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Diário do Anonymus em Paris – 3º Dia

Por José Antonio Pinheiro Machado

Na segunda-feira de carnaval, não houve desfiles nem bailes em Paris. Foi o dia do encerramento da Paris Cookbook Fair, e a maior festa ficou por conta dos grandes investidores, como o Grupo Food, que através do seu presidente Paulo Dalcó disse que foi uma das melhores feiras que participou: “Aqui, encontramos apenas o melhor. Tudo foi o máximo! As pessoas que vieram aqui tinham um foco bem determinado.”
Nesta primeira Feira Mundial do Livro de Gastronomia, de fato os participantes queriam comprar ou vender direitos de publicação de livros dessa área. E muitos negócios foram encaminhados. Houve a premiação de diversos livros, através de uma comissão julgadora e, para todos, ficou a sensação de que há um caminho aberto. A segunda edição da Paris Cookbook Fair está prevista para o ano que vem, na mesma época.

O local escolhido para a feira, o novíssimo “Cent Quatre”, centro de eventos artísticos e culturais, foi comentado com reservas. O local é amplo e bonito, com 4.000 metros quadrados de área. Mas ainda tem uma infraestrutura deficiente. Além disso, é muito longe da área central, localizado num bairro que não tem boa fama, pelo alto índice de criminalidade. Também houve queixas à divulgação do evento, que mereceu pouca atenção da imprensa local. Os organizadores cuidaram de todos os detalhes para o conforto dos participantes, mas se descuidaram das relações com a imprensa e o público: nos dias abertos ao público, a presença ficou abaixo do esperado.

Entretanto, esses detalhes, de modo geral, foram colocados em segundo plano: “Foi a estreia. Muita coisa tem que melhorar. Mas, no fundamental, os franceses capricharam”, disse Dolores Manzano, a “Dosh”, secretária da Câmara Brasileira do Livro que transformou o estande brasileiro no maior sucesso.
Domingo, a chef Ana Trajano já tinha brilhado com uma apresentação culinária à base de mandioca e charque que encantou os participantes. Ontem foi a vez do estande brasileiro virar o centro das atenções também com gastronomia bem brasileira.  Foram servidos ao público que passava pelo estande salgadinhos espetaculares e muito típicos: coxinhas de galinha, bolinhos de bacalhau, empadinhas de palmito e o clássico pão de queijo. Brasileiros residentes em Paris ficaram surpresos pela qualidade e pela autenticidade dos salgadinhos servidos: “Me sinto num boteco do Rio de Janeiro. Só falta cachaça… Mas o café é de primeira. Aqui na Europa, eles tentam imitar os quitutes brasileiros, mas fica sempre uma porcaria. Quem fez estas maravilhas?”- queria saber uma fotógrafa brasileira que serviu-se de uma dose generosa dos saborosos quitutes. A cozinheira que preparou esse destaque gastronômico do dia é uma brasileira humilde que pouco a pouco ganha muito prestígio com suas especialidades: Rita Félix Pereira, que se recusa a dar qualquer informação sobre as receitas e os ingredientes. Como todo mágico que se preza, ela recolheu os aplausos e não revelou os truques.
Depois de muitos  bolinhos, empadinhas, coxinhas e pãezinhos, Anonymus Gourmet, na despedida da primeira Paris Cookbook, não poderia dizer outra coisa: voltaremos!

N.E.: Na estande brasileira, foi improvisada uma mesinha com os livros do Anonymus e um computador com a página do blog aberta. O diário do Anonymus em Paris fez sucesso até… em Paris!

