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Dez dicas de Denise Bottmann para quem deseja ser tradutor

SaraivaConteúdo – 19/08/2014 – Por Zaqueu Fogaça

A tradutora Denise Bottmann

A tradutora Denise Bottmann

São incontáveis as obras estrangeiras publicadas no Brasil todos os anos em língua portuguesa. Isso só é possível graças ao esforço de um profissional que às vezes escapa aos olhos apressados da maioria dos leitores: o tradutor, aquele sujeito que se debruça por meses, e até mesmo anos, no texto original para entregar a obra em português, pronta para ser lida.

O ofício do tradutor requer muita paciência para decifrar o labiríntico processo de composição de uma obra, como explica a tradutora Denise Bottmann: “O grande desafio é entender de fato o texto. Entender uma frase não significa entender as palavras e o sentido visível em determinada construção. Significa entender as articulações daquela frase dentro da construção geral da obra, princípios estruturais e compositivos utilizados pelo autor. Traduzir é basicamente decifrar o texto original, seguindo uma ou mais chaves de leitura, e reconstituir essa decifração num outro texto e em outra língua”.

Graduada em História e mestra em Teoria da História, a curitibana lecionou Filosofia na Unicamp; posteriormente, em 1985, direcionou seus esforços ao campo da tradução, trabalho que executa até hoje como tradutora de inglês, francês e italiano.

Entre os autores que verteu para o português figuram nomes como Hannah Arendt, Marguerite Duras, Henry David Thoreau e Virginia Woolf. Desta última, Denise traduziu o livro Mrs. Dalloway (L&PM), trabalho agraciado, em 2013, com o Prêmio Paulo Rónai da Biblioteca Nacional.

Mrs. Dalloway e Walden, dois títulos da L&PM traduzidos por Denise Bottmann

Mrs. Dalloway e Walden, dois títulos da L&PM traduzidos por Denise Bottmann

Em face das possibilidades e complexidades que cada obra apresenta, faz-se necessário definir uma linha tradutória. “Perante tal complexidade, o tradutor opta por uma determinada abordagem, um determinado ‘partido tradutório’. Assim, o principal objetivo de uma tradução em relação ao texto original é manter a coerência do partido adotado, checando constantemente sua validade em relação ao original”, diz a tradutora, que também é autora do blog Não Gosto de Plágio, no qual expõe ao público os plágios de traduções no país.

A pedido do SaraivaConteúdo, Denise Bottmann elencou dez componentes que considera importantes para quem ambiciona se aventurar pelo campo da tradução. Confira a relação abaixo.

1. DOMÍNIO DO PORTUGUÊS
Ter um domínio muito bom do português. E não se trata apenas de conhecer a língua. Trata-se de ter uma familiaridade lógica com estruturas linguísticas. Se a pessoa não tem pleno domínio linguístico de sua língua materna, dificilmente conseguirá ter uma percepção das estruturas lógicas de outra língua.

2. DOMÍNIO DA OUTRA LÍNGUA
Ter um domínio pelo menos bom da outra língua. O mais importante é o domínio das estruturas linguísticas; nesse sentido, eventuais e inevitáveis lacunas vocabulares podem ser preenchidas com o recurso a dicionários.

3. CONHECIMENTO DO ASSUNTO
Ter um domínio pelo menos razoável da área a que pertence a obra. Não é preciso ser um especialista no assunto, mas é indispensável um mínimo de conhecimentos gerais que permitam ao tradutor trafegar com relativa familiaridade pelos temas tratados.

4. MATERIAL DE APOIO
Dispor de ampla variedade de materiais de consulta e pesquisa: dicionários, enciclopédias, glossários, estudos sobre aquela área, outros livros relacionados ao tema. Com a Internet, tudo isso fica muito mais fácil.

5. CONTEXTO DA OBRA
Ter noção do quadro literário, teórico ou científico em que se insere a obra. Para quem traduz literatura, é indispensável ter noções de recursos estilísticos e literários em geral. Em humanidades em geral, é indispensável ter noção da linhagem a que se filia a obra e dos debates em torno do tema.

6. CONTEXTO HISTÓRICO
Ter noção do quadro histórico e cultural em que se insere a obra. É indispensável que se tenha noção da inserção histórica da obra e de suas relações com a época, seja uma obra de literatura ou de humanidades em geral.

7. AUTODISCIPLINA E CONCENTRAÇÃO
Com o instrumental dado nos seis itens anteriores, o tradutor põe mãos à obra. É um tipo de atividade intelectual que demanda muita concentração, por horas a fio, ao longo de semanas e meses. Requer bastante esforço continuado e disciplina para atender satisfatoriamente às exigências do texto.

8. DECISÃO E RESPONSABILIDADE
Capacidade de tomar decisões, adotar soluções conscientes e poder responder por elas. A responsabilidade do tradutor consiste em ser capaz de explicar a si e a outrem as razões de suas escolhas. Como traduzir envolve escolhas constantes, qualquer eventual alegação de que “É assim que está no original” simplesmente não faria o menor sentido.

