A arte da leveza

Por Pedro Gonzaga*

Ou talvez da brevidade. Ou ainda a arte de como rir das forças incendiárias dentro de nós, que nos lembram de nossa insuperável bestialidade. Raiva, inveja, ódio, rancor, despeita, ira, são essas apenas algumas das tórridas emoções que Claudia Tajes utiliza para compor as histórias de Sangue Quente, seu mais novo livro de contos.

Mergulhados em cotidianos borrados, imersos em rotinas cinzentas, os personagens parecem à espera de um milagre redentor, mas só o que lhes advém é a cólera. Assim o protagonista da segunda história, um homem comum e relaxado que atribui seus problemas com as mulheres (e consigo mesmo) à existência dos Grant (Cary e Hugh). Ou ainda a publicitária frustrada, cuja única alegria na vida, marcada por anúncios desimportantes em sua excentricidade (um protetor solar exclusivo para homens), seria tomar um banho de princesa com um sabonete Lux Luxo.

Importante salientar que tal matéria – a miséria de todos nós – nas mãos de outro autor talvez se tornasse pesada demais, o retrato opressivo de nosso mundo sem heróis. Nas mãos da Claudia, no entanto, uma das grandes vozes do humor brasileiro, o assunto sério na maior parte das vezes ganha leveza, faz-nos rir com um misto de maldade e ternura, base da melhor comédia, que é, antes de tudo, um talento raro, seja na literatura, seja na vida real.

Dividido em duas partes, o livro ganha ainda mais força na segunda, quando a raiva se torna “específica”: são os contos de TPM. Destaco aqui pelo menos mais duas histórias. Em Tão Fácil Ser Idiota, um conto com um sabor do velho Dalton Trevisan, feito quase só de diálogo, uma mulher descobre que uma garçonete está saindo com seu namorado e resolve ir tomar satisfações. Por coincidência, as duas se chamam Cristina, e estão às raias da agressão quando o galã chega e tenta se safar da situação. Mal sabe ele que a TPM não conhece misericórdia. Em Marido, há uma deliciosa inversão dos sintomas que folcloricamente marcam o período do mês mais perigoso, transferindo-os ao homem, que não deixa de acusar a dedicada mulher de estar indisposta em relação a ele por questões hormonais.

Nota-se, contudo, uma certa melancolia na obra, que o celebrado humor da autora de A Vida Sexual da Mulher Feia não foi capaz de dirimir. Suspeito que essa sensação venha de tantos solitários que se espalham pelas histórias. Diante deles, que se abrem com uma singeleza quase atroz em tantas primeiras pessoas, cujo melhor exemplo seria a narradora de Sem Amor em Tempos de Cólera, já não sabemos ser maus ou debochados, sequer fraternos. Se rimos deles, é um riso triste, o riso dos desesperados.

Agrada-me, por fim, em Sangue Quente, o fato do livro ser, acima de tudo, aquilo que ele é: um livro de contos. Saudades de ver as vidas jogadas no mata-mata e não na largura burocrática desses tantos campeonatos recentes, bem mais longos do que o necessário. Uma leitura perfeita para este fim de ano agitado e flamejante.

* Escritor, editor e poeta, tradutor de vários livros publicados pela L&PM (principalmente Bukowski) autor de “Falso Começo”. Este texto foi publicado originalmente no Caderno da Feira do Jornal Zero Hora de 4/11/2013.

Claudia Tajes autografa Sangue-quente nesta segunda-feira, 4 de novembro às 18h na Feira do Livro de Porto Alegre.

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