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Os 63 anos de Caio Fernando Abreu

Parece exagero, mas eu comecei a escrever ficção com 6 anos de idade, assim que aprendi a ler e escrever. As coisas foram indo devagar. Eu nasci no interior e minha avó, que era professora de português no colégio estadual, me estimulava muito. Minha mãe era professora de história, tinha muito livro em casa, e eu comecei a escrever de uma forma um pouco inconsistente, intuitiva mesmo. Logo comecei a inventar as minhas historinhas: minha primeira heroína foi Lili Terremoto, uma menina da pá virada. Não parei mais. Eu não sabia muito bem o que estava fazendo. Acho que não me passava pela cabeça que livros fossem escritos por escritores. Não sabia que queria ser escritor. Depois, eu comecei a ir por esse caminho, li muito Monteiro Lobato, li As mil e uma noites, e atacava a biblioteca do meu pai às escondidas: as coisas que ele me proibia de ler eram justamente as que eu lia. (Caio Fernando Abreu em seu diário, texto publicado no livro Para sempre teu, Caio F. de Paula Dipp, ed. Record) 

12 de setembro de 1949: o aniversário de um aninho de Caio Fernando que aqui aparece no colo do pai e ao lado da mãe

Caio Fernando Abreu nasceu no dia 12 de setembro de 1948 na cidade gaúcha de Santiago do Boqueirão. Menino de cidade pequena, cresceu ouvindo as músicas do rádio do avô, trilhas sonoras de partir o coração nas vozes de Carlos Gardel e Liberdad Lamarque. Sua infância teve os pés na terra batida, as mãos nas frutas do quintal, os olhos abertos como os das suas duas corujas de estimação. 

Pena que, como os pássaros de sua infância, ele tenha voado tão cedo pra longe de nós… Saudades de Caio…

De Caio Fernando Abreu, a L&PM publica Fragmentos, O ovo apunhalado, Triângulo das águas e Ovelhas negras.

39. Martha Medeiros: uma história de sucesso

Por Ivan Pinheiro Machado*

No começo dos anos 80, Beth Perrenoud trabalhava como assessora de imprensa da L&PM Editores. Um dia, ela deixou sobre a minha mesa uma pasta e disse “lê esta poeta. É sensacional”. A luta pela sobrevivência numa inflação de 20, 30% ao mês, não permitiu que houvesse clima para examinar com carinho aqueles poemas cuidadosamente encadernados numa daquelas pastas de colégio, com presilhas.

Capa da primeira edição de "Strip-tease", da Brasiliense

Um ano depois, em 1985, Beth surgiu na minha sala novamente, desta vez com um livro na mão: “olha o livro que não quiseste publicar”. E me deu Strip-Tease, de Martha Medeiros, lançado pela Brasiliense que, na época, era uma das mais importantes e prestigiadas editoras brasileiras. A Beth, além de bonita, é uma ótima pessoa. Amiga da Martha e leal à L&PM, ela estava muito chateada, afinal me dera a oportunidade de publicar o livro…

Eu li Strip-Tease em uma hora. Eram poemas diferentes daqueles que chegavam diariamente à minha mesa, pleiteando publicação. Uma linguagem coloquial e ao mesmo tempo intensa, visceral. Uma poesia contemporânea, falando sobre sua geração de uma forma nova, direta, sem arabescos desnecessários, mas com uma intensa força poética. Enfim, eu estava diante de uma grande poeta que a inflação, o descuido, a inexperiência e as vicissitudes de um começo difícil tinham nos impedido de publicar.

Poucos têm uma segunda chance na vida. Graças a minha insistência e a generosidade da Martha, tivemos a nossa. E publicamos seu segundo livro de poemas, Meia noite e um quarto em 1987. Depois, em 1991, lançamos Persona non Grata e, em 1995, De cara lavada. Em 1998, Martha reuniu todos os seus livros de poemas e fez uma seleção que foi publicada na então recém criada Coleção L&PM POCKET com o título de Poesia reunida.

