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5 de fevereiro de 1914: nascia William Burroughs, o mais velho dos beats

William S. Burroughs foi mais longe do que os outros beats. Não que tenha feito mais sucesso, mas além de ter vindo ao mundo antes de Allen Ginsberg e Jack Kerouac, o “velho Bill” morreu depois deles. Nascido em 5 de fevereiro de 1914, faleceu de ataque cardíaco em 2 de agosto de 1997 aos 83 anos. Um verdadeiro sobrevivente a oito décadas de vida junky. Em On the road, de Kerouac, ele virou o personagem Old Bull Lee.

Burroughs foi uma figura polêmica. Seu currículo incluía relações com garotos menores de idade e o assassinato da esposa (que ele matou sem querer ao brincar de Guilherme Tell). Mas isso não o impediu de ter um séquito enorme de fãs e muitos amigos famosos que o veneraram até o fim – incluindo aí Mick Jagger, Patti Smith e Madonna.

No livro Jack Kerouac & Allen Ginsberg: As cartas, Burroughs é tema frequente na correspondência trocada entre os amigos beats. Aqui, por exemplo, Kerouac escreve sobre ele em março de 1952:

Jack Kerouac [São Francisco, Califórnia] para
Allen Ginsberg [Paterson, Nova Jersey]

fim de março de 1952

Caro Allen:
[…]
Notícias do livro de Bill são fantásticas – eu sabia, quem mais escreve uma confissão completa, soque seu Meron fodido num chiqueiro, blá, Bill ainda é fantástico; escrevi DUAS semanas atrás e pedi a ele para que me levasse para o Equador com ele e [Lewis] Marker, e ainda estou esperando uma resposta: aqui um trecho da carta que ele me escreveu:
“Caro Jack, não sei por quanto tempo vou ficar por aqui. Fui classificado como um ‘estrangeiro problemático’ e o departamento de imigração vai pedir minha saída assim que o caso for decidido…” (mais tarde) (fala sobre seu novo romance gay, estou sugerindo que o chame simplesmente de Queer, é uma sequência para Junk, e ele diz que é melhor, e acredito que seja…) “E me deixe dizer, meu jovem,” (ele escreve) “que eu não ‘abandonei minha sexualidade em algum lugar perdido na estrada do ópio,’ esta frase ficou comigo por todos estes anos. Preciso pedir a você que, se eu aparecer no seu livro atual, que eu apareça adequadamente equipado.” (e aí acrescenta, depois do ponto) “com capacidades masculinas. Meu Deus, cara, você sabe mesmo escolher suas mulheres. Não precisava ter me dito para não dar o seu endereço para a esposa de Kell, ela e eu nem nos dizemos oi, acho que ela não gosta de mim” (soa como o velho bill no Ruyon da 8ª Av., não é?) o P.S. é como segue: “Outra coisa, não estou totalmente feliz com aparecer sob a alcunha de Old Bull Balloon, não consigo deixar de pensar que o epíteto Bull faz uma referência pouco elogiosa, e não sou velho de forma alguma… você vai me equipar” (equipar de novo, duas vezes essa palavra) “com cabelos brancos no próximo livro”. Não é interessante isso vindo de Bill?… no novo livro ele é Bill Hubbard, por falar nisso. Ele diz que Dennison foi descoberto por sua mãe em Cidade pequena, cidade grande, de forma que terá que usar Sebert Lee como nome em Junk, mas para se esconder de mamãe, mas… “Pensei em Sebert Lee, mas Sebert é como Seward e Lee é o nome de minha mãe. Acho que ainda assim vai funcionar.” (fim da carta). (louco?) Se ele me chamar, meu terceiro romance vai estar a caminho imediatamente… vai ser sobre Bill descendo à América do Sul, ainda sem título, e tão vasto como On the Road, diga a Carl, e também diga a Carl que vou enviar o Road completo e datilografado direitinho com todas as considerações feitas e arrumadinho no máximo até abril. De forma que eu possa começar o romance número 3, quero seguir em frente, um desses anos vou conseguir produzir TRÊS obras-primas em um ano, como fez Shakespeare em seu ano Hamlet-Lear-Júlio César, – não convidei você para Paris porque preciso de você, estava só sendo legal com um amigo escritor e sendo tradicional, e também, vai se foder.

