“Dias e noites de amor e de guerra” de Eduardo Galeano

Por Nanni Rios*

Dias e noites de amor e de guerra é um livro pra se ter na cabeceira, daqueles que você nunca termina de ler, porque está sempre indo e voltando numa história que não tem pontas, nem fim, nem começo, pois tudo é amarrado pelo mesmo fio da poesia. São vários textos curtos, alguns com apenas um parágrafo, com relatos do cotidiano de um exilado – ninguém menos do que Eduardo Galeano – durante os anos de chumbo na América Latina.

Suas andanças por vários países, os amigos que desapareciam sem aviso, os filhos crescendo longe, o tempo passando em descompasso com o calendário e a humanidade em volta definhando sob a nuvem negra das ditaduras. A esperança, no entanto, resistia com bravura, apesar da dor lancinante de viver num mundo sem liberdade. Ao fim, há de se admitir: foram todos salvos pela poesia.

Além do cotidiano opressor, Galeano narra visões, alucinações e sonhos, provando que até mesmo o inconsciente humano está exposto à insanidade de uma vida sem liberdade.

Sonhos
Os corpos, abraçados, vão mudando de posição enquanto dormimos, virando para cá, para lá, sua cabeça em meu peito, minha perna sobre o seu ventre, e ao girarem os corpos vai girando a cama e giram o quarto e o mundo. ‘Não, não’, você me explica, achando que está acordada: ‘Não estamos mais aí. Mudamos para outro país enquanto dormíamos’.”

Uma moça navega cantando entre as pessoas
Na estação do metrô, a multidão abre caminho para a moça cantora. Ela caminha balançando o corpo docemente. No violão leva pendurado um cesto de palha, onde as pessoas jogam moedas. A moça tem cara de palhaço e, enquanto caminha, canta e pisca para as crianças. Ela canta melodias quase secretas em meio ao barulho da estação.”

Os filhos
(…)
Chegou muito triste. No elevador fez beicinho. Depois deixou que o leite esfriasse na xícara. Olhava o chão.
Sentei-a em meus joelhos e pedi que me contasse. Ela negou com a cabeça. Acariciei-a, beijei sua testa. Deixou escapar uma lágrima. Com o lenço sequei sua cara e assoei seu nariz. Então, pedi outra vez:
– Vamos, conta.
Contou-me que sua melhor amiga tinha dito ‘Eu não gosto mais de você’.
Choramos juntos, não sei quanto tempo, abraçados os dois, ali na cadeira.
Eu sentia as mágoas que Florência ia sofrer pelos anos afora e quisera que Deus existisse e não fosse surdo, para poder rogar que me desse toda a dor que tinha reservado pra ela.”

Sempre que a vida perde um pouco da doçura, é bom ter um livro como Dias e noites de amor e de guerra (Coleção L&PM Pocket) à mão, nem que seja só para lembrar que pode haver algum lirismo até mesmo nas realidades mais duras.

* Toda semana, a Série “Relembrando um grande livro” traz um texto assinado em que grandes livros são (re)lembrados. Livros imperdíveis e inesquecíveis.

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