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Ruy Castro diz que só deixará de admirar Woody Allen quando sua culpa for provada

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Crônica de Ruy Castro publicada originalmente no jornal Folha de S. Paulo em 24 de maio de 2019

Quando Woody Allen tiver sua culpa provada, deixarei de admirá-lo. Mas só então

Em off, na abertura de seu filme “Manhattan”, de 1979, em cima de uma fabulosa tomada noturna de Nova York e logo antes da “Rhapsody in Blue”, de George Gershwin, inundar a trilha sonora, ouve-se a voz de Woody Allen: “Nova York era sua cidade. E sempre seria”.

Será? Não mais. Nova York traiu o amor que Woody Allen lhe dedicou em dezenas de filmes, entrevistas, reflexões e frases apaixonadas durante 50 anos como diretor, roteirista, ator, músico e seu principal símbolo. Manhattan virou-lhe as costas. Quatro grandes editoras americanas, baseadas lá, recusaram ou ignoraram sua oferta de um livro de memórias. A Amazon engavetou seu último filme, “A Rainy Day in New York”, e prefere ser processada a produzir os outros que já tinha sob contrato. E não sei se, mesmo sob o chapéu desabado e os óculos escuros, ele pode continuar andando pelas ruas da cidade, como sempre fez. Não são mais suas ruas.

Gosto de Woody Allen desde seu primeiro filme como ator, “O Que é Que Há, Gatinha”, de 1966. Quando ele estreou como diretor, com “Um Assaltante Bem Trapalhão”, em 1970, eu já lia suas crônicas de humor em revistas como Playboy e The New Yorker. Crônicas que, depois, ele compilaria em livros que, em fins dos anos 70, eu traduziria para a editora L&PM: “Cuca Fundida”, “Sem Plumas” e “Que Loucura!”. E assisti a rigorosamente todos os seus filmes. Ele fez com que nos sentíssemos adultos, inteligentes e sofisticados.

Woody Allen está sendo linchado. Por causa de uma acusação, da qual —note bem— ele já foi legalmente inocentado, sua carreira e sua vida acabaram. Tornou-se alguém de quem não se deve chegar perto. Mas eu gostaria de ler seu livro de memórias. Gostaria também de ver seu filme engavetado e os que ele viesse a fazer. Gostaria de apertar-lhe a mão se o encontrasse na rua.

Quando sua culpa for provada, deixarei de admirá-lo. Mas só então.
Ruy Castro – Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

 

Walden, o jogo

Em julho de 1845, desgostoso com o crescente comercialismo e industrialismo da sociedade americana, Henry David Thoreau deixou Concord, Massachusetts, sua cidade natal, para instalar-se à beira do Lago Walden. Essa experiência deu origem ao seu livro mais famoso. Publicado primeiramente em 1854 com o título Walden ou A vida nos bosques, é o relato de dois anos, dois meses e dois dias em que o autor viveu apartado da sociedade dos homens, suprindo as próprias necessidades, estudando, contemplando a natureza e conhecendo-se a si mesmo.

Pois eis que agora a obra mais famosa de Thoreau virou um game. Calma, nada a ver com aqueles jogos eletrônicos em que você tem que correr, pular, caçar e essas coisas enervantes que alguns. Como escreveu o colunista da Folha de S. Paulo, João Pereira Coutinho, em uma matéria publicada no Caderno Ilustrada da Folha, “Um jogo é competitivo, Walden é contemplativo. Thoreau iria gostar.”

Coutinho contou que baixou o jogo com o pé atrás, mas foi surpreendido:

“Quando soube da bizarria, ri alto: como transformar as meditações solitárias de Thoreau em videogame? (…) A desconfiança foi recuando quando soube que o jogo era patrocinado pela National Endowment for the Humanities, instituição que tudo tem feito para ressuscitar, com a dignidade inerente, a obra completa do autor. Comprei o jogo e iniciei a experiência” porque somos convidados a ser Thoreau, a ver o mundo pelos seus olhos, a tocar nos objetos com as suas mãos. (…) Então aceitei ser Thoreau. Caminhei pelo bosque. Fui recolhendo objetos, contemplando as árvores e reconhecendo a cabana incompleta que esperava por mim.”

WALDEN, A GAME custa U$ 18,45 (R$ 58). O download pode ser feito em www.waldengame.com e ele roda em PC e Macintosh.

