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Denise Bottmann e sua tradução de “A fazenda dos animais”, de George Orwell

Denise Bottmann é uma respeitada e premiada tradutora que há muitos anos trabalha com a L&PM Editores. Pedimos que ela escrevesse um texto contando sobre sua tradução de A fazenda dos animais, de George Orwell que, por um longo período, foi editado no Brasil com o título de A revolução dos bichos. Por mais que alguns leitores tenham se apegado a esse título, Denise explica sua opção de seguir o original que é publicado na L&PM nos formatos convencional e pocket.

A fazenda dos animais 

Por Denise Bottmann

Creio que uma das áreas a que melhor se aplica o sapientíssimo dito “Ninguém é dono da verdade” é, provavelmente, a tradução. E a infindável variedade de seus frutos é o que faz da tradução algo tão interessante e fascinante.

Assim é que Animal Farm, a fábula escrita por George Orwell nos idos dos anos 40, pode ser lida em Portugal e no Brasil sob diferentes títulos: A quinta dos animais, O porco triunfante, O triunfo dos porcos, A revolução dos bichos e, last but not least, A fazenda dos animais.

De meu ponto de vista, um elemento útil para me nortear no oceano relativista em que nós tradutorxs podemos navegar – e talvez, ou não, nos afogar – é o original. Não ouço mentalmente nenhuma voz clamando para que me afaste de um claro e singelo Animal Farm: A fazenda dos animais, sem maiores problemas nem grandes dúvidas. Aí alguém pode objetar: “fazenda”? Melhor “sítio” ou “granja” ou “herdade”… Tenho lá minhas razões para preferir “fazenda” – mas que seja, não vou ficar brigando por causa disso.

Até aí, é simples. Mas, atendo-nos ao título mais usado no Brasil – A revolução dos bichos –, fico um pouco confusa, em primeiro lugar, com “bichos”. Que bichos, gente? Pois, quanto a isso, a grande questão é que Orwell estabelece muito cuidadosamente, muito meticulosamente, muito sistematicamente, uma divisão do reino animal dentro da obra. E a estabelece adotando uma terminologia muito específica e constante ao longo de toda a sua fábula.

Vejamos, pois. Por animals ele designa única e exclusivamente o que chamamos de animais domésticos, de trabalho, criação e reprodução: vacas, cavalos, cabras, ovelhas, porcos, galinhas, gansos, pombos. Aram as terras, puxam carroças, pisam o trigo, fornecem ovos, servem de reprodutores e assim por diante. Note-se – e isso é bonitinho – que também há entre eles uma gata: ela vive fugindo ao trabalho, mas os outros animais não se zangam com sua mandriice porque, quando aparece depois das jornadas de trabalho, é sempre muito meiga, carinhosa e afetiva. Ou seja, entre os animais domésticos inclui-se também o que chamaríamos de animal de estimação (não de trabalho, criação etc.). Além da gata, há os cachorros, também incluídos entre eles na função de cães de guarda, de pastoreio e mesmo de caça. Esses são os animals orwellianos.

E os outros? Os ratos, os coelhos do mato, os pardais? Orwell nunca, nunca os trata como animals: são wild creatures, não domésticos e sim silvestres. Aliás, é muito interessante que, depois de expulsos os homens e instaurado o novo regime – animal – na fazenda, um dos líderes, o porco Bola de Neve, cria “o Comitê de Reeducação dos Camaradas Silvestres (o objetivo desse comitê era domesticar os ratos e os coelhos)”, para integrar as wild creatures à sociedade animal – que não tenha dado muito certo, são outros quinhentos.

E, por fim, temos beasts: aqui, sim, eu diria “bichos”. Com o termo beasts, Orwell abarca a totalidade dos seres animais, domésticos e silvestres. Daí a importância da canção Beasts of England, que se torna por algum tempo o hino da nova sociedade animal: todos os seres animais, os domésticos e os silvestres, nele se congregam. Aliás, logo no começo, quando o Maioral começava a organizar os animais da fazenda, havia até algumas dúvidas se os bichos do mato, as criaturas silvestres, seriam considerados “camaradas” dos animais domésticos. “Os bichos do mato, como os ratos e os coelhos, são amigos ou inimigos nossos? Vamos pôr em votação. Faço a seguinte pergunta à assembleia: os ratos são camaradas?”. Sim, foram considerados camaradas quase por unanimidade (e vale notar que apenas os cachorros votaram contra: afinal gostavam de perseguir os ratos e acompanhavam os homens na caça às lebres).