9. RELEITURA E REVISÃO
Proceder a constantes releituras e revisões do texto em tradução.Traduzir é uma atividade extremamente dinâmica, e nada garante a priori a qualidade do resultado. Tropeços, deslizes, inconsistências, vaguezas nos afligem constantemente e muitas vezes escapam à nossa atenção. Daí a necessidade de reler e retrabalhar várias vezes o texto traduzido.

10. CALMA E PONTUALIDADE
Tradutores profissionais costumam dispor de prazos estabelecidos pelas editoras. Proficiência linguística, materiais de apoio, boa bagagem geral, dedicação e responsabilidade de pouco adiantam se não respeitarmos prazos e não cumprirmos o combinado com a editora. Mas o mais importante, acima de tudo, é manter a calma. Keep calm and translate on!

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A longa estrada de Jack Kerouac

Por André Bernardo*

Jack Kerouac foi o primeiro a reconhecer que seu livro, o semiautobiográfico On the Road, daria um ótimo filme. Tanto que, em 1957, escreveu uma carta para Marlon Brando, propondo a ele que comprasse os direitos de adaptação para o cinema. E mais: sugeria também que Brando interpretasse Dean Moriarty e ele, Sal Paradise. “Vamos lá, Marlon, arregace as mangas e responda”, instigava. Em vão. Kerouac morreu em 1969, sem ter recebido uma resposta sequer do ator. Dez anos depois, em 1979, Francis Ford Coppola comprou os direitos da obra. De lá para cá, vários cineastas, como Jean-Luc Godard, Joel Schumacher e Gus Van Sant, se revezaram na direção, mas o projeto nunca vingou. Tudo começou a mudar em 2004, quando Coppola assistiu a Diários de Motocicleta no Festival de Sundance e resolveu convidar Walter Salles para adaptar a obra-prima de Kerouac. “Li On the Road pela primeira vez quando tinha 18 anos e lembro que ele me marcou profundamente. É um livro que fala da necessidade de explorar o mundo e viver a vida à flor da pele. Quando rodei Diários de Motocicleta, tornei a lê-lo porque queria estar impregnado daquela ânsia por liberdade. A cada nova leitura, eu tinha uma reação diferente”, descreve Walter Salles, que levou seis anos para pesquisar o filme e 69 dias para rodá-lo.

Walter Salles durante as filmagens de Na Estrada

On the Road narra a busca por liberdade e a quebra de tabus. Embora tudo parecesse bem, nada estava realmente bem nos EUA do pós-guerra”, sintetiza o cineasta, que convidou os ainda pouco conhecidos atores Sam Riley e Garrett Hedlund para interpretarem os papéis de Sal Paradise e Dean Moriarty, os dois jovens amigos que, movidos a sexo, drogas e jazz, resolvem desbravar os EUA, de Costa a Costa.

MITO LITERÁRIO OU IMPULSO CRIATIVO?

Nos seis anos que levou para pesquisar sobre o filme, Walter Salles refez – “umas cinco vezes”, calcula o diretor – o trajeto que Sal e Dean percorrem no livro; conheceu pessoalmente contemporâneos de Kerouac, como o escritor Lawrence Ferlinghetti, hoje com 93 anos; e viu de perto o manuscrito de On the Road, um “pergaminho” de 37 metros de comprimento e cerca de 175 mil palavras.

Biógrafo de Jack Kerouac – King of the Beats, o inglês Barry Miles confirma a lenda de que a primeira versão de On the Road teria sido escrita em inacreditáveis 20 dias: de 2 a 22 de abril de 1951. “Para realizar essa façanha, Kerouac contou com a ajuda extra de algumas doses de benzedrina e café. Para não perder tempo colocando folhas de papel na máquina de escrever, redigiu o livro num enorme pergaminho feito de papel de teletipo”, afirma Miles.

Sim, a primeira versão de On the Road levou apenas três semanas para ser escrita. Mas, até a obra ser publicada, em 5 de setembro de 1957, Kerouac teve que reescrevê-lo algumas vezes. O livro é quase que um diário de bordo dos sete anos em que Kerouac e Neal Cassady passaram na estrada, vivendo de carona e sem destino certo. Em On the Road, Kerouac e Cassady foram rebatizados de Sal e Dean. Outras figuras importantes do movimento beat, como o poeta Allen Ginsberg e o romancista William Burroughs, ganharam os nomes de Carlo Marx e Old Bull Lee. Em Na Estrada, de Walter Salles, o autor de Uivo foi interpretado por Tom Sturridge e o de Almoço Nu, por Viggo Mortensen. Já LuAnne Henderson, mulher de Neal Cassidy, foi vivida pela atriz Kristen Stewart, mais famosa pelo papel de Bella na saga Crepúsculo.