Para sentir este clima, que tal dar uma olhada no trailer:

A L&PM publica Walden com apresentação de Eduardo Bueno e tradução de Denise Bottmann.

Passeie pela Montevidéu de Eduardo Galeano

A capital do Uruguai tem espírito cultural pulsante. E um de seus mais célebres cidadãos deixou sua marca pela cidade. A forte relação de Galeano com sua Montevidéu natal foi retratada em suas obras, textos jornalísticos e na rotina pessoal

As pessoas mais próximas contam que, mesmo em seus últimos anos de vida, ele saía de sua casa em Pocitos para ver a cidade onde as pessoas “amam sem dizer e abraçam sem tocar”.

A seguir, alguns dos lugares preferidos de Galeano em Montevidéu:

CAFÉ BRASILERO

Essa Cafeteria de Montevidéu abriu suas portas em 1877. De tão habitué deste café, Galeano acabou intimamente ligado ao lugar. “Sou filho dos cafés de Montevidéu. Neles aprendi tudo que sei, forma minha única universidade”, dizia.

Todas as manhãs, o escritor ocupava, no Brasilero, uma mesa entre a parede de madeira e a janela envidraçada e ali lia o seu jornal. A leitura era acompanhada por uma taça de vinho, um cortado ou um café especial que é batizado com seu nome (Café + Licor Amaretto + Creme + Doce de leite).

Atualmente, as paredes do café ainda mantêm fotos de Galeano e os garçons, o gerente e o dono do café lembram saudosos da convivência que tinham com o escritor.

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Onde: Calle Ituzaingó, 1447, Ciudad Vieja. www.cafebrasilero.com.uy

LIVRARIA LINARDI Y RISSO

Galeano frequentava esta livraria desde 1960, quando então o lugar ocupava um casarão do outro lado da rua onde está hoje. Especializada em livros antigos e sobre a América Latina, a livraria Linardi y Risso teve papel importante na formação intelectual de Galeano e de outros escritores latinos: por décadas, promoveu em seu café grupos de discussão que reuniam a nata intelectual do continente. Além de Galeano, a livraria recebia Pablo Neruda, Mario Vargas Llosa, Haroldo de Campos, Mario Benedetti e Julio Maria Sanguinetti, entre outros.

Os debates já não acontecem, mas o acervo de 50 mil livros segue em exposição. Nos últimos anos de vida, Galeano encomendava livros raros e ia lá só para buscá-los. A maior parte deles era sobre futebol, mas também obras sobre a história política e social da América Latina.

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Onde: Calle Juan Carlos Gómez, 1435, Ciudad Vieja. www.linardiyrisso.com

ESTÁDIO CENTENÁRIO

“Todos os uruguaios nascem gritando gol. Eu quis ser jogador de futebol, como todos os garotos”. Galeano era realmente apaixonado por futebol e seu time do coração era o Nacional.

O estádio Centenário era adorado pelo escritor, pois foi lá que seu time se tornou campeão da Taça Libertadores três vezes e onde o Uruguai venceu sua primeira Copa do Mundo, em 1930.

“O estádio Centenário suspira de nostalgia pelas glórias do futebol uruguaio”, escreveu ele no livro Futebol ao Sol e a Sombra.

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Onde: Avenida Dr. Américo Ricaldoni, Parque Batlle. www.estadiocentenario.com.uy

RAMBLA

Galeano fez das caminhadas pela rambla de Montevidéu (o calçadão que margeia a costa da capital, alinhado ao mar e ao rio da Prata), uma espécie de compromisso diário.

“Vou caminhando pela costa da cidade onde nasci. Ando nela e ela anda em mim. E, enquanto vou, as palavras caminham dentro de mim e vão formando histórias.”, disse ele certa vez em uma entrevista.

A trajetória de Galeano incluía paradas na Plaza Independência e os arredores do Mercado do Porto e de outras construções de Montevidéu, como o teatro Solís.

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Onde: Rambla Francia, Ciudad Vieja

Via Folha de S. Paulo – Caderno Turismo

A L&PM Editores publica todos os livros de Eduardo Galeano no Brasil.

