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Quando todo dia era dia de índio

Calcula-se que eles eram cerca de quatro milhões, espalhados pela Terra Brasilis. Hoje, segundo o site da FUNAI, não passam de 460 mil. Os índios das Américas – assim chamados porque, em um primeiro momento, Colombo acreditou ter chegado às Índias – ganharam um dia só para eles em 19 de abril de 1940, durante o Primeiro Congresso Indigenista Interamericano realizado na cidade de Patzcuaro no México.

No Brasil, o 19 de abril só virou Dia do Índio três anos depois, quando Getúlio Vargas colocou a data no calendário oficial do país. Para marcar o dia, separamos alguns trechos de livros que trazem o índio como personagem principal ou como tema central. Vale a pena ler e descobrir uma época em que, como diria Baby do Brasil (ex Baby Consuelo), “todo dia era dia de índio”.

Com as cores do amanhecer tingindo a cena de dourado, os seis ou sete homens  que estavam na praia juntaram seus arcos e flechas e se prepararam para um encontro com os desconhecidos. De onde viriam os recém-chegados? De alguma ilha ou de alguma terra além-mar? Vinham provavelmente da Terra Sem Males, julgaram os mais experientes: o lugar onde todos eram felizes e ninguém morria, e que ficava para lá da imensidão das águas salgadas (Brasil: Terra à Vista! , de Eduardo Bueno)

Nesse mesmo instante, dois segundos talvez depois que a última flecha caíra no aposento, a folhagem do óleo que ficava fronteiro à janela de Cecília agitou-se e um vulto embalançando-se sobre o abismo, suspenso por um frágil galho de árvore, veio cair sobre o peitoril. Aí agarrando-se à ombreira saltou dentro do aposento com uma agilidade extraordinária; a luz dando em cheio sobre ele desenhou o seu corpo flexível e as suas formas esbeltas. Era Peri. (O Guarani, de José de Alencar)

Toda essa gente é guerreira e possui tanta astúcia para proteger-se de seus inimigos como se fossem criados na Itália e em contínua guerra. Quando estão em guerra costumam assentar suas casas nas encostas dos morros, fazendo cavernas nestes, que é onde costumam dormir. As mulheres e as crianças são levadas par as partes mais altas, através de estreitas trilhas que abrem. Os homens andam com o corpo totalmente pintado, como forma de camuflagem. (Naufrágios & Comentários, de Álvaro Núñes Cabeza de Vaca)

Certa vez, os índios vinham ao nosso encontro para nos receber, à distância de dez léguas de uma grande vila, com víveres e viandas delicadas e toda espécie de outras demonstrações de carinho. E tendo chegado ao lugar, deram-nos grande quantidade de peixe, de pão e de outras viandas, assim como tudo quanto puderam dar. Mas es incontinenti que o Diabo se apoderara dos espanhóis e que passam a fio de espada, na minha presença e sem causa alguma… (O paraíso destruído, de Frei Bartolomé de Las Casas)

Devíamos tomar cuidados especiais com os Tupinambás duas vezes por ano, quando entravam com violência nas terras dos Tupiniquins. Uma dessas épocas é novembro, quando o milho, que eles chamam de abati, fica maduro, e com o qual preparam uma bebida que chamam de cauim. Para tanto também usam raízes de mandioca, de que empregam um pouco na mistura. (Duas viagens ao Brasil, de Hans Staden)

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Do céu a banda de dentro, / o menininho mostra a Terra, / e de dentro desse céu ele descobre / que a terra dos caxinauás não é grande / e que os rios também não são largos. / Por exemplo, diz ele, apontando para baixo, / aquele rio ali é só uma sucuri gigante / estendida no meio da relva! / E da Terra, quer dizer, do céu da Terra, / quer dizer, do céu aqui onde estou, / os narizes também não são assim tão grandes, / nem o meu corpo tão doente quanto era, / porque do céu da banda de dentro / tudo fica muito bonito, lindo de morrer, / e sabe disso até quem morre, / diz o menino levado ao céu pela andorinha. (O menino levado ao céu pela andorinha – Poemas e cantos indígenas, seleção e tradução de Sérgio Capparelli) 

A índia dos cabelos mais negros que a asa da graúna

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas. (Iracema, José de Alencar)

Iracema, pintada por José Maria de Medeiros

Iracema, pintada por José Maria de Medeiros

Iracema por Antônio Parreiras

Iracema por Antônio Parreiras

Iracema é a índia mais romântica da literatura. É pura poesia. E merece ser lida – não apenas na escola.

Qual estilo de casal é o seu?

Romeu e Julieta – Vocês são lindos, jovens, apaixonados e suas famílias são bem diferente uma da outra. Mais do que isso: os pais de vocês torcem pra times rivais no futebol. Se o seu namoro é assim, ele é estilo Romeu e Julieta. Mas não se preocupe, ele não vai terminar em tragédia. Isso a gente deixa pra história de Shakespeare.

