certos. O triunfo sobre a dor. Assim, não me sentia tão sozinho.

Numa dessas madrugadas, pensava em desistir de tudo. Ir embora. Sentia que podia morrer e não haveria ninguém para fechar meus olhos, como fazem nos filmes. Sozinho, no quarto, sem motivo para seguir. Uma pequena tragédia. Ao mesmo tempo, desistir de lá, era desistir de mim. Do que eu pretendia ver e sentir. Estava tão confuso, que folhava o livro sem ler, somente olhando as palavras. Até que parei num poema curto que me chamou a atenção. Oh yes, o título:

há coisas piores na vida do que
ficar sozinho
mas frequentemente leva décadas
para entender isso
e mais frequentemente
quando você entende
é tarde demais
e não há nada pior do que
tarde
demais

Levantei e fui preparar algo para comer. Pensando em ir embora. Pensando em ficar. O mundo pressionando suas paredes contra mim. Coloquei uma pizza congelada no forno. Abri uma garrafa de vinho. Tomei um longo gole no bico. Algo em torno de 20 segundos, o vinho escorrendo pela minha boca. Sentindo-me muito bem com isso. Sentindo um sopro de esperança no estômago.

Comi, como se aquilo fosse um verdadeiro banquete. Como se fizesse sentido. O vinho descendo leve pela garganta. A rua Finchley, laranja, do lado de fora. A melhor pizza do mundo. Tudo tão simples, como nos poemas. Servi outro copo e estiquei minhas pernas. Algo dentro de mim havia esquecido de se preocupar.

Escutei o colombiano com quem eu dividia o apartamento chegando. Subindo as escadas sem vontade. Os pés pesados nas escadas.  Escutei a porta abrindo e batendo forte ao fechar . Deve estar voltando da casa da namorada gaúcha, pensei.

– Meus Deus, as mulheres brasileiras são malucas. Ele disse, entrando na sala e sentando-se ao meu lado.
– Conta alguma coisa que eu não saiba.

Abri o livro na mesa; página 188.  Oh yes, apontei, e fui buscar outro copo para ele. Servi um dos grandes. A gente precisava. Perguntei o que havia achado do poema. Legal, respondeu. Perguntei como estava o namoro. Não podia estar melhor, disse. Nós dois rimos. E continuamos. Rindo da sorte e do azar. Rindo do laranja da rua Finchley. Rindo dos pequenos traumas da vida. Rindo do vinho. E, principalmente, rindo de nós mesmos.

Eu consigo entender quando gritam que Charles Bukowski só escreve sobre miséria, bebedeiras, sexo, escatologias. Que é muito sádico, ocasionalmente fascista e discriminatório contra determinados grupos. Que não presta. Que não tem pretensão artística. Que não é literatura. Eu entendo, mas não consigo deixar de pensar que deixaram escapar alguma coisa. Nunca os vejo falando sobre a esperança, a beleza das pequenas coisas, o apoio no simples. A forma, escondida pela naturalidade. Quase um acidente. A forma através da confusão.

Talvez, quando o leram, fizeram a pergunta errada. Com Bukowski, está tudo ali, exposto. Não há intenções por de trás das palavras. As intenções estão nos detalhes, nos acontecimentos, no humor, na realidade. Perguntaram-se o que ele quis dizer, quando o que mais importa, é o que ele fez eles entenderem. O filho da puta mais durão que você já viu, sem máscara alguma. Assim como eu. Como você. Como qualquer um de nós.

Espero que numa próxima vez, deixem a naturalidade das palavras simples entrarem em seus pulmões. Sem as muletas literárias. Sem as muletas do bom senso. Apenas o galope selvagem das frases que entram cortes e saem cicatrizes.

Sirvo mais um copo de vinho agora. Levanto para o alto. Faço um brinde para o colombiano e outro pra você, Hank.

* Rafael Raffa é estudante de jornalismo e, depois de morar em Londres, voltou à sua cidade natal: Porto Alegre. Ele é tão fã de Bukowski que tatuou em sua perna esquerda um desenho feito por “Hank”, de quem a L&PM publica todos os romances, mais contos e poemas.

2 ideias sobre “Oh yes

  1. Rody Cáceres

    Show! Li num fôlego só. Os clientes passando por trás de mim, e eu mergulhado na leitura. Belo texto, Raffa! Legal ver a L&PM publicando mais textos, em paralelo com as notícias. O Ivan tem matado a pau; agora o Rafael vem com esse texto massa. É isso aí!

    Curti muito!

    Agora posso voltar ao trabalho…

    Responder
  2. carvalho

    “Eu consigo entender quando gritam que Charles Bukowski só escreve sobre miséria, bebedeiras, sexo, escatologias. Que é “muito sádico, ocasionalmente fascista e discriminatório contra determinados grupos”. Que não presta. Que não tem pretensão artística. Que não é literatura. Eu entendo, mas não consigo deixar de pensar que deixaram escapar alguma coisa.” P E R F E I T O

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