“Sinto-me sufocado de tanto carinho”, diz Eduardo Galeano em Brasília

Por Lúcio Flávio (publicado originalmente no caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo em 12 de abril)

O escritor uruguaio Eduardo Galeano iniciou nesta sexta (11) a programação da 2ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura, em Brasília. Um dos homenageados do evento – ao lado do escritor e dramaturgo Ariano Suassuna -, o autor de obras marcantes como “As Veias Abertas da América Latina” (1971) e a trilogia “Memória do Fogo“, escrita entre os anos 1982 e 1986, se surpreendeu com o tamanho do afeto do povo brasileiro. “Sinto-me sufocado de tanto carinho”, afirmou.

A força do prestígio do escritor uruguaio pôde ser conferida nas filas enormes e no princípio de bagunça durante sua chegada ao auditório do Museu Nacional da República Honestino Guimarães, na noite desta sexta (11), onde participou de palestra. Ovacionado de pé pelas centenas de pessoas que lotaram o espaço, Eduardo Galeano brindou os presentes com histórias trágicas e tragicômicas de personagens, lendas, paisagens, acontecimentos históricos e políticos da América Latina e do mundo.

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Como muito senso de humor, o escritor fez o público rir e refletir com textos divertidos e críticos sobre luta pela liberdade, racismo, identidade, futebol e comportamento.

“São textos dramáticos, que podem fazer algumas pessoas sensíveis chorarem”, ironizou elegantemente.

COLETIVA DISPUTADA

Horas antes, durante uma coletiva descontraída realizada com a imprensa no hotel onde estava hospedado, o escritor falou abertamente sobre as manifestações realizadas nas ruas do país, o corporativismo no futebol e as expectativas da Copa do Mundo no Brasil.

“Não acredito nos profetas bíblicos, muito menos nos profetas esportistas. O melhor a fazer é esperar e calar a boca”, disse Galeano, que participa neste domingo (13), às 16h, do debate “Futebol e Ditaduras na América Latina”.

Sobre o livro (“As Veias Abertas da América Latina“) que o tornou referência no mundo todo para artistas, políticos, revolucionários e utópicos, confessou não ter mais nenhuma ligação afetiva.

“Depois de tantos anos, não me sinto mais ligado a ele”, admitiu o escritor. “O tempo passou e descobri outras maneiras de me aprofundar na realidade. É uma etapa superada. Se fosse reler o livro hoje cairia desmaiado, não aguentaria”, brincou.

Foi cauteloso ao responder a uma pergunta da Folha sobre a possível derrota da esquerda no continente. “É uma afirmação arriscada. A esquerda foi demolida muitas vezes por ter dado certo”, observou.

“Foi castigada pelas ditaduras, pelos sacrifícios humanos e pelas barbaridades cometidas em nome da paz, do progresso e da democracia. Por períodos, a esquerda também cometeu erros gravíssimos. A realidade tem o poder da surpresa. Até porque dá respostas a perguntas não formuladas”, refletiu Galeano, que teceu elogios ao amigo e presidente do Uruguai, José Mujica, o chamando de um homem de “grande sensibilidade”.

“A vida sexual da mulher feia”: do livro para o palco

Leia abaixo a matéria publicada no Caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo de quinta-feira, 23 de janeiro, que mostra diferenças entre o livro de Claudia Tajes e a peça estrelada por Otávio Müller:

Peça adapta livro sobre mulher que se acha feia

Por Gustavo Fioratti – de São Paulo   

“Calma! Respira, amor! Respira”, diz Mariomar.

“Se você falar ‘respira’ mais uma vez, vou te enforcar com a minha placenta!”, responde Diocleide.

A cena retrata o nascimento de Maricleide, a sofrida protagonista de “A Vida Sexual da Mulher Feia“, adaptação teatral para livro de Claudia Tajes que cumpre temporada no Teatro Folha, com Otávio Müller, travestido, no papel central.

Com diálogos que resgatam o escrache do besteirol, a peça investe em piadas que roçam preconceitos relacionados a padrões estéticos diversos. Faz rir de problemas de pele, do cabelo crespo, de seios pequenos etc.

Maricleide é desprovida de beleza desde bebê, vira assunto no bairro e na escola é vítima de bullying: “Você viu o cabelo da Maricleide? É mais grosso que o do sovaco do meu pai. Ela podia ser garota-propaganda da Assolan!”, uma colega comenta.