Bem, a questão central é que animals, wild creatures e beasts designam coisas diferentes, de abrangência e interrelações bem específicas. Posso em sã consciência tratar indiscriminadamente os termos? Falar em “bichos” para me referir especificamente aos animals? Ou, inversamente, falar em “animais” para me referir especificamente às wild creatures? A meu ver, creio que não. Se Orwell fez assim, tinha lá suas razões para isso – as quais, aliás, ficam muito claras durante a leitura do texto. Assim, não entendo como eu poderia falar em Fazenda dos bichos ou, ainda menos, em Revolução dos bichos. Repisando, não foram as beasts que se rebelaram, foram apenas os animals.

E os animais não fazem uma revolução: os animais se rebelam, se levantam numa rebelião. Não têm qualquer programa revolucionário, a não ser aspirações de tipo cooperativista e autogestionário de longo prazo. Mobilizam-se por insatisfação, rebelam-se contra a opressão: que essa rebelião coletiva depois resulte numa nova situação, cujo comando virá a se concentrar progressivamente num número cada vez mais restrito de animais, são outros quinhentos. Dá-se a rebelião, mas não se implanta concretamente qualquer tipo de coisa que se assemelhe às aspirações que acompanhavam a rebelião: e é esse é o drama da coisa.

A propósito, é o papel fundamental dessa mobilização pessoal contra a opressão que Orwell deixa tão claro em relação a si mesmo, no famoso prefácio à edição ucraniana: “Tornei-me pró-socialista mais por horror à opressão e ao descaso a que estava submetida a parcela mais pobre dos operários industriais do que por qualquer admiração teórica por uma sociedade planejada”. É esse elemento subjetivo, a profunda insatisfação com o status quo, amparado em outro elemento subjetivo, o sonho com um mundo melhor, que leva os animais da Fazenda do Solar a se erguerem contra a situação, e não uma adesão a um projeto revolucionário pré-elaborado. Não à toa, em momento algum encontramos o termo revolution em Animal Farm; é sempre, única e exclusivamente, rebellion. A única vez em que encontramos algo similar a revolution é um derivado: o adjetivo revolutionary, tratado como algo descabido, quando o porco Napoleão se reúne com um grupo de fazendeiros humanos e declara, em discurso indireto citado: “Por muito tempo circularam rumores – divulgados … por algum inimigo malévolo – de que havia algo de subversivo e até de revolucionário na posição dele e dos seus colegas. … Nada podia estar mais distante da verdade!”.

Em suma, em tradução pode-se fazer praticamente qualquer coisa. O que nos dá bússola, guia, norte, é o texto original. Nada, porém, obriga que o tomemos como bússola, guia ou norte. Vai de cada um. De minha parte, prefiro me ancorar no autor. E viva A fazenda dos animais!

"A fazenda dos animais" é publicado na L&PM Editores em formatos convencional e pocket com tradução de Denise Bottmann

“A fazenda dos animais” é publicado na L&PM Editores em formatos convencional e pocket com tradução de Denise Bottmann

Walden, o jogo

Em julho de 1845, desgostoso com o crescente comercialismo e industrialismo da sociedade americana, Henry David Thoreau deixou Concord, Massachusetts, sua cidade natal, para instalar-se à beira do Lago Walden. Essa experiência deu origem ao seu livro mais famoso. Publicado primeiramente em 1854 com o título Walden ou A vida nos bosques, é o relato de dois anos, dois meses e dois dias em que o autor viveu apartado da sociedade dos homens, suprindo as próprias necessidades, estudando, contemplando a natureza e conhecendo-se a si mesmo.

Pois eis que agora a obra mais famosa de Thoreau virou um game. Calma, nada a ver com aqueles jogos eletrônicos em que você tem que correr, pular, caçar e essas coisas enervantes que alguns. Como escreveu o colunista da Folha de S. Paulo, João Pereira Coutinho, em uma matéria publicada no Caderno Ilustrada da Folha, “Um jogo é competitivo, Walden é contemplativo. Thoreau iria gostar.”

Coutinho contou que baixou o jogo com o pé atrás, mas foi surpreendido:

“Quando soube da bizarria, ri alto: como transformar as meditações solitárias de Thoreau em videogame? (…) A desconfiança foi recuando quando soube que o jogo era patrocinado pela National Endowment for the Humanities, instituição que tudo tem feito para ressuscitar, com a dignidade inerente, a obra completa do autor. Comprei o jogo e iniciei a experiência” porque somos convidados a ser Thoreau, a ver o mundo pelos seus olhos, a tocar nos objetos com as suas mãos. (…) Então aceitei ser Thoreau. Caminhei pelo bosque. Fui recolhendo objetos, contemplando as árvores e reconhecendo a cabana incompleta que esperava por mim.”

