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Poemeu
Mar de Ipanema

Porque o mar em frente espuma
de alegria
É com alegria que olho o mar
de espumas
Escrevendo poemas ecológicos
À glória do sol, do ar,
do azul.

Lá mais longe, liso,
O mar-espelho espelha o céu
Ou este reflete aquele,
Numa tranquilidade que é
a minha
Ou minha tranquilidade a dele.
Tantos anos depois
O mar continua brincando
de paraíso
Em minha porta.

De Poemas, Millôr Fernandes

Retrospectiva: os destaques L&PM de 2011

2011 está na porta de saída. E como não poderia deixar de ser, a despedida do ano que termina vem com olhares para trás. A retrospectiva, afinal, faz parte do adeus e uma lista de “melhores do ano” acaba sendo tão tradicional quanto preparar o champanhe, a roupa branca e os fogos de artifício para o réveillon. Ao pensarmos no ano que chega ao fim (e em tudo que lançamos ao longo dele), fica bem difícil escolhermos os 10 livros mais marcantes. Porque foram vários e todos eles especiais. Acabamos levando em conta os títulos que tiveram mais destaque nas redes sociais e na mídia. E aqui estão eles no nosso “Top Ten L&PM 2011”.

A entrevista de Millôr Fernandes – Lançado em fevereiro de 2011, o livro apresentou aos leitores a mais longa e reveladora entrevista do grande Millôr, realizada no início dos anos 80 para a Revista Oitenta, então editada pela L&PM. É um intenso e bem-humorado depoimento que revela todas as faces de um dos maiores intelectuais do Brasil.

Biografia de Marilyn Monroe – Em março, Marilyn Monroe chegou à série Biografias L&PM. Um livro que revelou ser como sua personagem: a partir da primeira linha, impossível tirar os olhos dele. A família, os amores, os filmes, os dramas, tudo está aqui em frases que soam como o sussurro de uma diva.

Mulheres – Depois de anos esgotado no Brasil, Mulheres, um dos livros mais cultuados de Charles Bukowski, chegou à Coleção L&PM Pocket em meados de 2011. Também não dá para deixar de citar Cartas na Rua, o primeiro romance escrito por Bukowski e que, lançado em setembro, fez com que todos os romances do velho Buk agora estejam aqui. 

Os Smurfs – Aqui não vale a pena citar apenas um título dos Smurfs, mas dois: “O Smurf Repórter” e “O bebê Smurf” que, lançados em álbuns coloridos e em versão pocket, smurfaram por todas as livrarias e bancas do país. Lançados na mesma época do filme, fizeram tanto sucesso que ganharam até uma fan page especial no Facebook.  

Caixa Russa – Este não é exatamente um livro, mas uma caixa inteira. Mas é impossível não dar destaque para ela, pois além de ter chamado atenção, virou objeto de desejo de muita gente, com seus sete títulos que juntam duas obras de Gogol, duas de Tolstói, duas de Tchékhov e uma de Dostoiévski.

Feliz por nada – Apesar do título do livro de Martha Medeiros, motivos para ficar feliz não faltaram com as crônicas de Feliz por nada. Lançado em julho de 2011, ele logo foi parar na lista de mais vendidos de Veja, Época e O Globo e fecha o ano como um dos maiores sucessos literários do Brasil em 2011.

Atado de Ervas – O primeiro romance escrito por Ana Mariano foi a revelação do ano. Sucesso de público e crítica, ele levou a autora a concorrer ao Prêmio Fato Literário, promovido durante a Feira do Livro de Porto Alegre em 2011. Em suas 400 páginas, o livro monta um grande mosaico da vida no interior do Rio Grande do Sul.

Enciclopédia dos Quadrinhos – Revisada, atualizada e ampliada, a nova edição da Enciclopédia dos Quadrinhos, organizada e escrita por Goida e André Kleinert, foi lançada em outubro para alegria dos fãs de HQs. Ela traz referências inéditas a pesquisadores, fanzineiros e editores da área.

A vida segundo Peanuts – O destaque aqui poderia ser para o volume 4 de Peanuts completo, lançado em março. Ou para o belo O Natal de Charlie Brown. Mas A vida segundo Peanuts, que chegou em novembro, merece estar aqui por sua simplicidade e por ser um “gift book” muito fofo, livro perfeito para virar presente (até porque custa apenas 15 reais!).

