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Por que não publiquei Glauber

Por Ivan Pinheiro Machado*

No inverno de 1977, bem no começo da editora L&PM, recebemos uma correspondência que não trazia o nome do remetente. Eu tinha 24 anos e, editor principiante, havia mandado cartas pedindo livros para mais ou menos 20 intelectuais brasileiros “de peso”. Passados dois meses, ninguém havia respondido. O carteiro só trazia contas a pagar. Mas recebemos uma, aparentemente o primeiro retorno. Muito curioso, abri o envelope e fui direto à assinatura. Ilegível. Li o texto datilografado em duas páginas de papel A4 e, nas primeiras linhas, identifiquei um dos destinatários da nossa busca por livros novos.

A assinatura era de Glauber Rocha. Ele queria publicar a sua obra e mencionava “vários livros” e especialmente uma história do cinema.

Na carta de junho de 1977, Glauber escrevia: “minha ‘História do Cinema’ tem mil páginas [“¦], é um livro original porque eu revelo entrevistas inéditas com cineastas do mundo todo e conto a História do ponto de vista de um cineasta que viveu por dentro da cozinha. […] Conto a verdadeira história do Cinema Novo, 15 anos de política e cultura. Não existe bibliografia de cinema que preste no Brasil”. E encerrava assim: “Não quero enviar originais pelo Correio. Mandem alguém ou venham aqui”. Através de amigos no Rio consegui o telefone dele. Liguei, ele mesmo atendeu e combinamos uma reunião dois dias depois no Rio.

Saí de Porto Alegre com chuva e frio e cheguei ao Rio sob um sol feérico que brilhava num céu sem nuvens. Deixei minha pequena bagagem no hotel e fui direto ao edifício na Lagoa. Ao sair do elevador, senti um cheiro forte de maconha. Segui o rastro que estava no ar e cheguei ao apê 201, emprestado por um amigo psiquiatra a Glauber Rocha e a sua namorada, uma deslumbrante loura colombiana.

Ao entrar no apartamento com vista para a lagoa Rodrigo de Freitas, Glauber ofereceu-me uma poltrona, uma cerveja e começou um longo, brilhante e exaltado monólogo sobre sua obra como escritor e sobre o potencial cinematográfico que a história do Rio Grande do Sul possuía. Ele sugeria uma filmagem da Guerra dos Farrapos com Marlon Brando no papel do líder da revolução, Bento Gonçalves. “Eu ligo pra ele e faço o convite. Ele me conhece. Vou propor uma participação na bilheteria.” E sugeria ainda que Sônia Braga fosse Anita Garibaldi. “Ela nasceu para ser a Anita”, disse. Por fim, mostrou-me dois calhamaços datilografados com cerca de 500 páginas cada um.

O primeiro era uma coletânea de “ensaios e observações filosóficas”, e o segundo era um “romance épico” que se chamaria “Django”, baseado na vida de João Goulart, o Jango. “Depois eu mostro a História do Cinema.” Eu observava perplexo aquela explosão verborrágica. Ele tinha uma fluência impressionante. Falava sobre o momento de abrandamento da ditadura, da genialidade de Golbery do Couto e Silva, o chefe do Gabinete Civil, que seria o “grande artífice do desmonte do regime”, era “o gênio da raça”, expressão que ele repetia sempre quando se referia ao Golbery e que acabou ficando célebre.

Depois de quatro horas ouvindo discursos, fui embora. Combinamos que eu retornaria no outro dia. Foi o que fiz. Lá chegando, tudo aconteceu como no dia anterior; mais uma sessão de discursos brilhantes. Ele falava, falava e, de tempos em tempos, fazia uma longa pausa arfando, exausto. Descansava um pouco e voltava a falar, falar.

A conversa (monólogo) acabou no começo da noite porque sua mulher lembrou que os dois tinham uma exibição especial de “Dona Flor e seus Dois Maridos”, o filme de Bruno Barreto. Combinei de voltar no dia seguinte para acertar os detalhes do contrato e pegar os originais dos livros. Foi o que fiz.

Cheguei às 15h e toquei a campainha. A loura atendeu a porta e, sem me convidar para entrar, disse constrangida: “o Glauber não pode atender, mas manda dizer que desistiu de publicar os seus livros”. E encerrou o assunto, fechando a porta na minha cara.

Fiquei ali parado por uns dois minutos tentando absorver aquele desfecho surreal. À noite voltei para Porto Alegre. Sem livro nenhum, mas pelo menos com esta curiosa história para contar.

Para ler toda a carta clique aqui

* Ivan Pinheiro Machado é editor da L&PM. Este texto foi publicado originalmente na coluna “Arquivo Aberto” do Caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo em 13 de janeiro de 2012.

