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Você precisa conhecer a poeta russa Anna Akhmátova

Na maioria das vezes, quando se fala em literatura russa, os nomes que vêm à mente costumam ser sempre os mesmos e, na maioria das vezes, masculinos. Mas se o nome de Anna Akhmátova quase nunca é pronunciado na lista de notáveis, isso se deve não por falta de mérito, mas ao fato de ainda ser pouco lida fora da Rússia. Perseguida por Stálin, a poeta merece (e muito!) ser descoberta pelos leitores como mostra a ótima coluna de Gustavo Pacheco na Revista Época online. Os poemas de Akhmátova, com tradução de Lauro Machado Coelho, há anos são publicados pela L&PM Editores em diferentes edições.

Anna Akhmátova merece ser lida

Anna Akhmátova merece ser lida

ANNA AKHMÁTOVA E O POEMA DE UM MILHÃO DE GRITOS

Por Gustavo Pacheco – Revista Época – 16 de abril de 2019

É uma manhã de inverno na cidade que um dia voltará a se chamar São Petersburgo, mas neste momento se chama Leningrado. Em frente à prisão de Kresty, há uma fila com centenas de mulheres encasacadas que carregam embrulhos e cartas para seus maridos, pais e filhos presos pela polícia política de Stálin. As portas da prisão estão fechadas e ninguém vem falar com elas, mas todos os dias elas voltam, à espera de alguma notícia, algum sinal de vida.

É então que uma mulher de lábios lívidos se aproxima da poeta Anna Akhmátova, que está na mesma fila, e lhe pergunta, sussurrando:

– E isso, a senhora pode descrever?

A poeta responde:

– Posso.

Anos depois, ela contaria assim a reação da mulher: “Aí, uma coisa parecida com um sorriso surgiu naquilo que, um dia, tinha sido o seu rosto.”

Essa história é narrada como uma espécie de prefácio em Réquiem, o conjunto de poemas mais conhecido de Anna Akhmátova e um dos pontos mais altos da poesia do século XX, em qualquer idioma. Escrito entre 1935 e 1961, Réquiem condensa o sofrimento de incontáveis mulheres russas e também da própria autora. Escrevendo às vezes na primeira pessoa, às vezes na terceira, sempre com linguagem clara e concisa, ela transita entre o seu próprio desespero e o de tantas outras mulheres anônimas, com sua “boca fatigada, através da qual jorra um milhão de gritos”:

Gostaria de poder chamá-las, a todas, por seus nomes,
mas levaram a lista embora, e onde posso me informar?
Para elas teci uma ampla mortalha
com suas pobres palavras que consegui escutar.

Anna Akhmátova nasceu em 1889 em Odessa, na Ucrânia, e ainda criança se mudou para uma pequena cidade perto de São Petersburgo. Começou a escrever poemas aos onze anos de idade. Quando publicou seu primeiro livro, aos 23, já era uma das poetas mais aclamadas de São Petersburgo, ao lado de Óssip Mandelstam e de Nikolai Gumilióv, com quem viria a se casar. O estilo lírico e ao mesmo tempo contido de Akhmátova, que combinava alta carga emocional com uma linguagem direta e sem metáforas flácidas, rapidamente ganhou popularidade e gerou uma multidão de admiradores e imitadores. Segundo Joseph Brodsky, seu amigo e discípulo, os poemas dedicados a ela ocupariam mais volumes do que suas próprias obras reunidas.

Tudo começou a mudar com a entrada da Rússia na Primeira Guerra Mundial e a onda de devastação que veio em seguida. Em 1915, Akhmátova escreveu um poema intitulado Oração, em que se oferecia em sacrifício pelo fim da guerra:

Manda-me amargos anos de doença,
a febre, a insônia, a inquietação,
leva de mim meu filho, meu amigo,
e o dom misterioso de cantar.

Essa é a minha oração durante a tua liturgia:
após as tormentas de tão longos dias,
que a nuvem que pesou sombria sobre a Rússia,
transforme-se noutra nuvem, de gloriosos raios.

Quando lemos esse poema à luz da biografia da poeta, é difícil não ver nele uma premonição sinistra. Com o advento da Revolução Russa, a poesia de Anna Akhmátova passou a ser considerada “ultrapassada”, “individualista” e incompatível com o espírito coletivista do novo regime. Além disso, ela ficou marcada como viúva de um “inimigo do povo”. Nikolai Gumilióv, de quem ela havia se separado em 1918, foi acusado de envolvimento em uma conspiração e fuzilado sumariamente, três anos depois. Ela ficou sabendo pelos jornais, e escreveu este poema:

Não estás mais entre os vivos.
Da neve não podes erguer-te.
Vinte e oito baionetadas.
Cinco buracos de bala.

