As últimas palavras de Galeano

Vem aí “O caçador de histórias”, livro inédito deixado pelo escritor uruguaio. Leia a seguir a matéria publicada pelo Jornal O Globo no dia 13 de abril, data de um ano da morte de Eduardo Galeano. O jornal publicou ainda trechos do novo livro que tem tradução de Eric Nepomuceno e que será lançado pela L&PM em breve.

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Eric Nepomuceno e Eduardo Galeano

Jornal O Globo – Por Guilherme Freitas

RIO — Morto em 13 de abril de 2015, aos 74 anos, Eduardo Galeano dedicou seus últimos meses ao que mais gostava de fazer: escrever. As palavras finais do autor uruguaio estão reunidas no livro “O caçador de histórias”, que chega este mês às livrarias dos países de língua espanhola. O lançamento no Brasil está previsto para o fim de maio, pela editora L&PM, em tradução de Eric Nepomuceno, amigo do escritor por mais de quatro décadas.

Com textos curtos e poéticos, entre o ensaio e a ficção, “O caçador de histórias” é uma amostra de estilo e temas que marcaram a obra de Galeano. Em um fragmento, o autor de um dos livros de cabeceira da esquerda no continente, “As veias abertas da América Latina” (1971), recorda a ocasião em que ouviu do chileno Salvador Allende, anos antes de sua morte no golpe de Pinochet, uma frase profética: “Vale a pena morrer por tudo isso que, sem existir, não vale a pena viver”. Outros textos evocam mitos e tradições dos povos indígenas da América, matéria-prima de clássicos de Galeano, como a trilogia “Memória do fogo”.

Um tema que atravessa o livro é a celebração da “paixão inútil” pela escrita: “Meus mestres foram os admiráveis mentirosos que nos cafés se reuniam para encontrar o tempo perdido”, diz. Nos últimos textos, escritos quando ele combatia um câncer no pulmão, surgem reflexões pungentes sobre a proximidade do fim: “O sol nos oferece um adeus sempre assombroso, que jamais repete o crepúsculo de ontem nem o de amanhã”.

Tradutor do primeiro texto de Galeano publicado no Brasil, o conto “O monstro meu amigo”, em 1974, Nepomuceno foi responsável desde então por mais de uma dezena de títulos do uruguaio no país. “O caçador de histórias” foi o primeiro em que não revisou cada palavra com o amigo. Nepomuceno selecionou os trechos publicados a seguir como uma homenagem a Galeano no primeiro aniversário de sua morte.

— Se Eduardo era de uma exigência sem tréguas na hora de escrever, mais exigente ainda era na hora de revisar a tradução. Negociávamos cada palavra, cada frase — diz Nepomuceno. — O vazio deixado por ele é imenso. Sou órfão desse meu irmão que a vida me deu. Cada palavra desta tradução foi negociada na sua ausência. Espero ter honrado a nossa parceria de 42 anos.

POR QUE ESCREVO/II

Se não me engano, foi Jean-Paul Sartre quem disse:

Escrever é uma paixão inútil.

A gente escreve sem saber muito bem por que ou para que, mas supõe-se que escrever tem a ver com as coisas nas quais a gente acredita da maneira mais profunda, tem a ver com os temas que nos desvelam.

Escrevemos tendo por base algumas certezas, que tampouco são certezas full-time. Eu, por exemplo, sou otimista segundo a hora do dia.

Normalmente, até o meio-dia sou bastante otimista. Depois, do meio-dia até as quatro, minha alma despenca para o chão. Lá pelo entardecer ela se acomoda de novo no seu devido lugar, e de noite cai e se levanta, várias vezes, até a manhã seguinte, e por aí vamos…

Eu desconfio muito dos otimistas full-time. Acho que eles são um resultado dos erros dos deuses.

Segundo os deuses maias, todos nós fomos feitos de milho, e por isso temos tantas cores diferentes, tantas como tem o milho. No Brasil, talvez nem tantas, mas no resto da América, sim: milho branco, amarelo, avermelhado, marrom, e por aí vamos. Muitas cores. Mas antes houve algumas tentativas muito desleixadas, que deram bem errado. Uma delas teve como resultado o homem e a mulher feitos de madeira.

Os deuses andavam chateados e não tinham com quem conversar, porque aqueles humanos eram iguais a nós mas não tinham o que dizer nem como dizer se tivessem o que dizer, porque não respiravam. Não abriam a boca. E se não respiravam nem abriam a boca, não tinham alento. E eu sempre pensei que se não tinham alento, também não tinham desalento. Portanto, não é tão desastroso que a alma da gente despenque para o chão, porque é só uma prova a mais de que somos humanos, humaninhos e nada mais.

E como humaninho, puxado pelo alento ou pelo desalento, conforme as horas do dia, continuo escrevendo, praticando essa paixão inútil.

***

PEGADAS

O vento apaga as pegadas das gaivotas.

As chuvas apagam as pegadas dos passos humanos.

O sol apaga as pegadas do tempo.

Os contadores de história procuram as pegadas da memória perdida, do amor e da dor, que não são vistas, mas que não se apagam.

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HOMENAGENS

No morro de Santa Lucía, em pleno centro de Santiago do Chile, foi erguida uma estátua do chefe indígena Caupolicán.

Caupolicán mais parece um índio de Hollywood, e isso tem explicação: a obra foi esculpida, em 1869, para um concurso realizado nos Estados Unidos em homenagem a James Fenimore Cooper, autor do romance “O último dos moicanos”.

A escultura perdeu o concurso, e o moicano não teve outro remédio a não ser mudar de país e mentir que era chileno.

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ESTRANGEIRO

No jornal do bairro de Raval, em Barcelona, a mão anônima escreveu:

– Teu deus é judeu, tua música é negra, teu carro é japonês, tua pizza é italiana, teu gás é argelino, teu café é brasileiro, tua democracia é grega, teus números são árabes, tuas letras são latinas.

Eu sou teu vizinho. E tu dizes que sou estrangeiro?

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O VENTO

Espalha as sementes, conduz as nuvens, desafia os navegantes.

Às vezes limpa o ar, e às vezes suja.

Às vezes aproxima o que está distante, e às vezes afasta o que está perto.

É invisível e é intocável.

Acaricia você, golpeia você.

Dizem que ele diz:

— Eu sopro onde quiser.

Sua voz sussurra ou ruge, mas não se entende o que diz.

Anuncia o que virá?

Na China, os que preveem o tempo são chamados de espelhos do vento.

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ÚLTIMA PORTA

Desde que se deitou pela última vez, Guma Muñoz não quis mais se levantar.

Nem mesmo abria os olhos.

Num de seus raros despertares, Guma reconheceu a filha, que apertava a sua mão para dar serenidade ao seu sono.

Então, falou, ou melhor, murmurou:

— Que esquisito, não é? A morte me dava medo. Não dá mais. Agora, me dá curiosidade. Como será?

E, perguntando como será, se deixou ir, morte adentro.

“O caçador de histórias” está em fase de produção, mas já adiantamos que a capa será igual à capa da editora Siglo Veintiuno.

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