Em sua adaptação, a peça acentua o que há de cômico no livro de Tajes, incluindo gags criadas por Müller. “O livro é cômico, mas tem passagens mais melancólicas, com reflexões de uma mulher que não se sente vista”, diz Julia Spadaccini, que assina a adaptação. “A peça puxa para a comédia”, completa.

A opção pelo escracho resulta, por exemplo, na troca de nome da protagonista. No livro de Tajes (L&PM, 114 pág., R$ 16,90), a personagem se chama Ju.

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O livro de Claudia Tajes que inspirou a peça de mesmo nome.

“Sabíamos que era um assunto delicado, então achamos que mostrar a personagem falando sobre a própria feiura, em primeira pessoa, dava uma relativizada no assunto”, explica. “Mas para ser engraçado não dá para ter muito pudor também.”

No original publicado em 2005, Tajes, ao contrário da peça, não esmiúça a descrição física da protagonista.

Mais uma diferença, segundo Spadaccini: o livro não é linear cronologicamente, apresenta situações soltas.

O espetáculo opta por mostrar a trajetória completa da personagem, desde seu nascimento até o momento em que ela, já adulta, aceita a própria feiura, “e passa a enxergar em si mesma outras qualidades”.

A VIDA SEXUAL DA MULHER FEIA
QUANDO sex., às 21h30, sáb., às 20h e 22h, dom., às 19h30
ONDE Teatro Folha (shopping Pátio Higienópolis, av. Higienópolis, 618; tel.: (11) 3823-2323)
QUANTO de R$ 50 a R$ 70
CLASSIFICAÇÃO 14 anos

 

“O idiota da família” entre os principais destaques do ano

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O primeiro volume de “O idiota da família”

O Caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo de sábado, 5 de janeiro, apontou os principais destaques literários do início de 2014. No topo da lista está o primeiro volume de “O idiota da família”, a biografia de 3.000 páginas de Flaubert (autor de Madame Bovary) escrita por Jean Paul Sartre e até agora inédita em português. O volume 1, com tradução de Júlia da Rosa Simões, chega às livrarias nas próximas semanas. Obra definitiva de Sartre, “O idiota da família” é fundamental para quem quer mergulhar no pensamento e nas ideias do grande mestre da filosofia contemporânea.

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Texto atribuído a Mário Quintana vira mantra de casamentos moderninhos

Folha de S. Paulo – 03/03/2013 – Por Roberto de Oliveira

“Promete que fará sexo sem pudores, que fará filhos por amor e por vontade, e não porque é o que esperam de você…” Esse trecho do texto “Promessas Matrimoniais” vem causando burburinho e suspiros em casamentos.

É claro que nada disso acontece sob a tutela da igreja. Tratado como um poema, “Promessas” tornou-se uma espécie de mantra moderninho em oposição aos clássicos sermões dos padres. Caiu nas graças daquela turma que não é chegada às celebrações tradicionais, geralmente casais jovens, de perfil, digamos, “descolado”. Nesses eventos, assim como em redes sociais, sites e blogs sobre casamentos, “Promessas Matrimoniais” costuma ser atribuído ao poeta Mario Quintana (1906-1994), mas não é dele.

Foi criado em maio de 1998 pela escritora e colunista gaúcha Martha Medeiros, 52. O texto faz parte do livro de crônicas “Montanha-Russa“.

O casamento de Juliana Paes com o empresário Carlos Eduardo Baptista, no Rio, em setembro de 2008, ajudou a “bombar” “Promessas Matrimoniais” na web.

Só que a autoria estava equivocada.  Erro dos sites de celebridades, de quem realizou o casamento ou dos pombinhos?  Pastor queridinho dos famosos, Luiz Longuini, que celebrou a união da atriz, conta que sempre soube que o texto “era do Mario Quintana”.

Ele diz que Juliana Paes não sabia quem era o autor. “Depois do casamento descobri, pelo sucesso na mídia, que é da Martha Medeiros.” Hoje, Juliana Paes jura que sempre soube que o texto era de Martha. “Gosto desse texto faz muitos anos. Muito antes de pensar em me casar.”

Para a fotógrafa carioca Fabricia Soares, 36, o poema é “lindo”. “Há uma grande discussão na internet sobre a autoria. Uns dizem que é do Quintana, outros dizem que é da Martha Medeiros”, diz. Durante a cerimônia de sua união com o fotógrafo Alexandre Marques, 42, a juíza bolou um texto que emocionou a todos, um “pot-pourri” de trechos que falavam dos noivos, suas manias e amores, e, de quebra, enxertava partes de “Promessas”.