Mangás – Aqui o destaque é para uma série. Quando os mangás chegaram à Coleção L&PM Pocket, em novembro, o alvoroço foi grande, pois os fãs do gênero não deixaram de se manifestar positivamente. Primeiro vieram Solanin 1, de Inio Asano, e Aventuras de Menino, de Mitsuru Adachi. Em dezembro, foi lançado Solanin 2.

Catálogo L&PM e-books chega a 400 títulos

A boa notícia de final de ano é essa: estamos chegando aos 400 títulos em e-book e, no início de janeiro, o catálogo de livros digitais da L&PM já terá ultrapassado esta marca. São opções dos mais variados gêneros e autores para todos os gostos que incluem Jack KerouacBukowski, Balzac, Nietzsche, Moacyr Scliar, Millôr Fernandes, Jane Austen, Agatha Christie, Georges Simenon, Patricia Highsmith, Caio Fernando Abreu, Eduardo GaleanoMartha Medeiros, entre muitos outros. Há romances, contos, poesia, ensaios, quadrinhos. 

A distribuição dos e-books L&PM é feita pela DLD (Distribuidora de Livros Digitais), que é administrada por um grupo que reúne as editoras Record, Objetiva, Sextante, Rocco, Planeta e, claro, L&PM. A DLD possui acordo operacional como as livrarias Saraiva, Cultura, Curitiba e com os portais Positivo, Abril e Copia. Ou seja: basta clicar aqui, escolher entre estas centenas de opções, entrar no site das livrarias e… feliz download 2012!

A greve dos sexos ou Lisístrata revisitada

Você lembra do velho e bom Aristófanes (444-385 AC) aquele que, escreveu Lisístrata? Aqui no Brasil, a história foi publicada na Coleção L&PM POCKET com brilhante tradução de Millôr Fernandes. A peça trata do fim da guerra do Peloponeso, em 411 a.C. entre Esparta e Atenas. Cansadas de verem seus homens morrer nesta guerra, as mulheres de ambos os lados fizeram um acordo: enquanto não houvesse paz, não fariam sexo. Obviamente a guerra terminou rapidamente.

Pois este é um recurso pacifista que atravessa os séculos. Neste ano de 2011, a história de Lisístrata foi revisitada. Em Dado, uma aldeia com 102 famílias no Sul da ilha de Midiano, nas Filipinas, a greve do sexo lançada pelas mulheres, liderada pela costureira Hasna Kandatu, obrigou os homens a fazerem as pazes. Há mais de 30 anos, havia conflitos devido a disputas de propriedades e heranças. A paz foi selada tendo como testemunha uma delegação da ONU que divulgou nota atestando o fim das violências nas ruas.

Não bastasse isso, a greve de sexo inspirada em Lisístrata também levou a ativista liberiana  Leymah Gbowee, a receber o Prêmio Nobel da Paz deste ano (junto com Ellen Johnson Sirleaf e Tawakkul Karman). Leymah também liderou um movimento pacífico de “no sex” que ajudou a terminar a segunda guerra civil do país africano, em 2003.

E o efeito Lisístrata parece não se limitar apenas a guerras e conflitos. Há poucas semanas, em Barbacoas, uma pequena cidade da Colômbia, um grupo de mulheres fez grave de sexo para que seus homens pressionassem o governo a iniciar as obras nas precárias estradas da região. Funcionou. Aliás, pelo jeito, sempre funciona…

A primeira tradução de Hamlet

Por Jorge Furtado*

A primeira tradução de Hamlet que se tem notícia foi feita, veja só, para o português. A proeza se deu em 1607 a bordo do navio inglês Red Dragon, ancorado na costa Oeste da África, e seu autor foi Lucas Fernandez, um negro nascido em Serra Leoa.

Navios na costa da África. Hendrick Cornelisz Vroom, 98 x 151 cm, óleo sobre tela, 1614

O Red Dragon fazia parte de uma frota de três galeões a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, em sua terceira expedição. Um dos navios tomou ventos em direção ao Brasil, mas o Red Dragon e o Hector enfrentaram longas calmarias. Para reabastecer e tratar doentes, ancoraram no porto de Freetown, na foz do Rio Mitombo, em Serra Leoa.