Ti-Jean

Burroughs e Kerouac fotografados por Allen Ginsberg em 1953

Ginsberg e Burroughs em 1984

De William Burroughs, a Coleção L&PM Pocket publica Cartas do Yage e O gato por dentro.

Cartas na rua

Bernardo Scartezini, Especial | Correio Braziliense – Da Press – Jornal Zero Hora – 10/04/2010

Correspondências entre Jack Kerouac e Allen Ginsberg trazem as histórias e os bastidores da geração beat

A marca fundamental da literatura beat talvez não seja a vida desregrada, o fascínio pelos subterrâneos ou mesmo a tentativa de fazer a língua escrita soar como se fosse jazz bebop. Talvez o que nos faz ainda hoje tratá-la justamente por “geração” seja a estreita camaradagem e cumplicidade entre os principais envolvidos. É essa intimidade entre dois protagonistas que faz despertar o interesse por As Cartas de Jack Kerouac & Allen Ginsberg (L&PM Editores) calhamaço que o leitor brasileiro agora tem ao seu dispor.

Trata-se de um longo compêndio para além de 500 páginas, com mais de 10 anos de cartas entre Kerouac e Ginsberg, dos meados da década de 1940 ao início da década de 1960. É a fase definitiva e definidora da essência beat. Foi quando se conheceram, viajaram os Estados Unidos de ponta a ponta, caíram na vida e começaram a escrever as obras que ajudariam a nortear boa parte da literatura norte-americana – e ocidental – a ser produzida nas décadas seguintes. O período das cartas corresponde à saída desses autores do anonimato, às suas pioneiras publicações, às primeiras resenhas feitas pela imprensa e ao início do desbunde mundial que seria chamado de contracultura.

As Cartas de Jack Kerouac & Allen Ginsberg foi colhido, organizado e editado por dois peritos na geração beat: David Stanford, editor sênior da gigante editorial Viking Penguin, e Bill Morgan, antigo protegido de Ginsberg que também era uma espécie de bibliógrafo pessoal e arquivista particular. As cartas, portanto, ficaram em poder de Morgan após a morte do poeta.

Kerouac (1922 – 1969) e Ginsberg (1926 – 1997) se conheceram no início de 1944 nos arredores da Universidade de Columbia, em Nova York. A vastidão da América ainda era desconhecida por Kerouac quando ele iniciou sua troca de cartas com Ginsberg. Mas o prezado leitor de On the Road (1957), de Kerouac, por conta dessas mil relações entre vida pessoal e obra literária, já se sente imediatamente à vontade por aqui, totalmente enturmado na companhia daqueles dois.

Nas cartas, os aspirantes a escritor trocam dicas de leitura (Gógol, Céline, Thomas Wolf) e admitem as inseguranças quanto ao ato de escrever. Mas parecem tratar as próprias cartas como um campo de experimentação poética. Neal Cassady, o bom malandro, maconheiro, bígamo e puxador de carros, seria uma terceira ponta desse triângulo sensorial. Era um camarada que não sabia escrever duas frases que fizessem sentido, mas trazia em si o aprendizado das ruas. Cada chegada dele a Nova York era ansiosamente aguardada e festejada por antecipação. E William Burroughs é visto como o amigo doidão. Além de ter viajado mais do que os outros, é o que pareceria estar mais pronto para publicar um livro. Tinha viajado pela Amazônia peruana só para tomar ayahuasca (bebida alucinógena) e de lá ele trocou com Ginsberg longas cartas sobre a experiência.

À sombra da fama

Com o poema Uivo (1956) liberado e o livro On the Road na ponta da lista de mais vendidos do New York Times, Ginsberg comentava com Kerouac sobre as tão belas propostas que passou a receber de megaeditoras prometendo relançar Uivo em maiores tiragens. Já Kerouac nunca entenderia a idolatria que se formou a sua volta. Nestas cartas, ele se mostra primeiro espantado, depois relativamente fascinado e por fim francamente incomodado com o fato de On the Road ter se tornado aquilo que se tornou. Kerouac desprezava os hippies e não queria ser apontado como precursor de nada que pudesse ser relacionado a eles. Allen Ginsberg, por outro lado, parecia adorar ser idolatrado. Andava de moto com Bob Dylan, viajava com os Beatles, pingava ácido em Haight-Ashbury, em São Francisco, e pregava as virtudes do budismo, as benesses da meditação transcendental.

