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As viagens amorosas de Bocage

Manuel Maria Barbosa du Bocage gostava de uma boa sacanagem. Mas não gostava só disto. Como bem coloca a doutora em literatura Jane Tutikian no prefácio de O delírio amoroso e outros poemas, “Se é possível falar em um homem entre fronteiras, esse homem é Bocage: o das anedotas sujas e criações obscenas ao lado de poemas sensíveis, plenos de confissões amorosas, amargura e sofrimento, e mais: um homem situado entre dois mundos, entre as regras rígidas de um Arcadismo decadente, refletindo um mundo racional, ordenado e concreto, e a liberdade de um Romantismo descendente, quando a literatura se abre à individualidade e à renovação. Bocage é um homem do seu tempo e à frente do seu tempo.”

Pois durante o tempo em que viveu, Bocage mostrou ser apaixonado pela vida, pelas palavras e, claro, pelas mulheres. E foi justamente porque uma delas partiu-lhe o coração que ele deixou sua Portugal natal para aventurar-se por mares distantes. Em 1786, Bocage embarcou rumo à Índia no navio “Nossa Senhora da Vida, Santo Antônio e Madalena” e levou no coração sua namorada Gertrudes, a Gertrúria de Arcádia, responsável por dar um toque a mais de amor e amargura a seus poemas – já que ela acabou trocando o poeta por seu irmão Gil. No caminho para a Índia, entretanto, uma tormenta obrigou a nau em que ele viajava a fazer uma escala no Rio de Janeiro. Lá, Bocage foi recebido pelo governador Luís de Vasconcelos e ficou alguns dias aproveitando as terras tropicais até partir novamente para Goa, onde acabaria vivendo por 28 meses. Se o Rio de Janeiro inspirou Bocage a criar algumas de suas piadas picantes e versos libidinosos, não sabemos. Mas é difícil pensar que a cidade carioca não o tenha  encantado. 

Abaixo, um dos poemas dedicados à Gertrúria, que está em O delírio amoroso e outros poemas, livro que acaba de ser reeditado na Coleção L&PM POCKET com nova capa, feita a partir de uma foto de Ivan Pinheiro Machado de “Psyché ranimée par le baiser de l´Amor”, escultura de Antonio Canova que está exposta no museu do Louvre em Paris.

RECORDANDO-SE DA INCONSTÂNCIA DE GERTÚRIA

Da pérfida Gertúria o juramento
Parece-me que estou inda escutando.
E que inda ao som da voz suave e brando
Encolhe as asas, de encantado, o vento:

No vasto, infatigável pensamento
Os mimos da perjura estou notando…
Eis Amor, eis as Graças festejando
Dos ternos votos o feliz momento.

Mas ah!… Da minha rápida alegria
Para que acendes mais as vivas cores,
Lisonjeiro pincel da fantasia?

Basta, cega paixão, loucos amores;
Esqueçam-se os prazeres de algum dia,
Tão belos, tão duráveis como as flores.

32. Atravessando o Brasil de Fusca para fazer uma editora nacional

Por Ivan Pinheiro Machado*

Quando fizemos a L&PM e lançamos nosso primeiro livro, o “Rango 1”  do Edgar Vasques, decidimos que ela não seria uma “editora gaúcha”, mas uma editora brasileira. Portanto, precisávamos apresentá-la ao Brasil. Isto na prática significava levar o primeiro livro em mãos para os principais jornais do centro do país. O jornalista Mario de Almeida Lima, pai do Paulo, o “L” da L&PM, era diretor da sucursal do “Estadão” em Porto Alegre e preparou-nos uma lista de jornais e jornalistas importantes de Florianópolis, Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro. Para alguns editores amigos, o Mario Lima fez uma carta de apresentação.

Não tínhamos dinheiro para fazer este périplo de avião. Naqueles tempos ancestrais, você pagava para ir de Porto Alegre ao Rio o mesmo que hoje se paga para ir a Paris… O Lima tinha um Fusca 1971 (estávamos em 1975) e eu tinha um Puma conversível quase Zero km. Os pneus do carro do Lima estavam completamente “carecas” e no Puma (um esportivo de dois lugares) não cabiam as caixas de livros e a nossa bagagem. A solução foi tirar as rodas do Puma, colocar no Fusca (era a mesma bitola) e enfrentar a velha BR-116 rumo ao Rio de Janeiro com escala em outras capitais. Tudo ocorreu conforme o planejado. Fomos aos principais jornais de Floripa e Curitiba, e em São Paulo conseguimos uma matéria de meia página no Estadão extremamente elogiosa sobre o “Rango 1”, primeiro e – até então – único lançamento da L&PM. E foi com o Estadão embaixo do braço que fomos para o Rio. Primeiro visitamos o grande jornal da época, o Jornal do Brasil, editado pelo gaúcho Raul Riff e depois O Globo. Em ambos os jornais o “Rango 1” obteve resenhas consagradoras – e este seria o primeiro passo para que Edgar Vasques se tornasse colaborador do famoso O Pasquim.