CLÁSSICOS DA GERAÇÃO BEATNIK

No Brasil, On the Road foi publicado, pela primeira vez, ainda na década de 80, com tradução de Eduardo Bueno. E logo cativou uma legião de admiradores, como o músico Jorge Mautner, o poeta Paulo Leminski, entre outros intelectuais de vanguarda.

Atualmente, a L&PM publica 18 títulos de Kerouac, como Cidade Pequena, Cidade GrandeOs SubterrâneosOs Vagabundos IluminadosViajante Solitário, entre outros. Além de outros clássicos da geração beat, como Uivo, de Ginsberg, e Um Parque de Diversões da Cabeça, de Ferlinghetti.

Só On the Road, calcula Ivan Pinheiro Machado, editor da L&PM, já vendeu mais de 100 mil exemplares. “Kerouac passou uns 20 anos no limbo, sem procura e sem repercussão. Foi revivido pela coleção L&PM Pocket em 2004 e, aos poucos, tornou-se um dos livros mais lidos entre os 1.100 títulos da coleção”, orgulha-se Ivan.

Por aqui, um dos maiores “beatnólogos” que existem é o jornalista Roberto Muggiati. Autor de Blues – Da Lama à Fama, Improvisando SoluçõesNew Jazz – De Volta para o Futuro, ele leu On the Road em 1958, um ano depois de sua publicação.

No dia 5 de dezembro de 1959, Muggiati publicou um artigo intitulado Jack Kerouac e as Crianças do Bop no suplemento dominical do Jornal do Brasil e enviou uma cópia para o então agente de Kerouac, Sterling Lord. Três semanas depois, Muggiati recebeu um postal datilografado e assinado à mão pelo próprio Kerouac. Nele, o autor de On the Road dizia: “Eu lhe asseguro que a geração beat é um movimento honesto e, se a crítica é ‘Para onde vocês estão indo?’, a resposta é ‘Chegaremos lá’”. “Neal Cassady morreu em 1968, aos 42 anos, e Kerouac em 1969, aos 47. No caso deles, o que contou foi a intensidade, não a longevidade”, sublinha Muggiati.

Para o editor da L&PM, Ivan Pinheiro Manchado, não é difícil explicar o motivo do sucesso editorial de On the Road. “O livro de Kerouac reflete uma realidade que é o contraponto ao ‘american way of life’. Foi o primeiro de uma série de grandes livros que contestaram a sociedade americana pós-guerra e iniciaram uma nova estética transgressora. Transgressão, aliás, é uma boa palavra para definir o que foi o movimento beat”, opina Ivan. Walter Salles concorda. “De vez em quando, algumas pessoas me perguntam: mas, por que o movimento beat acabou? Nessas horas, só tenho a responder que o movimento beat não acabou; ele apenas se transformou em outra coisa. Não teria existido Bob Dylan se ele não tivesse lido On the Road, colocado a mochila nas costas e ido até Nova Iorque. Até hoje, ele seria apenas o Robert Allen Zimmerman”, reflete.

UMA VIAGEM QUE RESISTE AO TEMPO

Bob Dylan não foi o único. Johnny Depp é outro notório admirador de Kerouac. Em 1991, o astro desembolsou US$ 50 mil para comprar alguns itens do espólio do escritor, como uma capa de chuva, uma mala de viagem e um cheque sem fundos, entre outros itens. Dez anos depois, o famoso manuscrito de On the Road foi arrematado, em um leilão na Christie’s de Nova Iorque, por US$ 2,4 milhões. Curiosamente, quando morreu, em 21 de outubro de 1969, vítima de cirrose hepática, Kerouac tinha apenas US$ 19 em sua conta bancária. Mas o autor estava longe de ser uma unanimidade. Dos que atacavam seu estilo verborrágico de escrever, Truman Capote, de A Sangue Frio, foi um dos mais ácidos: “Isso não é literatura, é datilografia!”. Mas, e se Kerouac não tivesse sucumbido à bebida? Como estaria hoje, aos 90 anos, o ídolo da geração beat? Bem, para começo de conversa, Kerouac, provavelmente, detestaria a alcunha de “o ídolo da geração beat”. “O que sabemos é que ele não aceitava, no fim da vida, o rótulo de grande revolucionário”, pondera Ivan. Barry Miles confessa que se surpreendeu com o que descobriu sobre seu biografado. Ao longo dos anos, Kerouac criticou o movimento hippie, apoiou a Guerra do Vietnã e só votou em candidatos republicanos. “Acho que Kerouac odiaria o mundo de hoje”, opina Miles. Já Walter Salles pensa diferente. Ele pode até não saber ao certo como estaria hoje Kerouac, mas, a exemplo de alguns de seus contemporâneos, como Ferlinghetti e Gary Snyder, desconfia que o escritor continuaria “jovem de espírito”. “A coisa mais bacana de fazer o filme foi conhecer as pessoas de 80 anos mais jovens que já conheci na vida”, explica o cineasta.

*Matéria publicada no portal Saraiva Conteúdo em 15 de julho de 2012.