No dia 5 de setembro de 1607, o capitão do Red Dragon, William Keeling, recebeu a bordo um grupo de emissários do Rei Borea, entre eles seu cunhado e intérprete, descrito em seus diários como “um negro chamado Lucas Fernandez, que falava português muito bem”, e por outras testemunhas como um cristão capaz “argumentar bem em defesa de sua fé”, fluente em português, espanhol, inglês e temne, o dialeto local.

O Capitão Keeling registrou o encontro no diário de bordo:

5 de setembro. Enviei o intérprete, de acordo com seu desejo, a bordo do Hector, onde ele fez seu desjejum, e depois veio a bordo [do Red Dragon], onde nós apresentamos a tragédia de Hamlet, e na parte da tarde fomos todos juntos à terra, para ver se podíamos caçar um elefante; acertamos sete ou oito balas nele, o que o fez sangrar abundantemente, como pode se ver em seus rastros, mas a noite se aproximava e regressamos ao navio, sem atingir nossos propósitos.

Lucas Fernandez fez a tradução simultânea de Hamlet, encenado pela tripulação inglesa. É bom lembrar que em setembro de 1607 Shakespeare estava vivo, muito vivo, no auge de sua carreira: nos últimos três anos ele havia escrito sete peças, entre elas Otelo, Rei Lear e Macbeth. No momento, estava em cartaz no Globe com os King’s Men na recém escrita “Péricles”. Não há registros – e é muito improvável – de que tenha tomado conhecimento de que sua maior criação, Hamlet, já tinha sua primeira tradução, para o português.

A primeira tradução de Shakespeare sobre a qual há registro, de Romeu e Julieta, foi feita em 1604, para o alemão, o autor é desconhecido. A segunda tradução – a primeira de Hamlet e a primeira fora da Europa – foi a de Lucas Fernandez, para o português. O feito é ainda mais notável quando sabemos que a segunda tradução conhecida de Hamlet, esta para o alemão, só vai aparecer em 1626, quando Shakespeare já estava morto há 10 anos.

Traduzir é fazer escolhas. Sabe-se lá como Lucas Fernandez traduziu para o português as primeiras palavras da peça, a fala de Bernardo, de sentinela, ao perceber que alguém se aproxima: “Who’s there?” Sua escolha pode ter sido “Quem está aí?” (como fizeram os tradutores Cunha Medeiros e Oscar Mendes, Sophia de Mello Breyner, Millôr Fernandes, Oliveira Ribeiro Neto, José Roberto O’Shea), ou “Quem está lá?” (Anna Amélia Carneiro de Mendonça, Mario Fondelli), ou ainda “Quem vem lá?” (Péricles Eugênio da Silva Ramos, Domingos Ramos, Elvio Funk, Marilise Rezende Bertin e John Milton).

*Jorge Furtado é diretor, roteirista e escritor. Pela L&PM publicou Meu tio matou um cara. Este texto foi publicado originalmente no blog da Casa de Cinema de Porto Alegre em 24 de agosto de 2011.

39. Martha Medeiros: uma história de sucesso

Por Ivan Pinheiro Machado*

No começo dos anos 80, Beth Perrenoud trabalhava como assessora de imprensa da L&PM Editores. Um dia, ela deixou sobre a minha mesa uma pasta e disse “lê esta poeta. É sensacional”. A luta pela sobrevivência numa inflação de 20, 30% ao mês, não permitiu que houvesse clima para examinar com carinho aqueles poemas cuidadosamente encadernados numa daquelas pastas de colégio, com presilhas.

Capa da primeira edição de "Strip-tease", da Brasiliense

Um ano depois, em 1985, Beth surgiu na minha sala novamente, desta vez com um livro na mão: “olha o livro que não quiseste publicar”. E me deu Strip-Tease, de Martha Medeiros, lançado pela Brasiliense que, na época, era uma das mais importantes e prestigiadas editoras brasileiras. A Beth, além de bonita, é uma ótima pessoa. Amiga da Martha e leal à L&PM, ela estava muito chateada, afinal me dera a oportunidade de publicar o livro…

Eu li Strip-Tease em uma hora. Eram poemas diferentes daqueles que chegavam diariamente à minha mesa, pleiteando publicação. Uma linguagem coloquial e ao mesmo tempo intensa, visceral. Uma poesia contemporânea, falando sobre sua geração de uma forma nova, direta, sem arabescos desnecessários, mas com uma intensa força poética. Enfim, eu estava diante de uma grande poeta que a inflação, o descuido, a inexperiência e as vicissitudes de um começo difícil tinham nos impedido de publicar.