O ambiente era a tradicional confeitaria Colombo, no centro do Rio, em uma área reservada para um almoço com 12 convidados, entre amigos e parentes. Fabricia não conhecia o texto, tampouco o autor. A juíza de paz Lilah Wildhagen, 56, não incluiu no discurso a parte que trata de sexo. “Evito porque o Conselho de Ética pode vir em cima da gente”, justifica. “Apesar de o sexo ser inerente ao casamento, não é mesmo?” Às vésperas de celebrar 2.000 casamentos, Lilah conta que sempre usa trechos do texto nas cerimônias. “É uma forma de personalizar.”

A juíza pinça partes do texto com base em respostas de um questionário com 32 perguntas aplicado aos noivos antes da cerimônia. A autoria? Ela ignora. “É de um autor desconhecido. Na internet, dizem que é de Mario Quintana. Não é. Nem dele, nem da Martha Medeiros, nem de Carlos Drummond de Andrade. Apesar de a Martha ser genial”, diz ela.

Assim começa "Promessas Matrimoniais", de Martha Medeiros

Assim começa “Promessas Matrimoniais”, de Martha Medeiros

EFEITO COLATERAL

Segundo a professora Lucia Rebello, do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em toda a obra de Quintana “não existe nada sobre casamento, promessas matrimoniais e sermões”. “Mesmo o estilo do texto não tem nada a ver com a poesia de Quintana.”

Martha, a verdadeira autora, lembra que talvez a ideia de escrever a crônica tenha surgido quando ela foi a um casamento de uma amiga. Antes de entrar com os tópicos iniciados com a palavra “promete”, ela faz uma introdução na qual explica que “achava bonito o ritual do casamento na igreja, com seus vestidos brancos e tapetes vermelhos”, mas que o sermão do padre lhe desagradava.

“Promete ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando-lhe e respeitando-lhe até que a morte os separe? [sic]’ Acho simplista e um pouco fora da realidade. Dou aqui novas sugestões de sermões.”

Segundo a escritora, há uma série de textos creditados a ela incorretamente e textos seus atribuídos a outras pessoas. “É uma chatice com a qual a gente tem que aprender a conviver”, diz. Martha considera “impressionante” o volume de créditos errados veiculados na internet. Cita nomes como Carlos Drummond de Andrade, Caio Fernando Abreu e Clarice Lispector, que também costumam ser “vítimas” desse “troca-troca autoral”. “Confesso que não gosto, mas não dá para fazer disso uma cruzada. É um efeito colateral da internet”, diz ela.

A escritora avisa que não gostaria de parecer “antipática”, mas que preferiria ser lida só em seus livros e nos jornais. “Além de autoria trocada, colocam enxertos, dão outros finais às histórias, criam finais melosos.”

Seja do poeta, seja da cronista, o que importa para esses casais é tentar cumprir as promessas. E ser feliz!

 

Por que não publiquei Glauber

Por Ivan Pinheiro Machado*

No inverno de 1977, bem no começo da editora L&PM, recebemos uma correspondência que não trazia o nome do remetente. Eu tinha 24 anos e, editor principiante, havia mandado cartas pedindo livros para mais ou menos 20 intelectuais brasileiros “de peso”. Passados dois meses, ninguém havia respondido. O carteiro só trazia contas a pagar. Mas recebemos uma, aparentemente o primeiro retorno. Muito curioso, abri o envelope e fui direto à assinatura. Ilegível. Li o texto datilografado em duas páginas de papel A4 e, nas primeiras linhas, identifiquei um dos destinatários da nossa busca por livros novos.

A assinatura era de Glauber Rocha. Ele queria publicar a sua obra e mencionava “vários livros” e especialmente uma história do cinema.

Na carta de junho de 1977, Glauber escrevia: “minha ‘História do Cinema’ tem mil páginas [“¦], é um livro original porque eu revelo entrevistas inéditas com cineastas do mundo todo e conto a História do ponto de vista de um cineasta que viveu por dentro da cozinha. […] Conto a verdadeira história do Cinema Novo, 15 anos de política e cultura. Não existe bibliografia de cinema que preste no Brasil”. E encerrava assim: “Não quero enviar originais pelo Correio. Mandem alguém ou venham aqui”. Através de amigos no Rio consegui o telefone dele. Liguei, ele mesmo atendeu e combinamos uma reunião dois dias depois no Rio.