Dessas diferenças, percebe-se que Kerouac e Ginsberg, talvez por responderem ao sucesso e à condição de celebridade de maneira tão distinta, tornaram-se personalidades praticamente opostas. Mas, mesmo assim, mantiveram estreita a amizade.

jack_allen_cartas

 

Retrospectiva: os destaques de 2012

E lá se foi 2012. Deixando boas lembranças e ótimos livros no catálogo L&PM. Foram muitos os lançamentos em formato convencional e pocket. Aqui, destacamos um para cada mês do ano que está terminando, de dezembro até até janeiro.

DEZEMBRO – Não tenho inimigos, desconheço o ódio, de Liu Xiaobo. Por que é destaque: o chinês Liu Xiaobo é um escritor, intelectual, ativista e professor que foi condenado a 11 anos de prisão por suas ideias. Prêmio Nobel da Paz 2010, pela primeira vez seus textos foram reunidos e publicados no Brasil, apresentando uma China que o ocidente ainda não conhece.

NOVEMBRO – Allen Ginsberg e Jack Kerouac: as cartas. Por que é destaque: o livro reúne a correspondência trocada entre os dois escritores beats durante mais de 20 anos. As quase 500 páginas que separarm a primeira da última carta oferecem “uma das mais frutíferas fusões de vida e obra da literatura do século 20” conforme disse a Folha de S. Paulo.

OUTUBRO – Um lugar na janela, de Martha Medeiros. Porque é destaque: a autora de Feliz por nada compartilha com seus leitores as mais afetuosas memórias de viagens feitas em várias épocas da vida, aos vinte e poucos anos e sem grana, depois, já mais estruturada, mas com o mesmo espírito aventureiro.

SETEMBRO – A interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud. Por que é destaque: pela primeira vez no Brasil traduzida direto do alemão, a obra maior de Freud chegou à coleção L&PM Pocket em dois volumes coordenados por psicanalistas e professores de renome e que incluindo notas e comentários que Freud adicionou ao longo da vida, mais exclusivo índice de sonhos, nomes e símbolos.

AGOSTO – Guerra e Paz, de Tolstói, na Série Clássicos da Literatura em Quadrinhos. Por que é destaque: no caso de Guerra e Paz, uma obra bastante extensa, a adaptação para HQ é muito impressionante. “Coleciono HQs, de forma intensa, desde 1958. Nunca, nesses anos todos, vi ou ouvi falar de Guerra e Paz no formato de quadrinhos. Qualquer roteirista, mesmo com experiência e capacidade, deve ter sonhado com essa aventura louca.” disse Goida a respeito do livro.

JULHO – Os filhos dos dias, de Eduardo Galeano. Por que é destaque: inspirado na sabedoria dos maias, Galeano escreveu um livro que se situa como uma espécie de calendário histórico, onde de cada dia nasce uma nova história. Provocante, intenso e sensível como toda obra do escritor, os textos formam uma colcha de retalhos costurada com poesia, emoção e concisão.

JUNHO – Uma breve história da filosofia, de Nigel Warburton. Por que é destaque: a filósofa e escritora Sarah Bakewell definiu este livro como um “manual de existência humana em que poucas vezes a filosofia pareceu tão lúcida, tão importante, tão válida e tão fácil de nela se aventurar”. Partindo da tradição iniciada com Sócrates, o autor traz dados interessantes sobre a vida e o pensamento de alguns dos mais instigantes filósofos de todos os tempos.

MAIO – História secreta de Costaguana, de Juan Gabriel Vásquez. Por que é destaque: Juan Gabriel Vásquez foi um dos convidados da Flip 2012 – Festa Literária Internacional de Paraty. Misturando fatos históricos e ficção, Vásquez cria uma história em que o escritor Joseph Conrad é um dos personagens e que tem como pano de fundo a construção do Canal do Panamá.

ABRIL – Simon’s Cat, de Simon Tofield. Por que é destaque: em abril, Simon’s Cat foi publicado pela primeira vez no Brasil. O gato que não tem nome definido é o mais famoso felino do Youtube. Depois de Simon’s Cat – As aventuras de um gato travesso e comilão, em novembro deste ano foi lançado o segundo volume da série: Simon’s Cat – Em busca de aventura.