Amarga camisa nova
cosi para o meu amado.
Esta terra russa gosta,
gosta do gosto de sangue

A partir de 1923, Anna Akhmátova não conseguia mais publicar poemas e vivia na penúria quase absoluta, subsistindo com a magérrima renda de tradutora e pesquisadora. Ainda assim, mais tarde ela chamaria esses anos de “vegetarianos”, em comparação com o terror “carnívoro” que Stálin impôs à União Soviética a partir da metade da década de 1930. Seu marido, Nikolai Púnin, foi preso e levado para a Sibéria; o mesmo aconteceu com seu amigo Óssip Mandelstam, mais tarde assassinado na prisão, e com seu filho Lev, que passaria longos anos em campos de trabalho.

Mesmo privada do marido e do filho, proscrita, paupérrima, tuberculosa e com problemas na tireoide, Anna Akhmátova nunca deixou a poesia de lado. Foi nessa época que começou a escrever Réquiem e outras obras célebres, como o longo e épico Poema sem herói. Sabendo do risco que corria caso seus poemas fossem descobertos, ela confiou a um pequeno grupo de amigas a tarefa de memorizá-los. Uma dessas amigas, Lídia Tchukovskaia, descreve em suas memórias como isso acontecia: “Subitamente, no meio de uma conversa, ela ficava em silêncio, dirigia seu olhar para o teto e para as paredes, pegava um pedaço de papel e um lápis; então dizia em voz alta algo deveras mundano… cobria o papel com uma escrita apressada e me entregava. Eu lia os poemas e, após memorizá-los, devolvia-os em silêncio… e então ela queimava o papel…”

Com a chegada da Segunda Guerra Mundial, o esforço de união nacional deu margem a uma relativa abertura para os poetas e demais artistas proscritos. Mesmo sem publicar poemas há mais de quinze anos, Anna Akhmátova não tinha sido esquecida; foi chamada para falar a seus compatriotas no rádio, durante o cerco de Leningrado, e escreveu poemas patrióticos como Coragem, que se espalhavam de boca a boca entre os soldados no front.

O governo autorizou a edição de uma antologia de seus poemas e, no dia do lançamento, formaram-se imensas filas que disputavam a edição limitada de 10 mil exemplares. As autoridades foram pegas de surpresa e o Presidente do Soviete Supremo, Andrei Jdanov, ordenou que o livro fosse retirado de circulação. Em 1946, o mesmo Jdanov foi encarregado por Stálin de coordenar a política cultural soviética. Seu primeiro ato foi lançar uma campanha pública de condenação à arte “burguesa” e “reacionária”. Seu primeiro alvo foi Anna Akhmátova, que foi expulsa da União Soviética de Escritores, teve seu cartão de racionamento confiscado e foi mais uma vez proibida de publicar seus poemas.

Ela suportou a condenação com a sobriedade e dignidade de sempre, e continuou a escrever e reescrever seus poemas em segredo. Viveu o suficiente para ver a morte de Jdanov e do próprio Stálin, e o relaxamento gradual da censura sobre seus poemas. Na década de 1960, voltou a publicar livros, se tornou ainda mais popular do que era na sua juventude e sua reputação cresceu de forma sólida e consistente entre as novas gerações de poetas e leitores. Havia se tornado um dos poucos artistas russos de primeiríssima grandeza que não tinham sido assassinados ou escapado para o exílio. Talvez ela tivesse pressentido que um dia voltaria a ser a poeta mais amada da Rússia, pois muitos anos antes escrevera, no epílogo de Réquiem:

E se, neste país, um dia decidirem
à minha memória erguer um monumento,

eu concordarei com essa honraria,
desde que não me façam essa estátua

nem à beira do mar, onde nasci –
meus últimos laços com o mar já se romperam –,

nem no jardim do Tsar, junto ao tronco consagrado,
onde uma sombra inconsolável ainda procura por mim,

mas aqui, onde fiquei de pé trezentas horas
sem que os portões para mim se destrancassem.

Em 2006, quando as autoridades de São Petersburgo decidiram erguer um monumento a Anna Akhmátova no aniversário de quarenta anos de sua morte, não foi difícil escolher o lugar. A estátua de bronze, de três metros de altura, foi colocada em frente à prisão de Kresty.

* Devemos todos os poemas aqui transcritos a Lauro Machado Coelho (1944-2018), tradutor e biógrafo de Anna Akhmátova, a quem esta coluna é dedicada.

Uma taça de champanhe e um trem de ostras na morte de Tchékhov

“Anton sentou-se totalmente ereto e disse em voz alta e clara (embora ele não soubesse quase nada de alemão): Ich sterbe (Estou morrendo). O médico o acalmou, pegou uma seringa, deu-lhe uma injeção de cânfora e pediu champanhe. Anton tomou uma taça cheia, examinou-a, sorriu para mim e disse: “Já faz muito tempo que eu não bebo champanhe.” Ele esvaziou a taça e inclinou-se tranquilamente para a esquerda. E eu só tive tempo de correr em sua direção e colocá-lo na cama e chamá-lo, mas ele tinha parado de respirar e estava dormindo em paz como uma criança…”

O relato acima foi escrito por Olga, esposa de Anton Tchékhov, depois da morte do marido, na noite do dia 14 para 15 de julho de 1904.