Saí de Porto Alegre com chuva e frio e cheguei ao Rio sob um sol feérico que brilhava num céu sem nuvens. Deixei minha pequena bagagem no hotel e fui direto ao edifício na Lagoa. Ao sair do elevador, senti um cheiro forte de maconha. Segui o rastro que estava no ar e cheguei ao apê 201, emprestado por um amigo psiquiatra a Glauber Rocha e a sua namorada, uma deslumbrante loura colombiana.

Ao entrar no apartamento com vista para a lagoa Rodrigo de Freitas, Glauber ofereceu-me uma poltrona, uma cerveja e começou um longo, brilhante e exaltado monólogo sobre sua obra como escritor e sobre o potencial cinematográfico que a história do Rio Grande do Sul possuía. Ele sugeria uma filmagem da Guerra dos Farrapos com Marlon Brando no papel do líder da revolução, Bento Gonçalves. “Eu ligo pra ele e faço o convite. Ele me conhece. Vou propor uma participação na bilheteria.” E sugeria ainda que Sônia Braga fosse Anita Garibaldi. “Ela nasceu para ser a Anita”, disse. Por fim, mostrou-me dois calhamaços datilografados com cerca de 500 páginas cada um.

O primeiro era uma coletânea de “ensaios e observações filosóficas”, e o segundo era um “romance épico” que se chamaria “Django”, baseado na vida de João Goulart, o Jango. “Depois eu mostro a História do Cinema.” Eu observava perplexo aquela explosão verborrágica. Ele tinha uma fluência impressionante. Falava sobre o momento de abrandamento da ditadura, da genialidade de Golbery do Couto e Silva, o chefe do Gabinete Civil, que seria o “grande artífice do desmonte do regime”, era “o gênio da raça”, expressão que ele repetia sempre quando se referia ao Golbery e que acabou ficando célebre.

Depois de quatro horas ouvindo discursos, fui embora. Combinamos que eu retornaria no outro dia. Foi o que fiz. Lá chegando, tudo aconteceu como no dia anterior; mais uma sessão de discursos brilhantes. Ele falava, falava e, de tempos em tempos, fazia uma longa pausa arfando, exausto. Descansava um pouco e voltava a falar, falar.

A conversa (monólogo) acabou no começo da noite porque sua mulher lembrou que os dois tinham uma exibição especial de “Dona Flor e seus Dois Maridos”, o filme de Bruno Barreto. Combinei de voltar no dia seguinte para acertar os detalhes do contrato e pegar os originais dos livros. Foi o que fiz.

Cheguei às 15h e toquei a campainha. A loura atendeu a porta e, sem me convidar para entrar, disse constrangida: “o Glauber não pode atender, mas manda dizer que desistiu de publicar os seus livros”. E encerrou o assunto, fechando a porta na minha cara.

Fiquei ali parado por uns dois minutos tentando absorver aquele desfecho surreal. À noite voltei para Porto Alegre. Sem livro nenhum, mas pelo menos com esta curiosa história para contar.

Para ler toda a carta clique aqui

* Ivan Pinheiro Machado é editor da L&PM. Este texto foi publicado originalmente na coluna “Arquivo Aberto” do Caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo em 13 de janeiro de 2012.

Em entrevista à Folha, Ferlinghetti fala de “Amor nos tempos de fúria”

A capa do Caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo de sábado, 17 de novembro, é estampada com uma grande foto de Lawrence Ferlinghetti, escritor que fundou a livraria e editora City Lights de São Francisco (EUA), célebre por lançar os expoentes da geração beat. Em uma bela matéria, o jornalista Cassiano Elek Machado conta porque Ferlinghetti continua sendo, aos 93 anos, um dos grandes nomes da contracultura. Na entrevista exclusiva, Ferlinghetti fala da sua vida e obra, com especial destaque para o livro Amor nos tempos de fúria, romance inédito no Brasil que a L&PM lança em dezembro. 