Claire Danes e Leonardo Di Caprio no filme "Romeu + Julieta" (1996)

Peri e Ceci – Um é mais ligado na natureza do que outro, mas ambos adoram tomar banho de cachoeira e fazer trilha por alguma mata virgem (quando conseguem encontrar alguma). Se o seu namoro vai por essa linha, dá pra dizer que ele faz o tipo “Peri e Ceci”, o famoso casal de O Guarani, de José de Alencar.

Ceci e Peri

Jay Gatsby e Daisy – Vocês curtem jazz, têm vários amigos intelectuais e já estão naquela fase que podem se dar ao luxo de jantar em restaurantes caros. Mas deixam pairar certo mistério no ar quando o assunto é casamento. Se o seu namoro é mais pra esse tipo, dá pra dizer que ele tem tudo a ver com os personagens de O grande Gatsby.

Mia Farrow e Robert Redford em "O grande Gatsby" (1974)

Helga e Hagar – Vocês têm um estilo mais viking, curtem aquela coisa de castelos medievais e às vezes brigam demais. Mas se amam loucamente e acabam sempre fazendo os amigos rir. Se o seu namoro é desse jeito, ele está mais pra “Helga e Hagar”, os personagens em quadrinhos de Dik Browne.

Estes bem que podiam ser Helga e Hagar, né?

Tommy e Tuppence – Vocês adoram filme de espionagem, vivem tentando descobrir os segredos um do outro e, enquanto um tem os pés no chão, o outro é pura intuição. Pra completar, ainda trabalham juntos. Seu namoro vai por aí? Então ele é estilo “Tommy e Tuppence”, personagens de detetives criados por Agatha Christie.

Tommy e Tuppence

Til, de José de Alencar é leitura obrigatória

Eram dois, ele e ela, ambos na flor da beleza e da mocidade. O viço da saúde rebentava-lhes no encarnado das faces, mais aveludadas que a açucena-escarlate recém-aberta ali com os orvalhos da noite. No fresco sorriso dos lábios, como nos olhos límpidos e brilhantes, brotava-lhes a seiva d’alma. Ela, pequena, esbelta, ligeira, buliçosa, saltitava sobre a relva, gárrula e cintilante do prazer de pular e correr; saciandose na delícia inefável de se difundir pela criação e sentir-se flor no regaço daquela natureza luxuriante. Ele, alto, ágil, de talhe robusto e bem-conformado, calcando o chão sob o grosseiro soco da bota com a bizarria de um príncipe que pisa as ricas alfombras, seguia de perto a gentil companheira, que folgava pelo campo, a volutear e fazendo-lhe mil negaças, como a borboleta que zomba dos esforços inúteis da criança para a colher.

Assim começa Til, narrativa escrita por José de Alencar em sua maturidade e publicada em 1872 no formato de folhetim diário no jornal A República. Título do vestibular Fuvest 2013, Til acaba de chegar na Coleção L&PM Pocket com introdução do poeta e linguista Guto Leite, especialista, mestre e doutorando em Literatura Brasileira pela UFRGS. Mas Til não é apenas uma leitura obrigatória do vestibular. É uma leitura que não pode faltar na vida dos que apreciam a boa literatura. Uma prosa poética de um dos autores mais importantes e celebrados do Brasil.

Autor de hoje: José de Alencar

Mecejana (CE), Brasil, 1829 – † Rio de Janeiro, Brasil, 1877

Filho de um senador do Império, diplomou-se em Direito em São Paulo. Iniciou sua carreira literária publicando folhetins no Correio Mercantil, do Rio de Janeiro. Trabalhou como advogado, jornalista e político, chegando a deputado e mesmo a Ministro da Justiça. Sua vasta obra teve imediato reconhecimento. Participou também das principais polêmicas de seu tempo, defendendo um programa de literatura nacionalista e romântica. Em sua obra, procurou representar as tradições do Brasil e os costumes nacionais, norteado por um senso estético incomum. Temas como o indianismo, o sertanismo, o regionalismo e a vida urbana em sociedade, presentes em seus romances, convivem com crônicas, textos para o teatro, ensaios críticos e poemas. Seu estilo é apurado e seu texto privilegia a descrição. Nas narrativas e no teatro, sua obra configura a linguagem literária brasileira.