Diário do Anonymus em Paris – 2º Dia

Por José Antonio Pinheiro Machado

Os brasileiros estão adorando a Paris Cookbook Fair, a feira mundial dos livros de gastronomia que se realiza no recém criado “104”, o “Le Cent Quatre”, novo espaço cultural e artístico da capital francesa.
Representantes de cerca de 100 países movimentam o pavilhão amplo, moderno e confortável, totalmente reciclado e modernizado — que no passado abrigou o órgão municipal das “Pompas Fúnebres de Paris” durante dois séculos. O Cent Quatre fica no XIXème Arrondissiment, valorizando uma região pobre de operários, desempregados e estrangeiros ilegais.
As Câmara Brasileira do Livro, está presente com um estande que tem a participação das editoras Melhoramentos, Senac e Bocatto. A L&PM, a convite da presidente Rosely Boschini, comparece como observadora. “Esta feira veio para ficar”, disse Rosely. “Aqui estão presentes as principais editoras do mundo que editam livros de gastronomia. Até no Brasil, o interesse editorial pela gastronomia é crescente. No ano que vem, vamos comparecer com representação reforçada.”
Embora ainda não seja a realidade brasileira, nos Estados Unidos e na Europa os livros de gastronomia, segundo o presidente da Paris Cookbook Fair, M. Edouard Cointreau, já são “a parcela mais apetitosa e mais rentável do mercado editorial.”
Esse entusiasmo parece contagiar nossos editores e livreiros, e vai se concretizar em duas frentes, num primeiro momento. Desde logo começa a preparação para trazer a Paris uma representação mais numerosa na Cookbook Fair do ano que vem. Além disso, outra novidade imediata: a criação de um espaço exclusivo para livros de gastronomia já na próxima Bienal do Livro, em São Paulo.
Na verdade, esta primeira edição da Paris Cookbook Fair ficou dividida entre duas inclinações: feira de negócios ou feira-festival? Numa feira de negócios, a exemplo da tradicional Feira de Frankfurt, o foco é a comercialização internacional de direitos entre editores de diversos países; na feira-festival, da qual a cinquentenária Feira do Livro de Porto Alegre é amostra, a idéia é um grande evento de público, de divulgação de autores e novos lançamentos.
“Talvez seja interessante cultivar essa dúvida existencial”, diz um dos editores mais chegados a M. Cointreau.  “Essa duplicidade pode fazer bem à saúde financeira e ao marketing das próximas edições”, completa.
Por enquanto os negócios têm mais expressão do que a presença do público.
Mesmo assim, centenas de parisienses e turistas, no primeiro dia aberto ao público, enfrentaram a manhã gelada do fim de semana, com temperaturas em torno de zero grau, para ingressar no Cent Quatre, felizmente bem fechado e aquecido: além da calefação impecável, bailarinas indianas, conhaques e vinhos se encarregaram de fazer subir a temperatura.
Somando-se aos apelos dos estandes e das danças, o público desfrutou de quiosques com bebidas variadas e uma mini-feira livre de produtos bio, onde não faltaram cenas inesquecíveis. Um renomado produtor italiano de caríssimo aceto balsamico oferecia demonstração de seu produtos envelhecidos, com amostras diminutas servidas ao público em parcimoniosas colherinhas. Um japonês, entusiasmado pelo sabor foi polidamente advertido pela esposa, ao tentar a quinta colherada de repetição.
Nas demonstrações culinárias, o destaque (sem patriotismo) foi o Brasil, que apostou na simplicidade: a cozinheira e chef de cozinha Ana Trajano apresentou a uma platéia de dezenas de refinados gourmets o charque e a mandioca. Depois de uma apresentação teórica em que comilões de diversos países foram iniciados nas diferenças entre charque, carne seca e carne de sol, todos adoraram os finalmentes: charque com salada e uma boa farofa.
A mandioca brilhou especialmente: “De norte a sul do Brasil, chamada de mandioca, macaxera ou aipim, servida ao natural, ou na forma de pirão, farofa ou paçoca, é um alimento de primeira. A mandioca une o Brasil!”, disse Ana no evento em que lançou seu livro “Gosto do Brasil”. O editor Breno Lerner lembrou que 60 milhões de pessoas deixaram de morrer de fome na África graças ao crescimento da cultura da mandioca, que tem o Senegal na liderança mundial em matéria de cultivo.
Entre os livros de luxo de cintilantes capas dura,s apresentados na Paris Cookbook Fair por editores europeus em ternos Armani impecáveis, não deixa de ser estimulante constatar que brilhou o grande ingrediente da mesa brasileira. Quem diria. Os estandes refinados se transformaram, por momentos, em balcão da realidade, e a mandioca, normalmente reduzida a insossa curiosidade tropical, foi redimida.

