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A estreia de “O vento lá fora”: um poético documentário sobre Fernando Pessoa

Estreia na próxima segunda-feira, 6 de outubro, no Festival do Rio, às 20h, o documentário O vento lá fora, um retrato do poeta Fernando Pessoa criado a partir da leitura de seus poemas pela imortal Cleonice Berardinelli, 98 anos, reconhecida como a maior especialista em Pessoa no Brasil, e pela cantora Maria Bethânia.

Apresentada ao público uma única vez, na FLIP 2013, a leitura foi filmada no estúdio da Biscoito Fino durante dois dias pelo diretor Marcio Debellian. O roteiro do filme se constitui pela costura dos poemas com conversas sobre a obra de Pessoa, ressaltando aspectos da personalidade de seus heterônimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis.
Vale a pena assistir ao teaser do documentário:

A Coleção L&PM Pocket acaba de lançar Poesias inéditas & Poemas dramáticos.

Fernando Pessoa na Flip 2013

Os fãs de Fernando Pessoa que não puderam ir à Flip 2013 conferir de perto o encontro entre Maria Bethânia e a professora Cleonice Berardinelli, duas especialistas na obra do poeta português, podem assistir na íntegra ao vídeo do encontro. Além de estudiosas da obra de Pessoa, as duas são fãs confessas do poeta e de seus heterônimos e não deixaram a desejar na curadoria dos poemas. O vídeo é longo mas vale cada minuto:

O encontro aconteceu na sexta-feira, dia 5 de julho, na programação principal da Flip 2013.

Viva a loucura!

“Os loucos não possuem orelhas” (Shakespeare em Romeu e Julieta)

Em Elogio da loucura, o teólogo Erasmo (1469 – 1536)  faz uma ode aos insensatos. E diz logo no início do livro: “Está escrito no primeiro capítulo do Eclesiastes: ‘O número de loucos é ininito’. Ora, esse número infinito compreende todos os homens, com exceção de uns poucos, e duvido que alguma vez se tenha visto esses poucos.”

E lá pelo meio do livro completa: “Em minha opinião, quanto mais espécies de loucura houver, maior a felicidade…”

Então, como hoje é sexta-feira, aproveite para liberar um pouco dessa loucura sã que existe dentro de você. E se precisar de trilha sonora, aqui vão algumas. Porque apesar dos loucos não terem orelhas, como disse Shakespeare, eles adoram música.


 

Mas lembre-se: se no meio da loucura, você beber, não volte para casa dirigindo…

Maria Bethânia, Fernando Pessoa e a delicadeza

Por Nanni Rios*

Quem assistiu ao show Bethânia e as palavras, que fez turnê pelo Brasil em 2011, pode confirmar esta minha impressão: ficou difícil pensar em Maria Bethânia sem se lembrar de Fernando Pessoa. Ela recita os versos do poeta português como ninguém – talvez nem o próprio, que era tímido e não tinha a eloquência como dom – e com uma naturalidade impressionante, como só quem tem uma intimidade quase carnal com cada um daqueles versos conseguiria fazer. E é assim que ela faz. Cantou, encantou e se fez inesquecível. Me emocionei, aplaudi de pé e corri para a porta do camarim e de lá não saí até vencer o segurança – muito simpático, diga-se de passagem – pelo cansaço. Tiete assumida, consegui um abraço de Maria Bethânia, que me recebeu com um sorriso largo no rosto, ainda cheia de poesia e delicadeza.

“Bethânia e as palavras” em Porto Alegre (2011)

É por isso que hoje, no dia de seu aniversário, quero falar de Fernando Pessoa. O Poema do Menino Jesus reúne, na minha opinião, alguns dos mais belos versos escritos sob o pseudônimo de Alberto Caeiro e fica ainda mais bonito na voz dela. Vê-la ao vivo recitando este poema foi pura catarse e, desde então, não há mais como separá-los.

Ouça o trecho do show em que ela declama o poema:

Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
(…)
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
(…)
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios
(…)
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar.
(…)
*Nanni Rios é editora de mídias sociais da L&PM Editores, fã de Maria Bethânia e leitora de Fernando Pessoa.