 OBRAS PRINCIPAIS: O guarani, 1857; Lucíola, 1862; Iracema, 1865; O gaúcho, 1870; Senhora, 1875

JOSÉ DE ALENCAR por Myrna Bier Appel

Em 1875, escritor já reconhecido nacionalmente, com cerca de vinte romances publicados, diversas peças teatrais encenadas na corte, artigos publicados pela imprensa, o cearense José Martiniano de Alencar lança o livro Senhora, uma das obras da sua maturidade. Qual é o segredo dessa longevidade? O que pode oferecer ao leitor de hoje o romance Senhora? Aurélia Camargo – órfã, rica, bela, inteligente – é disputada por todos os jovens nos bailes e festas da corte. Cônscia de que sua beleza, aliada à fortuna, constitui um atrativo irresistível aos que lhe fazem a corte, atribui a cada um de seus pretendentes uma cotação, como em um mercado financeiro. Sabedores de sua cotação, os admiradores que a cercam esmeram-se em satisfazer-lhe os menores caprichos. Aurélia diverte-se com o jogo e a todos desdenha. De volta ao seu palacete, em seus aposentos, vai-se despindo de seus adereços e com eles despoja-se da personalidade exibida nos salões. Desfaz o penteado elaborado e aí está a legítima heroína ao gosto romântico: delicada, melancólica, mas decidida e firme. Administra seus pecúlios e sua casa com competência, soluciona problemas e alivia sofrimentos alheios, atenta ao que se passa ao seu redor. Alencar cria tipos humanos e sociais, descreve cenas e costumes da corte: ricos e pobres, escravos e senhores, diplomatas, mercadores, jovens “casadoiras” vigiadas pela família, estudantes à procura de uma noiva com bom dote, meretrizes à caça de um rico protetor. Também o cenário é variado: além do teatro, da ópera, dos bailes da corte, os passeios de fins de semana descrevem praias, arrabaldes com seus folguedos populares e outro padrão de vida. Isso tudo faz parte do plano traçado por Alencar: compor um vasto painel de seu país, com as peculiaridades de raças humanas, regiões, climas, paisagens, tipos sociais, história, política e até mesmo linguagem.

Deixou esquematizada uma gramática do dialeto brasileiro, que em grande parte já empregava em seus escritos, sobretudo nos diálogos de cunho popular, pelos romances e nas peças teatrais, atraindo críticas ferozes dos puristas e conservadores. A todos respondia Alencar, ou pela imprensa, nas famosas polêmicas, ou nos inúmeros prefácios e posfácios de suas obras.

“Seixas era homem honesto; mas ao atrito da secretaria e ao calor das salas, sua honestidade havia tomado essa têmpera flexível de cera que se molda às fantasias da vaidade e aos reclamos da ambição.” Alencar introduz o protagonista com uma frase incisiva, porém não absoluta: ao ponto-e-vírgula seguem palavras que esmaecem a primeira impressão e permitem prever uma personalidade contraditória. Será ela, conjugada a circunstâncias e acontecimentos vários, causa do conflito gerador do interesse da narrativa. Fernando Seixas, órfão de pai, funcionário público modesto, abandona a faculdade, arranja um cargo em uma secretaria, escreve na imprensa e conquista prestígio. Mas os rendimentos eram minguados. Fernando passa a viver então uma vida dupla. Mora numa casa modesta com a mãe e as duas irmãs, trabalha na repartição e no jornal durante o dia. À noite, ao abrirem-se as salas da alta sociedade, da ópera, do teatro, surge Seixas, elegantíssimo, figurino impecável, distinguindo-se entre os homens pela frase polida, pelo galanteio agradável. Alguns anos antes, Fernando cortejara Aurélia, então adolescente e pobre, e um grande amor parecia ligá-los. Com o tempo, ele a pretere em favor do oferecimento de uma noiva acompanhada de um dote tentador. Compromete-se e parte para o Recife a negócios. A vida de Aurélia transforma-se radicalmente: torna-se rica, graças a uma inesperada herança, e passa a brilhar na corte. Seixas volta da viagem em situação que vai se deteriorando progressivamente. O reencontro dos antigos namorados ocorre numa sala de teatro, causando-lhes forte emoção. O amor, mesmo negado e sufocado, ainda ardia vivo. Com o tempo, Aurélia decide virar o jogo. Deseja Seixas como marido e resolve comprá-lo. Sem revelar sua identidade, faz com que um desconhecido tutor ofereça a mais alta “cotação da sua bolsa matrimonial” a Fernando. O jovem aceita o “negócio”, mesmo sem saber quem será sua noiva. O conhecimento só se dará no dia da cerimônia oficial.

Alencar, retratando a vida social e doméstica da época, segue os encontros e desencontros desse casamento de aparências. Com tais antecedentes, poderá o amor sobreviver? Com esse enredo que facilmente poderia descambar para o folhetim melodramático, Alencar estrutura um romance da sociedade do Rio de Janeiro imperial. Examina a psicologia das personagens, evitando o maniqueísmo, prende a atenção do leitor pelas intrigas e artimanhas e confere à linguagem um tratamento literário até então ausente da ficção brasileira.

* Guia de Leitura – 100 autores que você precisa ler é um livro organizado por Léa Masina que faz parte da Coleção L&PM POCKET. A partir de hoje, todo domingo,você conhecerá um desses 100 autores. Pra melhor configurar a proposta de apresentar uma leitura nova de textos clássicos, Léa convidou intelectuais para escreverem uma lauda sobre cada um dos autores.