QUANTO MAIS RADICAL MELHOR

“Precisamos lutar pelo futuro”, diz o poeta da contracultura Lawrence Ferlinghetti

Por Cassiano Elek Machado
De São Paulo

Lawrence Ferlinghetti era capitão de fragata na Segunda Guerra Mundial. Recorda-se bem do vento gelado que sacudia seu barco quando, com um quepe duas vezes maior do que sua cabeça, cruzou o Canal da Mancha em 6 de junho de 1944, o Dia D.

Ferlinghetti chegou de trem a Nagasaki, seis semanas depois do estouro do grande cogumelo atômico. Encontrou lá um interminável campo de palha que parecia ter sido queimado por maçaricos gigantes.

Ferlinghetti esteve preso na cadeia municipal de São Francisco em 1957, quando sua recém-fundada editora, City Lights Books, publicou o “subversivo” volume de poesia “Uivo”, de Allen Ginsberg, dando ignição para a Geração Beat. Ele esteve com Fidel Castro em Havana, em 1959; em Paris em 1968; em Woodstock em 1969; com os sandinistas na Nicarágua e com os zapatistas no México.

Lawrence Ferlinghetti está ao telefone em sua casa, em San Francisco (EUA), e não quer falar do passado. “Precisamos lutar pelo futuro. Ou respiramos e agimos agora ou acabaremos com tudo.”

Aos 93 anos, o poeta norte-americano acaba de publicar um volume de poesia com este mote, o livro “Time of Useful Consciousness” (New Directions), lançado há 20 dias nos Estados Unidos.

Sua vasta e contundente obra, que lhe rendeu prateleiras de prêmios, também ganha espaço no Brasil. A editora L&PM, que já havia lançado a principal obra poética de Ferlinghetti, “Um Parque de Diversões da Cabeça” (“A Coney Island of the Mind”, 1958), publica na próxima quinzena um dos raros livros de prosa do autor.

O breve romance “Amor nos Tempos de Fúria”, de 1988, narra uma inflamável história de amor entre uma artista e um banqueiro, ambientado na Paris de 1968.

Em entrevista à Folha, Ferlinghetti falou sobre esta obra, comentou seu novo trabalho poético e conclamou os leitores a lutarem por questões sociais: “Não fique aí sentado, seu estúpido!”.

Folha – O seu livro “Amor nos Tempos de Fúria” é dedicado a Fernando Pessoa. Você o fez para homenagear sua mãe, que era de origem portuguesa?
Lawrence Ferlinghetti – A família de minha mãe era mesmo portuguesa, eram sefarditas de uma cidade chamada Monsanto, em Portugal. Mas não cheguei a ter contato com este passado. O livro não homenageia a minha mãe, mas sim a Pessoa. Eu me inspirei no texto dele “O Banqueiro Anarquista”. Peguei deste texto toda a ideia central para meu livro.

O sr. se identifica com as ideias do “banqueiro”, que tem o sobrenome Mendes, assim como sua família?
É curioso, mas o termo anarquismo é usado hoje na imprensa americana como sinônimo de terrorismo. É uma completa ignorância à respeito da tradição anarquista.
Nos anos 50 todos éramos anarquistas. Mas nos anos 50 a população mundial era a metade da atual. Quando havia menos gente era possível ser um deles. Mas quando a população dobra algum nível de planificação da economia mundial se faz necessário.
Hoje eu me descreveria como socialista humanitário.

O sr. já disse que normalmente as pessoas costumam ficar mais conservadoras quando envelhecem e que com o sr. foi o oposto. Por que o sr. acredita que esteja ficando cada vez mais radical?
A pressão do tempo é que dita isso. Tempos radicais pedem respostas radicais. O mundo está num péssimo estado. Lembro que tive uma conversa com Günther Grass em 1975. Ele disse que acreditava que, no final do século 21, as nações tal como as conhecemos não existiriam mais e o mundo estaria coberto de hordas étnicas lutando por comida e abrigo. É uma visão terrível do futuro, mas não é impossível diante do que vivemos. Precisamos lutar.

O sr. se considera um ativista?
Quando alguém escreve para valer é, em essência, um ativista. É importante agir. Não dá para ficar sentado em casa. Não fique sentado aí, seu estúpido, o mundo está em chamas (risos).