Foi aí então que resolvemos ligar para o célebre Ziraldo, na tentativa de que ele nos recebesse. Ele foi muito simpático e marcou um encontro conosco às 13 horas no restaurante de um hotel à beira mar em Copacabana, pois morava ali perto. O Lima e eu ficamos excitadíssimos. Íamos conhecer o grande Ziraldo!… Chegamos no velho prédio do Ouro Verde Hotel, subimos para o restaurante e ficamos ao mesmo tempo impressionados e preocupados. Na sala de espera do restaurante, decorada em pesados lambris de mogno e velhas gravuras inglesas, o embaixador Walther Moreira Salles lia o “Le Fígaro”. Mais tarde ficamos sabendo que a revista americana Fortune, havia incluído o restaurante do Ouro Verde entre os “10 melhores pequenos restaurantes do mundo”… Ziraldo já nos aguardava numa mesa diante de um geladíssimo vinho branco português. Nos apresentamos e começamos uma ótima conversa. Como sempre, Ziraldo foi muito simpático. E do alto da sua celebridade tratou os dois jovens desconhecidos muito bem. Apresentamos o projeto de um “Álbum do bebê”, utilizando os personagens da turma do Pererê, personagem desenhado por ele. Ziraldo achou ótimo, conversamos bastante e então pedimos o almoço. Ou melhor, o Lima e eu, apavorados com os preços, optamos pela saladinha mais barata.

O Ouro Verde Hotel, na Avenida Atlântica em Copacabana, palco de um célebre encontro com Ziraldo

O resumo desta história é o seguinte: o papo foi sensacional, comemos, bebemos, até que chegou a conta. Para os nossos modestíssimos recursos, era um valor astronômico. O Lima e eu nos preparávamos para rachar o prejuízo quando o Ziraldo magnanimamente disse: “Não! Esta conta é comigo!!”. O imenso alívio que tomou conta de nós, no entanto, durou pouco. Ele começou a apalpar os bolsos insistentemente até que disse: “Xiiiiii! Acho que esqueci a carteira em casa… então paguem vocês”.

Íamos ficar mais uma semana no Rio de Janeiro, curtindo as lendárias noites do Baixo Leblon, no “Luna Bar”, “Diagonal”, Pizzaria Guanabara” etc. Mas no outro dia, na madrugada, contrariando nossos planos, estávamos já na estrada. Depois de pago o almoço do Ouro Verde, mal sobrou para alguns sanduíches e a gasolina da viagem. As aventuras no Baixo Leblon ficariam para uma próxima oportunidade.

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o trigésimo segundo post da Série “Era uma vez… uma editora“.

O Rio de Janeiro de Machado continua lindo…

O Rio de Janeiro de Machado de Assis era um Rio de Janeiro de laudes, horas canônicas e vestidos de musselina. Um Rio de Janeiro de modinhas, passeios públicos, patacões e contos de réis. O Rio de Janeiro de Machado de Assis era um Rio de Janeiro embalado nas melodias dos cabriolés, paquetes, cupês e faetons.  

Para quem não conseguiu entender 100 por cento do palavreado antiquado (mas na nossa opinião carregado de lirismo), basta dar uma folheada nas primeiras páginas de Casa velha, livro de Machado de Assis que acaba de chegar à Coleção L&PM POCKET. Assim como em Dom Casmurro, Quincas Borba, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Esaú e Jacó, Helena, A mão e a luva e Memorial de Aires, a edição de Casa Velha da L&PM vem acompanhada de um panorama da vida cotidiana do Rio de Janeiro machadiano e de um glossário das palavras e expressões usadas na época. E o diferencial não para por aí. O escritor, doutor em literatura e especialista em Machado, Luis Augusto Fischer, incluiu ainda nestes livros uma biografia do autor e uma completa cronologia. 

Casa velha nasceu como um conjunto de 25 episódios publicados entre 1885 e 1886 na revista carioca A Estação e conta a polêmica história de um amor incestuoso a partir das lembranças de um padre que faz um balanço das perdas e ganhos dessa paixão. 