Poucos têm uma segunda chance na vida. Graças a minha insistência e a generosidade da Martha, tivemos a nossa. E publicamos seu segundo livro de poemas, Meia noite e um quarto em 1987. Depois, em 1991, lançamos Persona non Grata e, em 1995, De cara lavada. Em 1998, Martha reuniu todos os seus livros de poemas e fez uma seleção que foi publicada na então recém criada Coleção L&PM POCKET com o título de Poesia reunida.

A esta altura ela estava abandonando uma próspera carreira de publicitária e já era uma cronista de sucesso, escrevendo semanalmente para o jornal Zero Hora em Porto Alegre. Em 1997, publicamos seu primeiro livro de crônicas, Topless. Depois, saíram Trem-Bala (1999), Non Stop (2000), Cartas extraviadas e outros poemas (2000), Montanha-russa (2003), Coisas da vida (2005) e o bestseller Doidas e Santas (2008). Pela editora Objetiva, ela publicou os romances “Divã”, “Selma e Sinatra”, “Tudo o que eu queria te dizer” e “Fora de mim”.

Foram feitas adaptações – com grande sucesso – de seus livros para TV, teatro e cinema. Enfim, Martha tornou-se um sucesso nacional. Ou melhor, um grande sucesso nacional. Seu livro mais recente Feliz por nada, lançado dia 15 de junho de 2011,  já era o livro mais vendido no Brasil duas semanas depois, ocupando o primeiro lugar nas listas dos mais vendidos das revistas nacionais Veja e Época.

Hoje, o Brasil inteiro conhece Martha através dos seus livros, da TV, dos filmes, das peças de teatro e das crônicas que ela publica semanalmente nos jornais Zero Hora, de Porto Alegre e O Globo do Rio de Janeiro.

Com o tempo, como cronista, ela foi ampliando esta visão do cotidiano com as belas ferramentas que sua grande poesia lhe dá. Suas crônicas tem o raro sortilégio da identificação. Quando recém começava sua carreira literária, muito jovem, no início dos anos 80, Martha chamou a atenção de Millôr Fernandes e de Caio Fernando Abreu que se encantaram com o seu trabalho. Em seu texto sobre ela, Caio foi sintético e profético sobre o futuro da cronista/poeta: “A poesia de Martha acontece o tempo todo, do lado de dentro ou de fora da gente. Por ser poeta, ela consegue captá-la e dar-lhe a mais sensível e contemporânea das formas. Então comove. E segue o baile.”

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o trigésimo-nono post da Série “Era uma vez… uma editora“.

Caio Fernando Abreu e Millôr Fernandes falam de Martha Medeiros

Martha Medeiros – a poeta – teve dois padrinhos de respeito: Caio Fernando Abreu e Millôr Fernandes. Curiosamente ela foi se consagrar, popularmente, no texto. A crônica e a ficção fizeram de Martha uma “celebridade” literária. Seu livro Doidas e Santas, lançado em 2009, até hoje é um fenômeno de vendas. O Divã rendeu um filme muito elogiado e a peça baseada em Doidas e Santas está em cartaz até hoje e sempre  lotada. A poesia de Martha está disponível nos livros Poesia reunida e Cartas extraviadas. Vale a pena. Poesia é um gênero que não vai para a lista dos bestsellers. Mas ler a boa poesia é uma emoção inesquecível. No caso de Martha, os  fãs que não conhecem sua poesia, não sabem o que estão perdendo. Millôr e Caio que o digam! (IPM)

A poesia de Martha é de câmara. A poesia de Martha é mínima, como é mínimo o eu contemporâneo, confundido em sua identidade com memórias de filmes noir, reflexos luminosos de neon, cores de out-door, velocidade de videocassete – repertório romântico retirado mais da enorme adega do imaginário coletivo do que da própria vida. Nesse sentido, ela consegue dar voz a uma geração inteira – essa que se movimenta, mais do que entre verdadeiras emoções, entre os clichês das emoções de um tempo, que pode tanto refletir os anos 40 quanto um futuro mais parecido com histórias em quadrinhos do que com sua possibilidade real.

