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Um obsceno e apaixonante safado em Dublin

Há cinquenta e sete anos atrás, no verão de 1954, J.P. Donleavy escreveu a carta que iria determinar o rumo da sua vida. O destinatário era Maurice Girodias, dono da editora Olympia Press, em Paris. “Caro senhor, eu tenho o manuscrito de um romance em inglês chamado Sebastian Dangerfield“. O livro, que seria renomeado como The Ginger Man, já havia sido rejeitado por mais de 30 editoras, em parte devido à sua narrativa considerada desconcertante, de conteúdo erótico e irreverente. “A obscenidade é uma parte muito importante desta novela”, alertou o autor em sua carta. Mas ele teve o cuidado de acrescentar que “partes já haviam sido publicadas no Manchester Guardian“.

Em meados de 1954, as publicações da Olympia Press incluiam autores que íam de Samuel Beckett a Jean Genet, passando por obras clássicas da literatura erótica como Fanny Hill e romances de Apollinaire e Bataille, todos em inglês. Na época, Girodias foi considerado um editor de livros de qualidade literária duvidosa (apesar de ter publicado, na Olympia, Lolita de Vladimir Nabokov), mas que não chegavam a ser vistos como pornografia barata. No entanto, este era o gênero que estava prestes a se tornar a especialidade de Girodias.

A Olympia Press comprou o romance de Donleavy por 250 libras, recebido pelo escritor em dinheiro e entregue por um intermediário em uma livraria do Soho. Só que, sem avisá-lo, Girodias incluiu The Ginger Man em uma coleção de livros literalmente pornográficos (tipo baixo nível) cujos títulos vinham anunciados na contracapa de The Ginger Man. “Quando eu descobri que meu romance tinha sido publicado nesta série pornográfica, eu percebi que ele nunca teria qualquer reputação, que meu livro nunca existiria de verdade, que ele seria apenas um pedaço de pornografia. Que eu jamais receberia nenhuma crítica. Foi um total pesadelo.” disse Donleavy ao jornal britânico The Guardian quando The Ginger Man completou 50 anos.

A capa da primeira edição de "The Ginger Man", da Olympia Press

Ao receber seus primeiros exemplares, Donleavy bateu com o punho cerrado na capa do livro e jurou que iria resgatar e vingar seu trabalho. Ele imediatamente tirou o livro da Olimpya Press foi processado por quebra de contrato. Vieram então vinte anos de litígio que terminou com Donleavy não apenas vencendo o processo como virando dono da Olympia Press.

Donleavy, que nasceu em Nova York no ano de 1926, mudou-se para a Irlanda depois da II Guerra Mundial e até hoje mora em uma fazenda em Levington Park, há 50 milhas de Dublin, onde continua escrevendo sempre à mão. The Ginger Man chegou a ser censurado – e banido nos EUA e na Irlanda – por ser considerado obsceno, mas hoje está na lista das 100 melhores novelas da Modern Library. O personagem principal de Donleavy, o fascinante canalha Sebastian Dangerfield, foi inspirado em um amigo americano do escritor: Gainor Stephen Crist. Crist teria morrido a caminho da América do Sul em 1964 e, aparentemente, uma cruz marca seu túmulo em Santa Cruz de Tenerife, nas Ilhas Canárias. Mas para Donleavy seu desaparecimento ainda é um “grande mistério”.

Em 2005, Donleavy encontrou-se pela primeira vez com Johnny Depp para conversar sobre uma possível adaptação do livro e, a partir de então, Depp visitou o escritor algumas. Mesmo assim, não há nenhuma notícia confirmada de que o filme realmente sairá, apesar da vontade de ambos. O ator, aliás, disse que The Ginger Man é um grande livro pelo qual é apaixonado.

J. P. Donleavy num bom papo com Johnny Depp

Para finalizar, fica aqui a boa notícia: The Ginger Man acaba de sair na Coleção L&PM Pocket com o nome de Um safado em Dublin e semana que vem começa a chegar nos pontos de venda. Para saber mais sobre ele, leia um texto escrito pelo editor Ivan Pinheiro Machado (que como Johnny Depp é apaixonado por The Ginger Man).

52. Sebastian B. Dangerfield: o vagabundo iluminado

Por Ivan Pinheiro Machado*

Todos têm aqueles cinco livros da sua vida. Eu até tenho dúvida sobre os outros quatro. Teria de escolher entre dez, quinze. Mas sei bem qual é o primeiro da lista: Ginger Man, de J. P. Donleavy. A primeira vez que eu li tinha 18 anos. A segunda vez, eu já estava com 40 anos. Agora, quatro décadas depois de ter lido pela primeira vez, eu mantenho intacta a emoção, o fervor que as frases elípticas, barrocas, transgressoras e debochadas me causaram no primeiro encontro. Procuro, procuro e não me lembro de um livro cujo impacto tenha sido igual com tanta diferença de tempo entre a primeira e a segunda leitura.  Tudo porque este é um livro genial.