“Time of Useful Consciousness”, título de seu novo livro, é um termo aeronáutico que trata do tempo que alguém tem num avião entre o momento em que fica sem oxigênio e a morte. É uma metáfora para a situação do ser humano?
É exatamente isso. Chegamos a um ponto de inflexão em termos de ecologia. Os maiores estudiosos do clima estão discutindo atualmente se a raça humana vai sobreviver a este século. Ou respiramos e agimos agora ou acabaremos com tudo muito em breve.

O sr. é conhecido por sua poesia, não pela prosa, e em ambas usa linguagens experimentais. Por que no romance que está saindo aqui o sr. usou um estilo mais convencional?
Quando escrevi “Her” [1960], meu romance anterior, estava interessado em trabalhar o fluxo de consciência. Estava influenciado por obras inovadoras como “Nadja”, de André Breton. “Amor nos Tempos de Fúria” foi escrito num momento diferente. Eu tinha voltado a morar em Paris, eram os anos 1980 e o Centro Georges Pompidou tinha digitalizado todos os jornais de 1968. Li tudo e achei que deveria ambientar um romance neste momento.

O sr. disse que releu o livro para esta entrevista. Gostou do que leu?
Sim, embora eu prefira o estilo de “Her”. O deste é mesmo mais convencional. É quase uma reportagem desta época, com a graça de usar como protagonista o personagem de Fernando Pessoa.

Há um mês o sr. deu uma de “Banqueiro Anarquista” e recusou um prêmio de € 50 mil por razões ideológicas, não?
Recusei o prêmio do PEN Club da Hungria depois de descobrir que parte do dinheiro vinha do governo daquele país, que hoje é um dos mais autoritários da Europa e cujo primeiro-ministro andou homenageando um nazista. Foi difícil negar o prêmio, porque € 50 mil é mais do que eu ganhei com poesia durante toda a minha vida, mas não tive escolha.

Mas “A Coney Island of the Mind” é considerado o livro mais vendido de um poeta vivo americano. Já vendeu um milhão de cópias…
Deve ser, mas em nenhum ano ganhei mais do que US$ 10 mil de royalties.

O sr. ainda vai à livraria que fundou, a City Lights?
Costumo dar um pulo lá de vez em quando, mas me aposentei do trabalho mais ativo. Você sabe, tenho 93 anos. Coloquei um pessoal mais jovem para tocar o negócio. Prefiro me dedicar à pintura e à poesia. No livro novo junto as duas, já que na capa há uma pintura minha.

A capa mostra um relógio com dois ponteiros quase sobrepostos…
É o tempo que está acabando. É um livro um pouco sombrio, mas, no final do poema, depois de escrever sobre os terríveis prognósticos para o planeta, eu escrevo “Chega, chega”. Eu tento encontrar alguma esperança no futuro. Nas últimas páginas há esta grande virada. Não queria terminar com um tom de desespero. Por isso é que, no final do livro, eu cito Walt Whitman, o eterno otimista.

O sr. costuma ser chamado de “o último beat”, mas já li declarações suas dizendo que não gosta do epíteto.
Eu me associei aos beats mais por ter sido editor deles. Mas minha poética é diferente. Minha poesia foi influenciada por franceses como Apollinaire, Jacques Prévert e outros voltados para a cultura europeia. Os beats não iam por esta linha. Havia outra diferença. Sou heterossexual. Metade dos beats era gay.

Quais as principais diferenças em termos poéticos?
A poesia de Allen Ginsberg era baseada na ideia do “primeiro pensamento, melhor pensamento”, um conceito que ele pegou do budismo. Jack Kerouac acreditava nisso. Você escreve a primeira coisa que aparece na sua cabeça, sem censura. É um modo profundo e verdadeiro de conceber poesia. O que você escreve primeiro é muito frequentemente melhor do que o que consegue depois de burilar o texto. Mas isso é mais verdadeiro se você é Ginsberg, um gênio com a mente original. Mas se você ensina isso para centenas de estudantes de poesia, como Kerouac fez numa escola em Colorado, não vai funcionar. As pessoas têm mentes comuns e produzirão alqueires de poesia chata. Ele pregava que as pessoas deveriam escrever sobre a primeira coisa que vissem logo que acordassem. Isso pode ser lindo no olhar de Ginsberg, mas não funciona para todos. Imagine: “Acordei. Vi minha escova de dentes. Ela caiu no chão. Abaixei para pegá-la”, fim do poema (risos).

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