A esta altura ela estava abandonando uma próspera carreira de publicitária e já era uma cronista de sucesso, escrevendo semanalmente para o jornal Zero Hora em Porto Alegre. Em 1997, publicamos seu primeiro livro de crônicas, Topless. Depois, saíram Trem-Bala (1999), Non Stop (2000), Cartas extraviadas e outros poemas (2000), Montanha-russa (2003), Coisas da vida (2005) e o bestseller Doidas e Santas (2008). Pela editora Objetiva, ela publicou os romances “Divã”, “Selma e Sinatra”, “Tudo o que eu queria te dizer” e “Fora de mim”.

Foram feitas adaptações – com grande sucesso – de seus livros para TV, teatro e cinema. Enfim, Martha tornou-se um sucesso nacional. Ou melhor, um grande sucesso nacional. Seu livro mais recente Feliz por nada, lançado dia 15 de junho de 2011,  já era o livro mais vendido no Brasil duas semanas depois, ocupando o primeiro lugar nas listas dos mais vendidos das revistas nacionais Veja e Época.

Hoje, o Brasil inteiro conhece Martha através dos seus livros, da TV, dos filmes, das peças de teatro e das crônicas que ela publica semanalmente nos jornais Zero Hora, de Porto Alegre e O Globo do Rio de Janeiro.

Com o tempo, como cronista, ela foi ampliando esta visão do cotidiano com as belas ferramentas que sua grande poesia lhe dá. Suas crônicas tem o raro sortilégio da identificação. Quando recém começava sua carreira literária, muito jovem, no início dos anos 80, Martha chamou a atenção de Millôr Fernandes e de Caio Fernando Abreu que se encantaram com o seu trabalho. Em seu texto sobre ela, Caio foi sintético e profético sobre o futuro da cronista/poeta: “A poesia de Martha acontece o tempo todo, do lado de dentro ou de fora da gente. Por ser poeta, ela consegue captá-la e dar-lhe a mais sensível e contemporânea das formas. Então comove. E segue o baile.”

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o trigésimo-nono post da Série “Era uma vez… uma editora“.

Caio Fernando Abreu e Millôr Fernandes falam de Martha Medeiros

Martha Medeiros – a poeta – teve dois padrinhos de respeito: Caio Fernando Abreu e Millôr Fernandes. Curiosamente ela foi se consagrar, popularmente, no texto. A crônica e a ficção fizeram de Martha uma “celebridade” literária. Seu livro Doidas e Santas, lançado em 2009, até hoje é um fenômeno de vendas. O Divã rendeu um filme muito elogiado e a peça baseada em Doidas e Santas está em cartaz até hoje e sempre  lotada. A poesia de Martha está disponível nos livros Poesia reunida e Cartas extraviadas. Vale a pena. Poesia é um gênero que não vai para a lista dos bestsellers. Mas ler a boa poesia é uma emoção inesquecível. No caso de Martha, os  fãs que não conhecem sua poesia, não sabem o que estão perdendo. Millôr e Caio que o digam! (IPM)

A poesia de Martha é de câmara. A poesia de Martha é mínima, como é mínimo o eu contemporâneo, confundido em sua identidade com memórias de filmes noir, reflexos luminosos de neon, cores de out-door, velocidade de videocassete – repertório romântico retirado mais da enorme adega do imaginário coletivo do que da própria vida. Nesse sentido, ela consegue dar voz a uma geração inteira – essa que se movimenta, mais do que entre verdadeiras emoções, entre os clichês das emoções de um tempo, que pode tanto refletir os anos 40 quanto um futuro mais parecido com histórias em quadrinhos do que com sua possibilidade real.

Entre Casablanca, Ingrid Bergman ao som de As Times Goes Bye, e Harrison Ford caçando replicantes em Blade Runner, é que acontece essa poesia. Nos tempos de agora, plenos anos 80, onde o jantar à luz de velas foi preparado num forno microondas, a gardênia de Billie Holiday convive em paz com o disco-laser e o vestido longo de seda para dançar cheek to cheek foi comprado num bom free-shop da moda. Com seu dom para recriar lugares-comuns, numa poesia que frequentemente gira em torno de frases feitas reelaboradas, neste Meia-noite e um Quarto, seu segundo livro, Martha Medeiros assume uma identidade inconfundível na poesia brasileira seguindo, à sua maneira, a trilha aberta por Ana Cristina César.