Nos devaneios do conhaque

Por José Antonio Pinheiro Machado

A caminho da Paris Cookbook Fair, Anonymus Gourmet fez o que chama de “escala fundamental” em Lisboa, onde se reencontra “com as raízes essenciais da alma lusitana”. Um dos símbolos vivos dessa estirpe é sem dúvida o Almirante Vasco Marques.
Depois de dominar os oceanos por quatro décadas com sua argúcia de velho lobo do mar, o Almirante Vasco Marques, agora, vive em sossegada reforma, ao lado da sua Rosarinho, num castelo aprazível do Bairro Alto de Lisboa. Quando a noite desce sobre a Península Ibérica, enquanto Rosarinho leva ao forno uma garoupa recém pescada, o “Homem do Norte” (como o Almirante é conhecido na cidade do Porto) desce à adega suntuosa e mergulha na dúvida torturante: “Barca Velha ou Château Margaux? O que beber no jantar?” Mas as navegações do Almirante prosseguem, mesmo em terra firme.
“Navegar é o destino dessa raça!…”  − diz Rosarinho, resignada ante a vocação incontornável do grande marinheiro. O comentário é feito, não por acaso, ao pé da belíssima estátua de Pedro Álvares Cabral que domina o átrio do castelo onde mora o casal. Quando fala em “raça”, Rosarinho se refere de forma ambivalente à raça portuguesa e também à raça dos homens indômitos que arrostam os perigos, os presságios e a tempestade. O Almirante, sem qualquer vaidade, sabe que pertence às duas estirpes.  Ele compreendeu os versos de Fernando Pessoa − navegar é preciso, viver não é preciso − terçando armas com um pirata armênio no tombadilho de uma escuna (antigo navio à vela, de mastreação constituída de gurupés e dois mastros): navegar é uma ciência exata e necessária; viver, além de ofício incerto, só é indispensável com honra.
Na reforma sossegada, − depois da garoupa inexcedível, nos devaneios do conhaque, − o Almirante reflete que tem apenas três características que o diferenciam da “raça” portuguesa: 1) detesta bacalhau; 2) detesta pastéis de Belém; 3) adora piadas de português. Em relação ao item 3,  é dos arquivos do almirantado a história do alentejano que foi a Lisboa consultar um médico. O alentejano, aquele matuto natural do Alentejo, a região mais pobre de Portugal, foi a Lisboa para o exame periódico de saúde.
−Você bebe? − perguntou o médico.
− Dois ou três copos de vinho nas refeições… − respondeu o alentejano.
− Fuma ?
− Dois charutos por dia.
− E … quanto ao sexo ? − quis saber o médico.
− Uma ou duas vezes por mês. − foi a resposta.
O médico ficou perplexo:
− Sóóóóóó !?!?!? Com a sua idade e a sua saúde? Eu que sou muito mais velho, tenho sexo duas a três vezes por semana.
O alentejano ficou meio sem jeito:
− Pois é, doutor… Mas o senhor é médico em Lisboa. E eu sou padre numa pequena vila do Alentejo!
Segundo o Almirante Vasco Marques, essa é uma cena da vida real que ilustra o debate atual sobre castidade e casamento dos padres.

Diário do Anonymus em Paris – 1° Dia

   

Por José Antonio Pinheiro Machado 

Foi aberta hoje em Paris a Paris Cookbook Fair, a Feira Mundial do Livro de Gastronomia. O lugar escolhido não poderia ser mais adequado, o Le 104 é o mais novo espaço cultural de Paris, no 19.eme arrondissiment, distante dos lugares mais tradicionais da cidade, mas que poderá se tornar uma nova onda. É um espaço curioso. Ali funcionava no século XIX o serviço de “Pompas Fúnebres Municipais de Paris”, que cuidava dos funerais de “loucos, desvalidos e mulheres divorciadas.” Tornou-se obsoleto, é claro, e surgiu a boa idéia de reaproveitar aquele grande pavilhão de aspecto lúgubre para usos mais luminosos…     

O "Le 104", sede da primeira edição da Cookbook Fair / Foto: Divulgação

 Para começar, agora o pavilhão é todo branco, mas não renega sua origem. No pórtico de entrada está lá, como era antigamente: “Pompas fúnebres de Paris”.  Mas hoje, como disse um porteiro quando Anonymus se surpreendeu com a inscrição, “aqui é um lugar que era de morte e agora é de vida”. E a primeira Paris Cookbook Fair tem os contratempos naturais de uma vida que começa. Poucos antes da abertura os colombianos não sabiam onde ficar, os brasileiros tiveram que mudar por conta própria detalhes do estande e os guardas não deixavam entrar os jornalistas que não tinham credecial: mas eles queriam entrar justamente para se credenciar…  

Resolvidas as confusões do parto, os mais de 4.000 m² de área viraram festa, reunindo editores, autores, chefs, fotógrafos e produtores vindos de mais de 100 países. Além de conferências, palestras de editores e autores de livros ligados ao mundo da gastronomia e do vinho, performances de 62 chefs de todo o mundo estão programadas no “Show Kitchens”.  O comandante da festa tem linhagem: é Monsieur Edouard Cointreau, da família que produz o licor mais consumido do mundo e que criou sua própria tradição pessoal: é presidente da Gourmand Magazine. Desde as entrevistas preliminares, ele contagiou a todos com seu entusiasmo: “Será uma feira de livros diferente de todas. É aberta para todos – grandes e pequenos -, vindos de todos os países do globo”. Segundo Monsieur Cointreau, o mercado de livros ligado à gastronomia é um dos mais rentáveis do mundo e “precisávamos de um encontro desta importância planetária”.  

Entre os milhares de livros expostos nos diversos estandes, algumas curiosidades: chocolate, disparado, é o tema dominante dessa amostra da literatura gastronômica, frango – cada vez mais presente nas mesas do mundo – aparentemente não atrai leitores, escritores e editores, e impressiona o volume de obras com receitas e dicas de alimentação infantil. E um dado dominante: em todas as categorias e sabores, a maioria absoluta dos autores procura mostrar a gastronomia como uma arte fácil e sem mistérios. Parece que chega ao fim o império dos chefs inescrutáveis de receitas impossíveis de compreender. Os leitores parecem mais interessados em receitas fáceis, simples e saborosas que possam ser reproduzidas com facilidade no fogão de casa.