Machado de Assis, de cartola, em uma das ruas do centro do Rio de Janeiro

 

6. O dia em que quase publicamos o livro de Glauber Rocha

Por Ivan Pinheiro Machado*

Certa vez, no inverno de 1977, bem no começo da L&PM, nós recebemos uma carta estranha. O remetente assinava G. Rocha. O endereço era Rua Borges de Medeiros, numero tal, Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro. Abri a carta. Naquela época, meros iniciantes, não era comum recebermos cartas. Era um texto denso, datilografado em duas páginas de papel ofício, espaço um. A assinatura era de Glauber Rocha, o autor de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Terra em transe”, “Dragão da maldade contra o santo guerreiro” entre outros clássicos do cinema “brazyleyro” – como ele gostava de escrever – e mundial. Glauber queria publicar a sua obra. Ele mencionava “vários livros”, e especialmente uma “História do Cinema”. Segundo ele escrevia na carta de junho de 1977:“minha História do Cinema” tem 1.000 páginas (…), é um livro original porque eu revelo entrevistas inéditas com cineastas do mundo todo e conto a História do ponto de vista de um cineasta que viveu por dentro da cozinha. O livro trata do cinema em todos os lugares, do início do século até hoje. Conto a verdadeira história do Cinema Novo, quinze anos de política e cultura. Não existe bibliografia de cinema que preste no Brasil”. Ele prosseguia propondo um acordo editorial prevendo adiantamento e uma percentagem de 10% sobre o preço de capa, assegurando a ele os direitos para o exterior. E encerrava assim: “Não quero enviar originais pelo Correio. Mandem alguém aqui, ou venham aqui. (…) As editoras tem que financiar os autores… Acontece que temos poucos autores modernos depois que morreram Erico Veríssimo, Guimarães Rosa… Jorge Amado é o último romancista popular… No entanto, nossa literatura é uma criança, como nossa sociedade…” . Ele indicava um telefone. Liguei e atendeu uma voz feminina com um sotaque castelhano. Identifiquei-me, combinamos dia e hora para uma reunião e fui para o Rio. Por coincidência, viajei com um amigo meu, o Nilo Lopumo, que acabou sendo testemunha do périplo de três visitas que cumprimos juntos a um apartamento em um edifício de luxo na Lagoa Rodrigo de Freitas.

O clímax e o anticlimax – Ao sair do elevador, sentia-se um cheiro acre de “canabis” por todo o andar. Indo atrás do cheiro, chegava-se ao apartamento 501, emprestado por um amigo psiquiatra a Glauber Rocha e sua namorada, uma deslumbrante loura colombiana. Quando entramos no belíssimo apê com vista para a Lagoa, o grande Glauber começou um longo, brilhante e exaltado monólogo sobre sua obra como escritor e o potencial cinematográfico que a história do Rio Grande do Sul possuía. Ele sugeria uma filmagem da Guerra dos Farrapos, com Marlon Brando no papel de Bento Gonçalves. “Eu ligo pra ele e faço o convite. Ele me conhece. Este tipo de astro topa trabalhar num filme por uma participação na bilheteria”. E sugeria que Anita Garibaldi fosse a Sandra Braga que, segundo ele, era perfeita para o papel, “ela nasceu para ser a Anita Garibaldi”. Por fim, nos mostrou dois calhamaços datilografados com mais ou menos 500 páginas cada um. O primeiro era uma coletânea de “ensaios e observações filosóficas” e o segundo calhamaço era um “romance épico” que se chamaria “Django”, baseado na vida de Jango Goulart, o presidente deposto pelo golpe de 1964. “Depois eu mostro a História do Cinema”. Eu e o Nilo, vindos lá do extremo do Brasil, observávamos perplexos aquela explosão verborrágica. Ele tinha uma fluência impressionante. Falava sobre o momento de abrandamento da ditadura, da genialidade de Golbery do Couto e Silva, o Ministro da Casa Civil, que seria o “grande artífice do desmonte do regime”, era “o Gênio da raça”, frase que ele repetia sempre quando se referia ao Golbery e que já ficou célebre. Depois de quatro horas de discursos, fomos embora. Combinamos voltar no outro dia para resolver os detalhes, pois ele me entregaria os originais de “Django”, dos ensaios & filosofia que eu não consigo lembrar o título e da tal “História do Cinema” de 1.000 páginas. Voltamos conforme o combinado. Foi mais uma sessão de discursos brilhantes. Não vimos mais original nenhum, ele só falava, falava e, de tempos em tempos, fazia uma longa pausa arfando, exausto. Descansava um pouco e voltava a falar, falar. A conversa acabou no começo da noite porque sua mulher lembrou que eles tinham que prestigiar a pré-estréia de “Dona Flor e seus dois maridos”, o romance de Jorge Amado, filmado por Bruno Barreto. Ficamos de voltar no outro dia às 15 horas para pegar o material. Conforme o combinado, cheguei às 15 horas ao apê da Lagoa. Apertei a campainha. A loura atendeu a porta e sem me convidar para entrar disse constrangida: “o Glauber não pode atender, mas manda dizer que desistiu de publicar os seus livros…”. E encerrou o assunto, fechando a porta. Eu fiquei ali parado por uns dois minutos tentando absorver aquele desfecho surreal. À noite voltamos para Porto Alegre. Sem livro nenhum, mas com esta incrível história para contar…

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