Extremamente sintética (quase nunca seus poemas ultrapassam poucos versos), com delicadeza, ironia e sofisticação, ela passeia pelas carências, relações e fantasias de um momento histórico que, por incluir nele mesmo vários outros tempos passados, não dispõe ainda de uma face própria. Se é verdade que a boa literatura sempre tem a função de ajudar a definir melhor a face do tempo em que foi escrita, não tenho a menor dúvida ao afirmar que a literatura de Martha, portanto, é da melhor qualidade. Mas essa qualidade – a dos dias de hoje, pós-modernos -, longe das sinfonias grandiloqüentes, está mais próxima de um solo de sax, um gemido de guitarra elétrica, dedilhar rápido de piano ou sopro em flauta-doce. Que, talvez por esta singeleza e despretensão tiponew-bossa, imediatamente cria no leitor a magia rara da identificação.

A poesia de Martha acontece o tempo todo, do lado de dentro ou de fora da gente. Por ser poeta, ela consegue captá-la e dar-lhe a mais sensível e conemporânea das formas. Então comove. E segue o baile.

Caio Fernando Abreu
Menino Deus, outubro de 1987

Martha, Ô Martha

Millôr Fernandes

Martha Medeiros vem de novo, um terceiro livro. Gostei do anterior, uma revelação, próxima disso que o pessoal tem por bem chamar minimalista. Neste, Persona Non Grata, Martha repete a dose, nem melhor nem pior, apenas excelente.

É do tipo poesia sincera, a dela. Quero dizer, não inventada, mas feita de impressões existenciais, pessoais, sentimentos que às vezes nem se realizam senão no ato da apreensão, e crescem no ato do registro. Isso mesmo, como num instantâneo fotográfico. O mocroinstante registrado na velocidade química de 1600 ASA (*) nunca existiu na realidade que vivemos, nunca o vimos, mas é o que permanece como (nossa) eternidade, guardada no fundo da gaveta.

Tem mais; brincando, brincando, o que Martha mais faz é poesia de amor. Tem mais ainda – é absolutamente compreensível, sobretudo para quem compreende.

O que tem a dizer no fundo? Acho que é – quem de nós poderá escolher alternativa, já nascido?

Em resumo, antes que te chateie – das duas uma; ou a poesia morreu, ou a poesia e isso.

E, claro, aquilo. João Cabral, Paulo Mendes Campos e Manoel de Barros estão aí mesmo e não me deixam mentir.

* Pros ignorantes de fotografia: índice numérico de exposição de um filme no sistema adotado pela American Standards Association , usado para indicar a sensibilidade à luz  da emulsão do filme. Millôr é cultura!

Acaba de chegar o novo livro de crônicas de Martha Medeiros: Feliz por nada

Os contos de Caio Fernando Abreu, por Lygia Fagundes Telles

O que me inquieta e fascina nos contos de Caio Fernando Abreu é essa loucura lúcida, essa magia de encantador de serpentes que, despojado e limpo, vai tocando sua flauta e as pessoas vão-se aproximando de todo aquele ritual aparentemente simples, mas terrível porque revelador de um denso mundo de sofrimento. De piedade. De amor.

Mundo de uma desesperada busca, onde as palavras se procuram no escuro e no silêncio como mãos que raramente (tão raramente, meu Deus) se encontram e se separam em meio do vazio. Da solidão. “O pensamento verte sangue” diz o poeta. É desse sangue que essas páginas ficam impregnadas – mas tão disfarçadamente, tão ambiguamente: por pudor, talvez, Caio Fernando Abreu disfarça, escamoteia através das personagens (sempre anti-heróis) a “dor que deveras sente” . O medo, a perplexidade, a cólera, a ironia, o fervor – o sentimento do homem caça e caçador é redescoberto neste corpo a corpo de criador e criação. Sim, suas personagens são os antiheróis, mas com eles Caio não constrói o anticonto tão ao gosto de seus companheiros de geração. Revolucionário sempre. Original sempre, mas sem se preocupar com modismos (importados ou não) que tentam impressionar um público que, de resto, já não se impressiona com nada. Ele não escreve o antitexto, mas O TEXTO que reabilita e renova o gênero. Caio Fernando Abreu assume a emoção.

