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16. Millôr Fernandes vai ao pampa

*Por Ivan Pinheiro Machado

No início dos anos 80, Millôr Fernandes e seu amigo, o fotógrafo Yllen Kerr (já falecido e conhecido como o homem que criou a moda de correr na beira da praia no Rio de Janeiro) vieram a Porto Alegre para uma excursão às fronteiras vazias dos pampas. Nosso amigo Paulo Odone Ribeiro, que mais tarde seria deputado e presidente do Grêmio Foot-ball Portoalegrense, havia convidado a dupla carioca para passar a Semana Santa na sua fazenda, na fronteira com a Argentina, município de São Borja, um dos legendários Sete Povos das Missões. O Paulo Lima, eu – já editores do Millôr – e nossas respectivas mulheres da época, em dois carros Alfa Romeo Ti4 2300, levaríamos o pessoal. Naquele tempo, as Alfas eram fabricadas no Brasil e tinham um tanque de gasolina de 100 litros. É importantíssimo que os jovens saibam que, para economizar gasolina, era proibido por lei vender o precioso combustível em fins de semana e feriados (viram como é bom ditadura?). Como eram 700 quilômetros de Porto Alegre até a Fazenda Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e iríamos na Sexta-feira Santa, tínhamos que ter autonomia de combustível, pois não poderíamos reabastecer no caminho.

Naquele tempo, no interiorzão, não havia rede de eletricidade. A luz chegava através de um motor movido a óleo diesel, que era ligado ao anoitecer e desligado logo depois do jantar. Isto quer dizer que não havia televisão, nem o mundo era globalizado. Depois de 12 horas de viagem, chegamos na fazenda num final de tarde cinematográfico. Um verdadeiro céu “de aerógrafo”, como disse o Millôr na ocasião. Para abrir a porteira da estância veio um peão de bombachas, camiseta regata branca, palito nos dentes, sandálias havaianas com esporas atadas ao pé (esporas no “garrão”, como se diz na fronteira) e, naturalmente, um reluzente 38 cano longo na cintura. Andamos uma centena de metros até a sede da estância, fomos recebidos pelo Odone e sua mulher Niúra que nos levaram imediatamente para o galpão, centro nevrálgico de uma fazenda gaúcha. O galpão é basicamente o local onde fica o pessoal de serviço. Ali está o fogo de lenha de coronilha que jamais se apaga: esquenta a água do chimarrão, cozinha o assado e aquece o pessoal nas madrugadas frias. No Rio Grande, o galpão é cultuado como o lugar de socialização, onde rolam as conversas, os causos, enquanto o chimarrão roda de mão em mão. Pois sentamos. A peonada vestida a caráter, quieta, só observava aquela conversa animada e se divertia com o sotaque carioca dos visitantes. Subitamente, um daqueles peões aponta para o Millôr e pergunta naquele sotaque fronteiriço, quase puxado para um portunhol:

– O senhor é do Rio de Janeiro?

– Sim sou, respondeu simpaticamente o Millôr.

E o peão tascou sem rodeios:

– Conhece o Moreira?

Houve um silencio perplexo.

– Um gordo!– arrematou, fazendo um gesto com os braços que indicavam uma barriga acentuada.

– Mas… – gaguejou Millôr Fernandes espantado – o Rio é muito grande…

– Mas o Moreira é um tipaço – disse o homem –, onde ele chega todo mundo já conhece pela prosa. Ele não para de falar!

O Millôr pensou, pensou e resolveu sair-se diplomaticamente:

– Sabe, não estou me lembrando do Moreira…

Millôr de bombachas

Millôr Fernandes “pilchado” em 1979 – Foto: Ivan Pinheiro Machado

Para confirmar visualmente a história que narro a seguir, vocês podem ver Millôr Fernandes totalmente “pilchado”, como um autêntico gaúcho. Botas, bombachas, chapéu de aba larga, lenço no pescoço e a fundamental guaiaca, que é o cinturão que abriga o revólver e as facas. Em poucos dias, o grande intelectual carioca parecia um autêntico habitante dos pampas do extremo meridional brasileiro. Yllen Kerr, jornalista, fotógrafo, apreciador de esportes radicais e corredor de rua, causou furor entre a peonada ao montar de forma impecável um dos cavalos tidos como dos mais “brabos” do plantel. Yllen tinha servido no exército, na Cavalaria, e tinha grande perícia para dominar um cavalo.

No começo da tarde do domingo, estávamos todos vestidos desta forma radical, quando fomos convidados para acompanhar e peonada até a fazenda vizinha onde haveria carreiras (de cavalos) numa cancha reta. Era o grande programa domingueiro na região. Estávamos nos preparando para entrar na camionete, quando o velho peão que nos guiava apontou para a arma que Millôr levava (descarregada, naturalmente):

– O senhor vai levar a arma?

– Acho que vou, disse o Millôr, rindo, mas sem muita convicção.

– Pretende usar? Perguntou o peão.

– Claro que não!

– Então não leve.

E encerrou o assunto. Na fronteira, cancha reta e revólver são assuntos muito sérios…

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