WALDEN, A GAME custa U$ 18,45 (R$ 58). O download pode ser feito em www.waldengame.com e ele roda em PC e Macintosh.

Para sentir este clima, que tal dar uma olhada no trailer:

A L&PM publica Walden com apresentação de Eduardo Bueno e tradução de Denise Bottmann.

Dez dicas de Denise Bottmann para quem deseja ser tradutor

SaraivaConteúdo – 19/08/2014 – Por Zaqueu Fogaça

A tradutora Denise Bottmann

A tradutora Denise Bottmann

São incontáveis as obras estrangeiras publicadas no Brasil todos os anos em língua portuguesa. Isso só é possível graças ao esforço de um profissional que às vezes escapa aos olhos apressados da maioria dos leitores: o tradutor, aquele sujeito que se debruça por meses, e até mesmo anos, no texto original para entregar a obra em português, pronta para ser lida.

O ofício do tradutor requer muita paciência para decifrar o labiríntico processo de composição de uma obra, como explica a tradutora Denise Bottmann: “O grande desafio é entender de fato o texto. Entender uma frase não significa entender as palavras e o sentido visível em determinada construção. Significa entender as articulações daquela frase dentro da construção geral da obra, princípios estruturais e compositivos utilizados pelo autor. Traduzir é basicamente decifrar o texto original, seguindo uma ou mais chaves de leitura, e reconstituir essa decifração num outro texto e em outra língua”.

Graduada em História e mestra em Teoria da História, a curitibana lecionou Filosofia na Unicamp; posteriormente, em 1985, direcionou seus esforços ao campo da tradução, trabalho que executa até hoje como tradutora de inglês, francês e italiano.

Entre os autores que verteu para o português figuram nomes como Hannah Arendt, Marguerite Duras, Henry David Thoreau e Virginia Woolf. Desta última, Denise traduziu o livro Mrs. Dalloway (L&PM), trabalho agraciado, em 2013, com o Prêmio Paulo Rónai da Biblioteca Nacional.

Mrs. Dalloway e Walden, dois títulos da L&PM traduzidos por Denise Bottmann

Mrs. Dalloway e Walden, dois títulos da L&PM traduzidos por Denise Bottmann

Em face das possibilidades e complexidades que cada obra apresenta, faz-se necessário definir uma linha tradutória. “Perante tal complexidade, o tradutor opta por uma determinada abordagem, um determinado ‘partido tradutório’. Assim, o principal objetivo de uma tradução em relação ao texto original é manter a coerência do partido adotado, checando constantemente sua validade em relação ao original”, diz a tradutora, que também é autora do blog Não Gosto de Plágio, no qual expõe ao público os plágios de traduções no país.

A pedido do SaraivaConteúdo, Denise Bottmann elencou dez componentes que considera importantes para quem ambiciona se aventurar pelo campo da tradução. Confira a relação abaixo.

1. DOMÍNIO DO PORTUGUÊS
Ter um domínio muito bom do português. E não se trata apenas de conhecer a língua. Trata-se de ter uma familiaridade lógica com estruturas linguísticas. Se a pessoa não tem pleno domínio linguístico de sua língua materna, dificilmente conseguirá ter uma percepção das estruturas lógicas de outra língua.

2. DOMÍNIO DA OUTRA LÍNGUA
Ter um domínio pelo menos bom da outra língua. O mais importante é o domínio das estruturas linguísticas; nesse sentido, eventuais e inevitáveis lacunas vocabulares podem ser preenchidas com o recurso a dicionários.

3. CONHECIMENTO DO ASSUNTO
Ter um domínio pelo menos razoável da área a que pertence a obra. Não é preciso ser um especialista no assunto, mas é indispensável um mínimo de conhecimentos gerais que permitam ao tradutor trafegar com relativa familiaridade pelos temas tratados.

4. MATERIAL DE APOIO
Dispor de ampla variedade de materiais de consulta e pesquisa: dicionários, enciclopédias, glossários, estudos sobre aquela área, outros livros relacionados ao tema. Com a Internet, tudo isso fica muito mais fácil.

5. CONTEXTO DA OBRA
Ter noção do quadro literário, teórico ou científico em que se insere a obra. Para quem traduz literatura, é indispensável ter noções de recursos estilísticos e literários em geral. Em humanidades em geral, é indispensável ter noção da linhagem a que se filia a obra e dos debates em torno do tema.