Emoção esta que é vertida para uma linguagem que em alguns momentos atinge a rara plenitude próxima de um estado de graça. Linguagem que o coloca na família dos possessos (que já nos deu um Van Gogh, um Dostoievski, um Orson Welles), cultivadores não só da “paixão da linguagem”, na expressão de Octavio Paz, mas também da “linguagem da paixão”.

Gostaria de destacar aqui os contos que mais amei deste singular livro do moço gaúcho que um dia me escreveu numa carta: “Os crepúsculos têm sido lindos. Passei o melhor verão da minha vida, ganhei um gatinho chamado Saturno (ele é Capricórnio), amei muito, fiz ioga à beira-mar. Enfim, tenho agradecido por estar vivo e ter andado por todos os lugares onde andei e ter vivido tudo o que vivi e ser exatamente como sou”.

Apontar este ou aquele conto? Mas se vejo cada um dos textos que formam O ovo apunhalado como peças de um jogo, destacáveis e curiosamente inseparáveis na sua alquimia mais profunda, cada qual trazendo sua parcela de realidade e sonho, rotina e poética magia – vida e desvida com seu mistério e sua revelação.

Quando nos seminários de literatura os teóricos pedantes acabam por condenar a palavra, minha vontade é simplesmente mostrar-lhes um livro como este. Provar-lhes a atualidade da desacreditada palavra com a própria palavra, quando a serviço de uma técnica rica de recursos. Aliada a uma imaginação cintilante.

Lygia Fagundes Telles – São Paulo, abril de 1975

Texto publicado no Prefácio do livro O ovo apunhalado, de Caio Fernando Abreu – Coleção L&PM POCKET

Caio e Lygia nos anos 1970

Como conheci Caio F.

por Nanni Rios*

Quando cheguei ao trabalho naquela manhã de abril, vi em cima da mesa um embrulho com um bilhete. Bem que podia ser a lista de recomendações de uma chefe à sua estagiária que, naquele dia, trabalharia sem a sua supervisão. Mas como era meu aniversário, suspeitei que fosse um presente. Pelo formato do pacote, dava pra perceber que era um livro. Quando abri, descobri que era muito mais que isso.

Eu era estagiária do Núcleo de Comunicação do Centro de Artes da UDESC e minha chefe era a jornalista Celia Penteado, uma paulistana radicada em Florianópolis, mãe do Alê, esposa do Paulo, fã de Beatles e leitora de Kerouac e Caio (na época eu não conhecia nenhum dos dois). Um ser doce e gentil, além de profissional competente e antenada, a Celia me deu a melhor primeira experiência profissional que eu poderia desejar. Eu era apenas uma caloura do curso de Jornalismo na UFSC e também da licenciatura em Teatro da UDESC. Já gostava de música, literatura e cinema mas tudo ainda restrito às referências da academia e a parca programação cultural da Ilha. Até que naquele aniversário, a Celia deu o start para uma grande mudança.

O livro que ela havia deixado em cima da minha mesa era um exemplar de Morangos Mofados, de Caio Fernando Abreu. Uma edição da Brasiliense de 1987, o ano em que nasci. Um pouco gasto pelo tempo, com folhas amareladas e cheias de marcas, linhas e mais linhas sublinhadas e comentários escritos a lápis nas margens, aquele livro contava sobretudo a relação da Celia com a literatura do Caio. Era um presente e tanto, uma relíquia pessoal que me deixou lisonjeada.

No bilhete, ela me contava que leu e releu aqueles escritos quando tinha mais ou menos a minha idade e os registros e impressões daquela experiência ficaram guardados ali. Se já éramos próximas por diversas razões, aquele presente criou uma identificação ainda maior. Não tenho certeza se foi neste mesmo bilhete ou se foi pessoalmente, mas lembro que foi nesta época que ela inaugurou o bordão “Nanni, eu sou você amanhã!”

Depois do Morangos Mofados, não parei mais. Devorei tudo de Caio que encontrei pela frente, de livros a  filmes e peças de teatro. Foi um caminho sem volta.

*Nanni Rios é jornalista, editora de mídias sociais da L&PM e fã de Caio F.

Conheça os livros do Caio Fernando Abreu que fazem parte da Coleção L&PM Pocket: Fragmentos, Ovelhas Negras, O Ovo Apunhalado e o Triângulo das Águas.