6. O dia em que quase publicamos o livro de Glauber Rocha

Por Ivan Pinheiro Machado*

Certa vez, no inverno de 1977, bem no começo da L&PM, nós recebemos uma carta estranha. O remetente assinava G. Rocha. O endereço era Rua Borges de Medeiros, numero tal, Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro. Abri a carta. Naquela época, meros iniciantes, não era comum recebermos cartas. Era um texto denso, datilografado em duas páginas de papel ofício, espaço um. A assinatura era de Glauber Rocha, o autor de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Terra em transe”, “Dragão da maldade contra o santo guerreiro” entre outros clássicos do cinema “brazyleyro” – como ele gostava de escrever – e mundial. Glauber queria publicar a sua obra. Ele mencionava “vários livros”, e especialmente uma “História do Cinema”. Segundo ele escrevia na carta de junho de 1977:“minha História do Cinema” tem 1.000 páginas (…), é um livro original porque eu revelo entrevistas inéditas com cineastas do mundo todo e conto a História do ponto de vista de um cineasta que viveu por dentro da cozinha. O livro trata do cinema em todos os lugares, do início do século até hoje. Conto a verdadeira história do Cinema Novo, quinze anos de política e cultura. Não existe bibliografia de cinema que preste no Brasil”. Ele prosseguia propondo um acordo editorial prevendo adiantamento e uma percentagem de 10% sobre o preço de capa, assegurando a ele os direitos para o exterior. E encerrava assim: “Não quero enviar originais pelo Correio. Mandem alguém aqui, ou venham aqui. (…) As editoras tem que financiar os autores… Acontece que temos poucos autores modernos depois que morreram Erico Veríssimo, Guimarães Rosa… Jorge Amado é o último romancista popular… No entanto, nossa literatura é uma criança, como nossa sociedade…” . Ele indicava um telefone. Liguei e atendeu uma voz feminina com um sotaque castelhano. Identifiquei-me, combinamos dia e hora para uma reunião e fui para o Rio. Por coincidência, viajei com um amigo meu, o Nilo Lopumo, que acabou sendo testemunha do périplo de três visitas que cumprimos juntos a um apartamento em um edifício de luxo na Lagoa Rodrigo de Freitas.

O clímax e o anticlimax – Ao sair do elevador, sentia-se um cheiro acre de “canabis” por todo o andar. Indo atrás do cheiro, chegava-se ao apartamento 501, emprestado por um amigo psiquiatra a Glauber Rocha e sua namorada, uma deslumbrante loura colombiana. Quando entramos no belíssimo apê com vista para a Lagoa, o grande Glauber começou um longo, brilhante e exaltado monólogo sobre sua obra como escritor e o potencial cinematográfico que a história do Rio Grande do Sul possuía. Ele sugeria uma filmagem da Guerra dos Farrapos, com Marlon Brando no papel de Bento Gonçalves. “Eu ligo pra ele e faço o convite. Ele me conhece. Este tipo de astro topa trabalhar num filme por uma participação na bilheteria”. E sugeria que Anita Garibaldi fosse a Sandra Braga que, segundo ele, era perfeita para o papel, “ela nasceu para ser a Anita Garibaldi”. Por fim, nos mostrou dois calhamaços datilografados com mais ou menos 500 páginas cada um. O primeiro era uma coletânea de “ensaios e observações filosóficas” e o segundo calhamaço era um “romance épico” que se chamaria “Django”, baseado na vida de Jango Goulart, o presidente deposto pelo golpe de 1964. “Depois eu mostro a História do Cinema”. Eu e o Nilo, vindos lá do extremo do Brasil, observávamos perplexos aquela explosão verborrágica. Ele tinha uma fluência impressionante. Falava sobre o momento de abrandamento da ditadura, da genialidade de Golbery do Couto e Silva, o Ministro da Casa Civil, que seria o “grande artífice do desmonte do regime”, era “o Gênio da raça”, frase que ele repetia sempre quando se referia ao Golbery e que já ficou célebre. Depois de quatro horas de discursos, fomos embora. Combinamos voltar no outro dia para resolver os detalhes, pois ele me entregaria os originais de “Django”, dos ensaios & filosofia que eu não consigo lembrar o título e da tal “História do Cinema” de 1.000 páginas. Voltamos conforme o combinado. Foi mais uma sessão de discursos brilhantes. Não vimos mais original nenhum, ele só falava, falava e, de tempos em tempos, fazia uma longa pausa arfando, exausto. Descansava um pouco e voltava a falar, falar. A conversa acabou no começo da noite porque sua mulher lembrou que eles tinham que prestigiar a pré-estréia de “Dona Flor e seus dois maridos”, o romance de Jorge Amado, filmado por Bruno Barreto. Ficamos de voltar no outro dia às 15 horas para pegar o material. Conforme o combinado, cheguei às 15 horas ao apê da Lagoa. Apertei a campainha. A loura atendeu a porta e sem me convidar para entrar disse constrangida: “o Glauber não pode atender, mas manda dizer que desistiu de publicar os seus livros…”. E encerrou o assunto, fechando a porta. Eu fiquei ali parado por uns dois minutos tentando absorver aquele desfecho surreal. À noite voltamos para Porto Alegre. Sem livro nenhum, mas com esta incrível história para contar…

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