Entre Casablanca, Ingrid Bergman ao som de As Times Goes Bye, e Harrison Ford caçando replicantes em Blade Runner, é que acontece essa poesia. Nos tempos de agora, plenos anos 80, onde o jantar à luz de velas foi preparado num forno microondas, a gardênia de Billie Holiday convive em paz com o disco-laser e o vestido longo de seda para dançar cheek to cheek foi comprado num bom free-shop da moda. Com seu dom para recriar lugares-comuns, numa poesia que frequentemente gira em torno de frases feitas reelaboradas, neste Meia-noite e um Quarto, seu segundo livro, Martha Medeiros assume uma identidade inconfundível na poesia brasileira seguindo, à sua maneira, a trilha aberta por Ana Cristina César.

Extremamente sintética (quase nunca seus poemas ultrapassam poucos versos), com delicadeza, ironia e sofisticação, ela passeia pelas carências, relações e fantasias de um momento histórico que, por incluir nele mesmo vários outros tempos passados, não dispõe ainda de uma face própria. Se é verdade que a boa literatura sempre tem a função de ajudar a definir melhor a face do tempo em que foi escrita, não tenho a menor dúvida ao afirmar que a literatura de Martha, portanto, é da melhor qualidade. Mas essa qualidade – a dos dias de hoje, pós-modernos -, longe das sinfonias grandiloqüentes, está mais próxima de um solo de sax, um gemido de guitarra elétrica, dedilhar rápido de piano ou sopro em flauta-doce. Que, talvez por esta singeleza e despretensão tiponew-bossa, imediatamente cria no leitor a magia rara da identificação.

A poesia de Martha acontece o tempo todo, do lado de dentro ou de fora da gente. Por ser poeta, ela consegue captá-la e dar-lhe a mais sensível e conemporânea das formas. Então comove. E segue o baile.

Caio Fernando Abreu
Menino Deus, outubro de 1987

Martha, Ô Martha

Millôr Fernandes

Martha Medeiros vem de novo, um terceiro livro. Gostei do anterior, uma revelação, próxima disso que o pessoal tem por bem chamar minimalista. Neste, Persona Non Grata, Martha repete a dose, nem melhor nem pior, apenas excelente.

É do tipo poesia sincera, a dela. Quero dizer, não inventada, mas feita de impressões existenciais, pessoais, sentimentos que às vezes nem se realizam senão no ato da apreensão, e crescem no ato do registro. Isso mesmo, como num instantâneo fotográfico. O mocroinstante registrado na velocidade química de 1600 ASA (*) nunca existiu na realidade que vivemos, nunca o vimos, mas é o que permanece como (nossa) eternidade, guardada no fundo da gaveta.

Tem mais; brincando, brincando, o que Martha mais faz é poesia de amor. Tem mais ainda – é absolutamente compreensível, sobretudo para quem compreende.

O que tem a dizer no fundo? Acho que é – quem de nós poderá escolher alternativa, já nascido?

Em resumo, antes que te chateie – das duas uma; ou a poesia morreu, ou a poesia e isso.

E, claro, aquilo. João Cabral, Paulo Mendes Campos e Manoel de Barros estão aí mesmo e não me deixam mentir.

* Pros ignorantes de fotografia: índice numérico de exposição de um filme no sistema adotado pela American Standards Association , usado para indicar a sensibilidade à luz  da emulsão do filme. Millôr é cultura!

