19. O perigoso ofício de editor

Por Ivan Pinheiro Machado*

Todo editor com alguma presença no mercado sofre um assédio diário por parte de escritores novos ou nem tanto. É um lado estranho da profissão, pois temos que administrar a absoluta impossibilidade de publicar 99,9% do que nos é oferecido, tendo o cuidado de não fulminar sonhos, ilusões e, por que não, vocações. As editoras mais atuantes do mercado, sem exceção, têm o seu projeto editorial. Em cada uma delas, há um grupo de profissionais que faz a prospecção de novos títulos. Sempre dentro de uma ideia de conjunto de lançamentos e respeitando as séries, as grandes coleções e finalmente aquilo que chamamos a “cara” da editora ou, falando sério, a filosofia da editora. Ou seja, não se faz uma projeto de programação anual esperando que chegue algum original genial pelo correio ou, modernamente, num PDF via e-mail. Não. O projeto editorial de uma editora de respeito é sempre previamente traçado e a busca de títulos obedece a critérios rigorosos, tanto comerciais, como culturais. E isto, obviamente, não impede que sejam descobertos autores inéditos.

Mas há, de parte de muita gente, a ideia de que o editor TEM que ler o seu livro, TEM que publicar seus primeiros poemas. Alguns autores não admitem a recusa. Acham que uma editora comercial é uma fundação sem fins lucrativos. Enquanto que, na verdade, uma editora é um negócio como outro qualquer; tem dezenas, às vezes centenas, de funcionários, investe em matéria-prima, equipamento, tecnologia, marketing dos autores, prestadores de serviço, etc, etc. Ou seja, uma editora tem que ter resultado comercial para poder pagar seus escritores, fornecedores e sobreviver como negócio. Dito isto, vou contar uma pequena fábula sobre o perigosíssimo ofício de editor:

Um punhal surge do escuro

Foi lá pelo começo dos anos 1990. Um jovem poeta, conhecido meu e filho de uma pessoa de muito prestígio na cidade, ligava insistentemente pedindo para falar comigo. Eu, sabendo o motivo do telefonema, instruía minha secretária a dizer que não estava para ver se o cara percebia que eu não queria falar. Mas ele insistiu, insistiu tanto, que eu acabei atendendo. Ele queria publicar os seus poemas para a Feira do Livro de Porto Alegre daquele ano. Eu expliquei que não estávamos fazendo livros de poesia, que a Feira do Livro estava muito em cima da hora (dois meses) e que – ele me perdoasse – mas era comercialmente muito complicado publicar poetas estreantes, etc. etc. Então ele pediu que, pelo menos, eu lesse os poemas dele. E se despediu bastante aborrecido. Prometi que leria seu precioso livro. E cumpri. Li os primeiros três poemas. Eram tão primários, infantis (o cara tinha uns 35 anos) que parei de ler e esqueci do assunto. Nossa sede era um sobrado na aprazível rua Nova York no bairro Higienópolis em Porto Alegre. Um dia de inverno, fiquei trabalhando até mais tarde e fui o último a sair, já noite fechada. Meu carro estava estacionado em frente à editora. Distraído, eu fechava o portão, quando uma sombra saltou de trás de uma árvore. Meu coração disparou, pois imaginei um assalto. O vulto aproximou-se e a luz do poste de iluminação da rua fez com que rebrilhasse uma faca com uma lâmina de mais ou menos um palmo de comprimento. Parei aterrorizado. Quando consegui tirar os olhos da faca e olhar na cara do sujeito vi que era ninguém menos do que… o poeta. Seus olhos faiscavam. “Agora terás que me dizer por que não vais publicar meus poemas!!!”

Dei dois passos para trás. Fiquei com vontade de correr, afinal, como dizia o personagem de Albert Finney em “À sombra do vulcão”(de John Huston), aquela seria “uma forma estúpida de morrer”. Mas correr seria uma imensa humilhação. Aos poucos, retomei a coragem e falei mansamente, sempre cuidando aquela lâmina ameaçadora. “Calma fulano (perdoem, mas não posso dizer o nome do cara), quem é que disse que eu não vou publicar o teu livro?”. Ele parou, fez um ar de espanto e deixou cair os braços. Ficou olhando aparvalhado para a faca e dizia baixinho: “o que que eu estou fazendo”. Enquanto ele fazia esta reflexão, eu saltei prá dentro do meu carro e saí cantando pneu. O coração batia na boca. Nunca mais vi o poeta. Pra dizer a verdade, nunca mais ouvi falar do poeta. Mas, para todos os efeitos, sempre que saio da editora mais tarde, anoitecendo – até hoje – sempre olho para os lados. Pode aparecer um assaltante, é verdade, mas aprendi a tomar cuidado, sobretudo, com os poetas incompreendidos.

Para ler o próximo post da série “Era uma vez uma editora…” clique aqui.

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