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Baita livro

Por Juremir Machado da Silva*

Luiz Antonio de Assis Brasil sempre escreveu bem. Já tem seu lugar garantido entre os melhores escritores gaúchos de todos os tempos, que não são muitos, os tempos. Terá, apesar disso, de suportar um clichê que vou cometer agora: está como o bom vinho. Cada vez melhor. Leio-o desde quando eu tinha 22 anos e sonhava em mudar o mundo. Infelizmente para pior. Fui, talvez, o primeiro a resenhar “Videiras de Cristal“. Quando Assis publica um livro, corro para ler. Imaginava que ele andasse absorto na sua labuta de secretário estadual da Cultura e longe da carpintaria da literatura. Nada disso. Ele acaba de lançar “Figura na Sombra” (L&PM). Em linguagem de crítico literário, um romance soberbo. Em bom português, um baita livro. É a história do francês Aimé Bonpland, naturalista e companheiro de viagem de Humboldt por este Novo Mundo.

Bonpland teve uma existência errante. Escalou, com Humboldt, o vulcão Chimborazo e navegou pelas águas do Orenoco até o rio Negro, comprovando a existência dessa ligação através do Canal de Casiquiare. Mais tarde, depois de um retorno à Europa, mudou-se para Buenos Aires. Apaixonou-se pela yerba, a erva-mate. Retomou suas aventuras. Foi prisioneiro de El Supremo, o déspota esclarecido do Paraguai. Abandonou e foi abandonado por mulheres estranhas. Antes disso, cuidou e desenvolveu os jardins de Malmaison, o castelo da imperatriz Josefina, mulher de Napoleão, por quem teria se apaixonado. Foi chamado de vários nomes, especialmente de Gringo “loco”. Teve a vida que muita gente gostaria de ter, inclusive eu, por algum tempo. Assis Brasil mergulha esse personagem bizarro, sábio, iluminado, teimoso numa atmosfera de profunda solidão. Sofreria por amor à sua eterna Josefina? Ou por amor platônico a Humboldt? “Figura na Sombra” deixa essa porta aberta. Se não rolou, foi por medo de Bonpland. Humboldt parecia bem chegado.

Humboldt virou um mito. Bonpland, embora reconhecido e admirado, ficou em segundo plano. Sofria com isso? Teria voltado ao fim de mundo para aplacar o seu ressentimento? Humboldt quis provar a lógica perfeita da natureza. Bonpland intuía que tudo é caos. Ganhou a parada? Hipóteses, especulações, probabilidades… Assis Brasil faz o coração do leitor se apertar. Que puta solidão! Que tristeza! Quanta mágoa, quanta loucura, quanto silêncio, quanta dor! Há mistério, ambiente, imaginário e fantasia em cada página. O autor domina a palavra como um tirano iluminado e iluminista. Se em alguns livros sua narrativa parecia recuperar a estética do século XIX, em “Figura na Sombra” se vê, de corpo inteiro, o narrador deste século XXI, ágil, sintético, curto-circuitando a descrição, alternando ruptura e continuidade, abraçando uma ficção cósmica quântica, uma simulação engenhosa de linearidade feita de saltos e lirismo. Tem balanço de emoções, sinuosidade, um ritmo.

Assis Brasil é escritor de fato: ninguém se atreverá a perguntar-lhe se o que conta é verdadeiro. A pergunta não faz sentido. Só um imbecil a faria. Afinal, como poderia a ficção convincente ser falsa? Impossível.

* Juremir Machado da Silva é escritor, jornalista, tradutor e professor universitário. Esta crônica foi publicada originalmente em sua coluna diária do Jornal Correio do Povo no dia 23 de setembro de 2012.

Uma biografia de Cristo

Por Juremir Machado da Silva*

Não tem história mais extraordinária que a de Jesus Cristo. Ela está na Bíblia. Mas está também nos livros que buscam resgatar o chamado Jesus histórico. Na Semana Santa, li “Jesus” (L&PM), de Christiane Rancé. Fascinante. Tudo é mistério, enigma, deslumbramento. A começar pela data de nascimento do filho de Deus, que teria acontecido de quatro a seis anos antes daquele que marca o começo consagrado da nossa era. Em tom respeitoso, aparecem todas as dúvidas tradicionais e abordadas por especialistas ao longo dos séculos: Jesus teve irmãos biológicos? Os reis magos renderam homenagem ao menino Deus uma semana, um mês ou cerca dois anos depois do seu nascimento? Como foi a infância de Jesus? José e Maria moravam em Nazaré ou em Belém? Segundo Mateus, eles residiam em Belém e foram para Nazaré depois da fuga ao Egito. Conforme Lucas, eles viviam em Nazaré e só teriam ido a Belém por causa de um recenseamento, o qual, historicamente, só teria acontecido mais tarde.

Um aspecto que sempre desperta curiosidade diz respeito às características físicas de Jesus. Como Ele era? A famosa “Carta de Lêntulo”, considerada falsa, apresenta-o com olhos verdes, cabelos com a “cor de uma avelã amadurecida precocemente” e, a partir das orelhas, “cachos crespos”, um “homem de estatura média e bonito de se ver, com uma expressão digna de veneração”. Outra versão, tentando explicar o fato de Jesus ter permanecido solteiro, o que era incomum entre judeus na época, afirma que ele era muito feio. Rancé explica que essa ideia vinha de uma profecia de Isaías (53, 2-3): “Ele cresceu diante dele como renovo, como raiz em terra árida. Não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar, nem formosura capaz de nos deleitar. Era desprezado e abandonado pelos homens”. Pode-se dizer, pouco importa, mas Cristo também foi homem de um tempo e todos temos curiosidade sobre essa sua condição humana.

Quem era Maria? Permaneceu virgem para sempre? Três teorias opõem-se: Helvídio afirma que José e Maria tiveram filhos depois de Jesus. Epifânio assegura que os irmãos de Jesus eram fruto do primeiro casamento de José. São Jerônimo sustenta que os “irmãos de Jesus” eram, na verdade, seus primos, filhos de um irmão de José. A mensagem de Jesus transcende esses detalhes biográficos e terrenos. Mesmo assim, os estudiosos embrenham-se no passado em busca de respostas. Uma pergunta recorrente é esta: por que Jesus demorou tanto a começar a pregar? Queria antes experimentar profundamente a condição de homem? Precisou trabalhar para ajudar a sustentar a família depois da morte do pai? João Batista, aquele que o batizou nas águas do Jordão, chegou a reconhecê-lo inequivocamente como Messias? Eles eram mesmo primos?

Como saber? Há perguntas que a gente nem sempre imagina: Jesus sabia escrever? Há, porém, uma certeza: ninguém levou seu verbo mais longe do que Ele. Ler uma biografia daquele que está acima de qualquer biografia é sempre estonteante. Como escrever a história daquele que encarna e transcende a própria História? Um desafio.

* Juremir Machado da Silva é escritor, jornalista, tradutor e professor universitário. Esta crônica foi publicada originalmente em sua coluna diária do Jornal Correio do Povo no dia 15 de abril de 2012.