Tchékhov, um dos maiores nomes da literatura russa, viu sua tuberculose se agravar em maio daquele ano. Em 3 de junho, ele partiu com Olga para a cidade alemã de Badenweiler, na Floresta Negra, de onde passou a escrever cartas para sua irmã Masha, nas quais descrevia a comida e o ambiente. Em sua última carta, ele comentou a maneira como as mulheres alemãs se vestiam: “não há uma única alemã decentemente vestida. A falta de gosto delas me deprime.”

Após sua morte, o corpo foi levado para Moscou em um vagão de trem refrigerado que servia para transportar ostras frescas, o que causou indignação em seu amigo e também escritor, Gorky. Outro fato que hoje soa engraçado é que, por engano, milhares de pessoas seguiram o cortejo fúnebre do general Fyodor Keller, por estar ele acompanhado de uma banda militar. Tchékhov foi enterrado ao lado de seu pai no Cemitério Novodenichy na capital russa.

Tchékhov e Gorky em 1900

Tchékhov e Gorky em 1900

 

Nikolai Gogol, o escritor que deu origem à moderna literatura russa

No ministério de… Não, é melhor não dizer seu nome. Ninguém é mais suscetível do que funcionários, empregados de repartições e gente da esfera pública. Nos dias que correm, todo sujeito acredita que, se nós atingimos a sua pessoa, toda a sociedade foi ofendida.

Não, o trecho acima não faz parte de alguma crônica recente publicada no jornal mais próximo. Ele foi escrito em 1842 e dá início a O Capote, conto de Nikolai Gogol. “Todos nós viemos de O Capote” proclamou Dostoiévski referindo-se ao mais célebre texto de Gogol e dando força à teoria de que foi a partir dele que a literatura moderna russa surgiu. A história de Akaki Akakiévitch, personagem de O Capote, seria trágica, não fosse cômica. Sua narrativa traz o burocrata em sua forma mais pura, sendo que a maior ambição de Akaki é comprar um capote novo.

Gogol

Nascido em 01 de abril de 1809 (20 de março pelo calendário Juliano), o ucraniano Nikolai Gogol criou textos que orbitam entre o fantástico e o real e deu vida a personagens que perdem tudo – o nariz, a razão, o sentido, o juízo, a identidade – e que parecem flertar, ao mesmo tempo, com Deus e o diabo. Criado sob forte influência religiosa e muito ligado à mãe, Gogol jamais teve um amor na vida, conforme atestam seus biógrafos.

Mas se Gogol foi incapaz de amar, ele conseguiu despertar em muitos leitores, paixões nunca antes experimentadas. Seu estilo, seu jogo de palavras, seu ritmo e sonoridade, permanecem tão fascinantes e modernos quanto na época em que vieram ao mundo.

“O Capote” está na Coleção L&PM Pocket

Mas assim como outros artistas brilhantes, Gogol foi uma alma perturbada. No início de fevereiro de 1852, num momento de delírio, queimou na lareira de seu quarto todos os seus manuscritos inéditos – incluindo o fim da segunda parte de Almas Mortas, o romance que estava escrevendo. Almas Mortas é uma belíssima e irônica ficção sobre a corrupção de uma classe decadente que domina o povo ignorante e escravo do Estado. Mas essa obra nunca chegou a ser concluída.

Em 4 de março de 1852 (21 de fevereiro pelo calendário Juliano), deprimido e fatigado pelos jejuns, Nikolau Vasilievich Gogol morreu em Moscou. Seu corpo embalsamado seguiu insepulto por mais de um dia, carregado pelos estudantes que lhe ofereceram homenagens acaloradas. Está enterrado no Cemitério Novodevichy.

USP promove seminário sobre literatura russa

russos

(imagem via Esponja Cultural)

Nos dias 23 e 24 de outubro, a USP promove o “Seminário Internacional de Literatura Russa: Estudos Comparados”, evento que marca os 50 anos da criação o da área de língua e literatura russa e os 40 anos da criação do Departamento de Letras Orientais na FFLCH-USP. Alguns dos autores que terão suas biografias e suas obras tratadas no encontro são: Alexander Pushkin, Velimir Khlebnikov, Ivan Turgenev, Fiodor Dostoiévski, Shilller, Nikolai Gogol e Daniil Kharms.

As inscrições são gratuitas e podem ser feitas no site do evento de 16 a 21 de outubro.

A L&PM publica diversos autores russos, cujas principais obras estão reunidas na Caixa Especial Literatura Russa.