MARÇO – Erma Jaguar, de Alex Varenne. Por que é destaque: esta HQ luxo traz todas as aventuras de Erma Jaguar, personagem criada pelo notável ilustrador Alex Varenne. Erma é uma espécie de “madame” moderna que à noite, vestindo seu corpete preto e dirigindo seu carro, vai satisfazer todas as suas fantasias. Insaciável, ela enlouquece homens e mulheres de todos os tipos.

FEVEREIRO – Diários de Andy Warhol. Por que é destaque: esta nova edição dos Diários do artista pop Andy Warhol, dividida em dois volumes em formato de bolso (e reunidos em uma caixa especial), marcou a entrada da Coleção L&PM Pocket na casa dos 1.000 títulos. Um dos mais reveladores retratos culturais do século XX, Diários de Andy Warhol soma mais de mil páginas de glamour, fofocas e culto às celebridades.

JANEIRO – 1961 – O golpe derrotado, de Flávio Tavares. Por que é destaque: este livro conta como um movimento de rebelião popular paralisou e derrotou o golpe de Estado dos ministros do Exército, Marinha e Aeronáutica e evitou a guerra­ civil. Escrito por um jornalista que testemunhou e participou do Movimento da Legalidade junto a Leonel Brizola,­ então governador­ do Rio Grande do Sul.

A primeira opinião de Allen Ginsberg sobre “On the road”

Eis um trecho da carta que Allen Ginsberg escreveu a Jack Kerouac logo depois de ler os originais de On the road em 1952:

(clique na imagem para ampliar)

Ainda bem que ele estava errado! Esta e outras preciosidades estão no livro As cartas que acaba de chegar ao Brasil pela L&PM.

Essas cartas vão fazer você chorar

É como entrar numa máquina do tempo, como remexer em gavetas alheias, como ser um voyeur olhando por cima do ombro de quem escreve em silêncio. Ler “As cartas” que Jack Kerouac e Allen Ginsberg trocaram ao longo de 25 anos é descobrir os detalhes, invadir as emoções, compartilhar os medos, inseguranças, as euforias. É, ainda, acompanhar o desbrochar de escritores, a ascenção de um movimento literário, o nascimento de seus livros, a intimidade de dois amigos com muito em comum. Allen assina sempre Allen. Já Jack, além de Jack, é Jean, Jean-Louis, Ti-Jean ou simplesmente J. São 500 páginas de pura descoberta. É como escreveu Lawrence Ferlinghetti em uma carta datada de 25 de maio de 1961: “Um dia, as cartas de Allen Ginsberg para Jack Kerouac vão fazer a América chorar. As minhas lágrimas já começaram a rolar. (Paula Taitelbaum)

Caro Allen: (22 de setembro de 60)

Sim, acabo de retornar, grande voo no Ambassador da TWA, dedutível do imposto de renda, com vinho, champanhe, filé mignon e a esposa do embaixador chinês em Taipei na minha frente etc. Nova York parece pequena e grosseira depois da anárquica, louca e espontânea Frisco. Encontrei-me com todo mundo. Neal está mais fantástico do que nunca, muito mais doce, está bonitão, saudável. Caminha até o trabalho em Los Gatos na recauchutadora de pneus – gostaria de fazer o papel de Dean no filme On the Road, qualquer coisa é melhor do que recauchutar. (…) Enquanto isso, em Big Sur, sentei perto do mar todos os dias, algumas vezes numa assustadora e trovejante nebulosa escuridão de escarpas e ondas enormes, e escrevi Mar, primeira parte, MAR: o Oceano Pacífico em Big Sur na Califórnia. Tudo som de ondas, como James Joyce faria. Escrevi quase tudo de olhos fechados, como um Homero cego. Li para a turma à luz de uma lamparina a óleo. McClure etc. Neal etc. todos ouviram mas é como Old Angel, só mais ondas que batem e rebatem plop kerplosh, o mar não fala em sentenças, mas vem em pedacinhos assim:

Não há palavra humana
para tristezas mais antigas
que velha essa onda
quebrando aflige a
areia com o ploch
da ideia renosa
torcida – Ah mudar
o mundo? Ah cobrar
o preço? São corda os
anjos pelo mar?
Ah lontra cordosa
coberta de cracas –

(…)

Jean

Uma das cartas que estão no livro que tem edição de Bill Morgan e David Stanford