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Inédito: leia trecho da única crítica que Van Gogh recebeu em vida

Em janeiro de 1890, o primeiro número da legendária revista Mercure de France, trazia um texto intitulado Os isolados. Escrito pelo poeta e crítico de arte Gabriel-Albert Aurier, foi o primeiro – e único – texto crítico sobre Van Gogh, publicado em vida do artista.

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Sob céus ora talhados no ofuscamento das safiras ou das turquesas, ora feitos de não sei que súlfures infernais, quentes, deletérios e cegantes; sob céus como moldes de metais e cristais em fusão, onde, por vezes, propagam-se, difusos, tórridos discos solares; sob a incessante e formidável correnteza de todas as luzes possíveis, em atmosferas pesadas, flamejantes, abrasadoras, que parecem exalar de fantásticas fornalhas onde se volatilizariam ouros, diamantes e gemas singulares – este é o mostruário inquietante, perturbador, de uma estranha natureza, verdadeiramente real e ao mesmo tempo quase sobrenatural, de uma natureza excessiva onde tudo, seres e coisas, sombras e luzes, formas e cores, se empinam, se erguem numa vontade raivosa de gritar sua essencial e própria canção, com o timbre mais intenso, o mais ferozmente superagudo; são árvores, retorcidas como gigantes em batalha, proclamando com o gesto de seus braços nodosos que ameaçam e com o trágico esvoaçar de suas verdes cabeleiras, sua força indomável, o orgulho de sua musculatura, sua seiva quente como sangue, seu eterno desafio ao furacão, ao relâmpago, à natureza nociva; são ciprestes erguendo suas pesadelares silhuetas de labaredas, que seriam negras; montanhas arqueando dorsos de mamutes ou de rinocerontes; pomares brancos, rosados e amarelados, como ideais sonhos de virgens; casas acocoradas, que se contorcem apaixonadamente como indivíduos que gozam, sofrem, pensam; pedras, terrenos, arbustos, gramados, jardins, rios que parecem esculpidos na forma de minerais desconhecidos, polidos, reluzentes, irisados, feéricos; são flamejantes paisagens que parecem a ebulição de multicoloridos vernizes em algum diabólico cadinho de alquimista, folhagens que parecem bronze antigo, cobre novo, vidro filetado; canteiros de flores que parecem menos flores do que riquíssimas joalherias de rubis, ágatas, ônix, esmeraldas, coríndons, crisoberilos, ametistas e calcedônias; é a universal, louca e ofuscante fulguração das coisas; é a matéria, a natureza inteira retorcida freneticamente, paroxizada, levada ao auge da exacerbação; é a forma que se torna pesadelo, a cor que se torna labareda, lava e pedraria, a luz que se faz incêndio, a vida, febre ardente.

Tal é a impressão, nada exagerada, ainda que assim se possa pensar, deixada na retina pelo primeiro olhar sobre as obras estranhas, intensas e febris de Vincent Van Gogh, compatriota e não indigno descendentes dos velhos mestres holandeses.

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Trecho de Os isolados, tradução de Julia da Rosa Simões

Este texto nunca foi traduzido e publicado no Brasil na íntegra, mas ele será acrescentado à próxima edição de Cartas a Theo e outros documentos sobre a vida de Van Gogh.

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Ao que tudo indica, foi somente cinco meses depois da publicação do artigo de Aurier, e da resposta quase imediata do pintor por carta, em fevereiro, transmitida por Theo, que ele e Van Gogh conheceram, na casa deste, no domingo, 6 de julho, na presença de Émile Bernard e Toulouse-Lautrec. Depois da morte de Vincent, Théo convidou Aurier a escrever o catálogo das obras do pintor e um livro sobre ele. Mas o projeto não se concretizou.

Após sua morte, em 5 de outubro de 1892, vítima de uma febre tifóide,  Paul Gauguin escreveu a Daniel de Monfreid: “O pobre Aurier está morto. Decididamente, não estamos com sorte. Van Gogh, depois Aurier, o único crítico que nos compreendia e que um dia nos teria sido útil”.

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