A primeira edição que li chamava-se, na edição brasileira, Sexta-feira triangular, lançado pela editora Civilização Brasileira. Meu exemplar, comprado pelo meu pai em 1970 é um dos 30 ou 40 livros que eu conservo daquela época. Colado com durex na lombada e no miolo, meu velho Sexta-feira triangular resistiu ao tempo, a várias leituras e chegou combalido ao começo da segunda década do século 21. E o mais impressionante é que este desgrenhado, rasgado, velho e amarelado livro contém um texto de divina vanguarda, refinada loucura e deslumbrante beleza quando trata das vicissitudes, das misérias e das grandezas da condição humana.

A edição colada com durex, a primeira lida por Ivan Pinheiro Machado

Certa vez, com pouco mais de 20 anos de idade, convidado pelo meu amigo Fernando Gasparian, eu fui a um jantar na sua casa. Sentei ao lado de Enio Silveira, o dono da Civilização Brasileira. Era um homem em torno dos 55 anos, cuja dignidade e postura de resistência à ditadura militar serviam de exemplo para todos nós. Sua grande livraria no centro do Rio de Janeiro fora incendiada pelo famigerado CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Enfim, eu o admirava profundamente e estava tenso sentado ao seu lado quando ele me olhou, me examinou de alto a baixo e perguntou: “E você, tão jovem, o que você faz?”. Eu não tive coragem de dizer que era editor e balbuciei que era jornalista, amigo do Gasparian. A seguir eu disse a ele: “Eu li Sexta-feira Triangular, que o senhor editou e achei um livro incrível, um dos mais impressionantes que eu já li”. O Enio afastou a cadeira e me olhou de novo de alto a baixo: “Você leu este livro?”. Eu confirmei com a cabeça. Ele sorriu e me disse que eu tinha sido um dos poucos que tiveram esta grande experiência, pois este livro “tinha sido um dos maiores fracassos de venda da Civilização Brasileira”.

J. P. Donleavy, seu autor, firme e forte com 80 anos hoje, publicou Ginger Man com pouco mais de 29 anos e é sua obra-prima. Americano, filho de pais irlandeses, morou nos EUA, em Dublin e hoje reside em Londres. Uma vez, trabalhando como fotógrafo para o jornal Zero Hora, antes da existência da L&PM, fui fotografar Erico Verissimo em sua casa no bairro Petrópolis em Porto Alegre. O repórter era o saudoso Marcos Faermann, criador de vários jornais alternativos, entre eles o famoso “Versus”. Terminada a sessão de fotos, eu perguntei ao Erico, que era um homem extraordinariamente gentil e generoso: “Erico, tu já ouviste falar de um tal de J. P. Donleavy? Eu li um livro dele que eu adorei, mas ninguém conhece este cara”. O Erico abriu um sorriso e disse “Ginger Man!”. Eu fiquei paralisado e bradei “Este mesmo!”. “É um livro belíssimo – ele disse -, louco, mas belíssimo”.

Por anos a fio eu dizia (de sacanagem) “este livro que só eu e o Erico Verissimo lemos no Brasil, é um livro genial…” Passou-se o tempo, muito tempo… Em 2006, estávamos eu e Caroline Chang, editora aqui da L&PM, numa reunião na Bienal de São Paulo com a agente inglesa-brasileira Tassy Bahran, quando ela falou: “tenho um livro aqui que o Johnny Deep  comprou os direitos para filmar, chama-se ‘Ginger Man’”. Eu, que estava distraído, dei um pulo. “O quê????”. A Tassy arregalou seus belos olhos verdes e perguntou no seu sotaque british-carioquês: “O que houve?”. Eu respondi apenas “Eu quero publicar este livro”. E contei toda esta história acima.

Pois bem. Compramos os direitos e a Cacá (como é conhecida mundialmente a Caroline Chang), num trabalho de detetive, localizou os herdeiros do tradutor Mario Mascherpe e comprou os direitos de utilizar sua tradução feita para a Civilização Brasileira. Cabe aqui uma homenagem a este grande tradutor, pois este trabalho é quase intransponível pela velocidade na narrativa, pelas expressões de gíria e basicamente por ser um livro falado o tempo todo por desqualificados, vagabundos, miseráveis e personagens muito estranhos. Tudo isso em Dublin. Num clima joyceano de neblina, uísque, chuva fina, em meio à desesperança característica dos anos que sucederam a 2ª Grande Guerra. Pois Mario Mascherpe conseguiu a proeza de traduzir e manter intacta a linguagem e a magia do livro.

Capa de "Um safado em Dublin", que deve chegar à Coleção L&PM Pocket no fim de novembro

O grande Enio Silveira que me perdoe, mas mudamos o título, já que “Ginger Man” é praticamente intraduzível (homem-gengibre) no seu sentido irlandês. Optamos por Um safado em Dublin. Achamos que tem mais sex appeal. O livro sairá no final de novembro. A saga de Sebastian B. Dangerfield. E continua sendo um dos poucos livros geniais que eu li na minha vida.

* Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o quinquagésimo segundo post da Série “Era uma vez… uma editora“.