Acaba de chegar o novo livro de crônicas de Martha Medeiros: Feliz por nada

35. O Humor nos tempos de chumbo: uma historinha da “Antologia Brasileira de Humor”

Por Ivan Pinheiro Machado*

O segundo lançamento da L&PM Editores foi a “Antologia Brasileira de Humor” em dois volumes. Era 1976. Hoje, passadas mais de três décadas, este livro, que reúne os 82 dos mais importantes humoristas brasileiros da época, é um documento único, histórico e precioso. O humor estava – paradoxalmente – em alta. Vivíamos sob dura censura e eram o cartum, a tira, ou mesmo o texto de humor, os únicos veículos onde, por ignorância e descuido dos censores, ainda se podia “vazar” algum “contrabando” contra a ditadura. A “Antologia Brasileira de Humor” retrata de maneira extraordinária este momento da história cultural e política de nosso país. A prova da popularidade dos livros de humor são as listas de bestsellers da época. Entre os livros mais vendidos, a maioria eram livros do gênero. Títulos de Ziraldo, Millôr Fernandes, antologias de piadas e outros livros editados principalmente pela editora Codecri, de propriedade de “O Pasquim”, dominavam as listas. E toda a atividade humorístico/contestadora do país, na época, emanava de uma velha casa no alto da ladeira da rua Saint Roman, no final de Copacabana, no Rio de Janeiro. Lá era a a sede do “templo” da resistência cultural brasileira, “ O Pasquim”.

Os volumes 1 e 2 da "Antologia Brasileira de Humor"

Havíamos estreado como editora em agosto de 1974 com o Rango 1, do Edgar Vasques (leia o post que conta esta história). O Lima, o Edgar Vasques, o Fraga (humorista e colaborador da Folha da Manhã de Porto Alegre) e eu formávamos a equipe que editaria a primeira grande antologia organizada naqueles tempos sombrios.

Para que o nosso projeto se concretizasse precisávamos “vender” a ideia para a turma do Pasquim. Millôr, Ziraldo, Caulos, Ivan Lessa, Jaguar, Fortuna, Henfil e o resto da “patota” (como eles se auto-intitulavam) tinha que endossar a empreitada. Além é claro, da turma de São Paulo, com Laerte, Angeli, Luiz Gê, Chico e Paulo Caruso entre muitos outros. Se o pessoal do “Pasquim” aderisse, certamente todo mundo seguiria.

O Edgar Vasques era um cara conhecido pelo seu original e brilhante personagem Rango (que mais tarde seria publicado também pelo “Pasquim”). Tendo ele como referência, marcamos – via caríssimos telefonemas interurbanos –, encontros com Millôr Fernandes e Ziraldo no Rio de Janeiro. Éramos meninos de pouco mais de 20 anos e Millôr e Ziraldo já eram monstros sagrados da cultura brasileira. O encontro com Millôr foi inesquecível. Ele se mostrou gentilíssimo, recebeu-nos em sua cobertura/estúdio na praça Gen. Osório e, depois do encontro, nos convidou para almoçar na sua casa, na Vieira Souto esquina com Aníbal de Mendonça. Neste prestigiado endereço tivemos a oportunidade de comer um verdadeiro banquete de comida brasileira promovido por Dona Vanda, esposa do Millôr. De lá, fomos até a sede do “Pasquim”, onde Ziraldo nos aguardava precedido por um telefonema do Millôr. Subimos a íngreme ladeira da rua Saint Roman e lá apresentamos ao Ziraldo o projeto da “Antologia” pedindo que ele fizesse um “meio-campo” entre nós e o pessoal que colaborava no “Pasquim”. Ele achou ótimo e se comprometeu a cobrar dos parceiros o material para inclusão na antologia. Henfil, Caulos, grandes figuras, testemunharam o encontro e imediatamente se solidarizaram conosco prometendo também nos ajudar a “cooptar” o resto do pessoal. Até que, no meio da nossa conversa, Ivan Lessa entrou na sala. Eu, que achava o Ivan Lessa e o Millôr os caras mais inteligentes do Brasil, preparei-me para me curvar diante do gênio. Ele estava sério, olhou para nós irritado e perguntou:

– Quem são estes caras? (Bem assim).

O tom era de poucos amigos. Ziraldo ficou meio constrangido, mas falou:

– Eles são gaúchos lá de Porto Alegre, estão organizando uma Antologia Brasileira de Humor e querem a nossa colaboração.

Ivan Lessa passou da irritação à indignação:

– Pôrra Ziraldo! Você adora dar força para a concorrência! Não vê que estes caras são nossos concorrentes, pô! Porque a Codecri não faz esta porra desta antologia? Desta aí eu estou fora!

Ficamos paralisados. O Ziraldo, o Caulos e o Henfil, chateadíssimos, esperaram o Ivan Lessa sair da sala batendo a porta para se desculparem. Nós estávamos chocados. O Ziraldo procurou contemporizar:

– Não levem a mal, porque o Ivan é assim mesmo…deixa comigo, eu convenço ele a participar.

Seis meses depois, ia para as livrarias a “ Antologia Brasileira de Humor” em dois volumes,  com capa do grande cartunista paranaense Miran, 10 mil exemplares de tiragem (cada volume) e com a participação de 82 humoristas, entre eles… Ivan Lessa.

Abaixo, separamos alguns dos cartuns que foram publicados nos dois volumes da antológica antologia. Clique e folheie à vontade:

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o trigésimo cinco post da Série “Era uma vez… uma editora“.

O fim das máquinas de escrever

A notícia do fechamento da última fábrica de máquinas de escrever mecânicas do mundo causou certo pesar por aqui. Não por nostalgia, mas pela reverência que qualquer amante das letras tem pelas geringonças barulhentas que ajudaram nossos escritores a dar forma a algumas das maiores obras da literatura mundial.

“Desde que Mark Twain estreou como o primeiro escritor a batucar seus textos em quatro fileiras de teclas, a literatura adotou o invento como companheiro inseparável”, diz o texto da jornalista Dorrit Harazim para a revista Piauí deste mês. Desde então, vários outros autores foram flagrados “barulhando” textos geniais por aí:

Jack Kerouac

Millôr Fernandes

Uma sincera demonstração de afeto de Bukowski por sua máquina de escrever

John Fante

Hunter Thompson

Não só a literatura, mas também a música tem muito a agradecer às Olivettis, Remingtons, Hammonds, Olympias e Underwoods da vida…

Bob Dylan

Sobre “Millôr Definitivo”

Mais de 600 páginas de Millôr em estado puro

Este livro espetacular é o resultado de uma verdadeira operação “pente-fino” na obra de Millôr Fernandes. Muitas foram as pessoas que colaboraram no “rastreamento” das frases deste grande intelectual brasileiro, dentro e fora da L&PM. Mas foi aqui na editora que executamos a monumental tarefa de selecionar, reunir, “xerocar” e assinalar quase 10.000 frases. Esta equipe foi capitaneada por Jó Saldanha, Fernanda Veríssimo e por mim. Consultamos as coleções de “O Cruzeiro”, “Veja”, “Isto É”, “O Pasquim”, “Pif-Paf”, “Jornal do Brasil” e todos os livros publicados por Millôr como “30 anos de mim mesmo”, “A história é uma história”, “A verdadeira história do Paraíso”, “O livro vermelho dos pensamentos de Millôr”, “Fábulas fabulosas”, “Hai-kais”, “Poemas” entre muitos outros, além das 21 peças de teatro originais, criadas por ele (para quem não sabe, Millôr também traduziu mais de 100 peças de teatro, entre elas “Hamlet”, “Rei Lear” e “A megera domada” de Shakespeare, “Pigmaleão” de Bernard Shaw e “Gata em telhado de zinco quente” de Tennessee Williams. O material original, com as páginas de livros, jornais e cópias de revistas formariam uma pilha de mais ou menos três metros de altura, caso fossem empilhadas, é óbvio… Millôr analisou as 10 mil frases e cortou mais de 4 mil. Foram aprovadas 5.142 frases. O trabalho começou em 1988 e o livro saiu finalmente em 1994 com um mega lançamento na churrascaria Marius em Ipanema, Rio de Janeiro. Um mês depois, faríamos outro grande lançamento na pizzaria “Birra e Pasta” em Porto Alegre, numa grande festa comemorando os 20 anos da L&PM Editores. De lá para cá, este livro já vendeu bem mais de 50 mil exemplares.

São mais de 600 páginas de Millôr Fernandes em estado puro. Há no mercado uma edição de luxo em capa dura, no valor de R$ 74,00 e  a versão em bolso, com texto integral por R$ 29,00. É um fantástico conjunto de preciosidades intelectuais. Uma síntese do pensamento de Millôr Fernandes. Frases que marcaram nossa história recente e traduzem de maneira genial o que se viu, sonhou, sofreu e vibrou nestas últimasd décadas. (Ivan Pinheiro Machado)