6. CONTEXTO HISTÓRICO
Ter noção do quadro histórico e cultural em que se insere a obra. É indispensável que se tenha noção da inserção histórica da obra e de suas relações com a época, seja uma obra de literatura ou de humanidades em geral.

7. AUTODISCIPLINA E CONCENTRAÇÃO
Com o instrumental dado nos seis itens anteriores, o tradutor põe mãos à obra. É um tipo de atividade intelectual que demanda muita concentração, por horas a fio, ao longo de semanas e meses. Requer bastante esforço continuado e disciplina para atender satisfatoriamente às exigências do texto.

8. DECISÃO E RESPONSABILIDADE
Capacidade de tomar decisões, adotar soluções conscientes e poder responder por elas. A responsabilidade do tradutor consiste em ser capaz de explicar a si e a outrem as razões de suas escolhas. Como traduzir envolve escolhas constantes, qualquer eventual alegação de que “É assim que está no original” simplesmente não faria o menor sentido.

9. RELEITURA E REVISÃO
Proceder a constantes releituras e revisões do texto em tradução.Traduzir é uma atividade extremamente dinâmica, e nada garante a priori a qualidade do resultado. Tropeços, deslizes, inconsistências, vaguezas nos afligem constantemente e muitas vezes escapam à nossa atenção. Daí a necessidade de reler e retrabalhar várias vezes o texto traduzido.

10. CALMA E PONTUALIDADE
Tradutores profissionais costumam dispor de prazos estabelecidos pelas editoras. Proficiência linguística, materiais de apoio, boa bagagem geral, dedicação e responsabilidade de pouco adiantam se não respeitarmos prazos e não cumprirmos o combinado com a editora. Mas o mais importante, acima de tudo, é manter a calma. Keep calm and translate on!

Clique aqui e conheça todos os títulos do catálogo L&PM com tradução de Denise Bottmann.

Tradução de Mrs. Dalloway ganha Prêmio Literário

A tradutora Denise Bottmann acaba de ganhar o “Prêmio Paulo Rónai” da Biblioteca Nacional pela tradução de Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, lançado em 2012 pela L&PM Editores. A escolha foi feita por uma comissão julgadora composta por três profissionais renomados na área: Berilo Vilaça Vargas, Leonardo Fróes da Silva e Tomaz Adour da Camara.

Durante o processo de tradução de Mrs. Dalloway, Denise criou o blog “Traduzindo Mrs. Dalloway“, onde compartilhava os bastidores do seu trabalho. No blog dedicado ao livro de Virginia Woolf, a tradutora dividiu com o público (leitores, colegas tradutores e interessados em geral) as referências utilizadas, notícias e registros sobre a obra na imprensa, rascunhos e capas de outras edições, ilustrações, fotos e toda a sorte de curiosidades que permeiam a obra, ao mesmo tempo em que compartilhava trechos da tradução com comentários sobre os impasses e reflexões a respeito da complexa tarefa de verter uma obra como Mrs Dalloway para o português.

Eis o resultado:

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Os Prêmios Literários da Fundação Biblioteca Nacional (FBN/MinC) foram criados com o objetivo de estimular a pesquisa e a criação literária no país e concedem anualmente, desde 1997, uma premiação a autores, tradutores, e designers. A lista completa dos ganhadores foi divulgada esta semana no site da FBN.

Em 2013 foram mais de 700 inscrições, divididas em 9 categorias, todas nomeadas em homenagem a intelectuais destacados na cultura brasileira. Cada vencedor recebe como prêmio um certificado e a quantia simbólica de R$ 12,5 mil (doze mil e quinhentos reais).

Um passeio “Ao farol” no blog da tradutora Denise Bottmann

Capa_ao_farol.inddEm outubro de 2012, a tradutora Denise Bottmann lançou um blog chamado Ao farol de Woolf, em que retomava as postagens sobre sua tradução de To the Lighthouse, de Virginia Woolf, para a L&PM Editores. De lá para cá, Denise publicou comentários sobre seu processo de trabalho e outros posts relacionados com o livro. Agora que Ao farol foi lançado, vale a pena dar uma lida nas postagens da tradutora. Tem, por exemplo, uma em que ela lista os personagens que aparecem no livro e outra em mostra a primeira edição da obra, de 1927, com sobrecapa feita por Vanessa Bell, irmã da escritora.

 Quem

– A família Ramsay: Mrs. Ramsay, Mr. Ramsay e os oito filhos, Cam, Prue, Rose, Nancy, James, Andrew, Jasper, Roger

– Empregadas e ajudantes eventuais: Mildred, a moça suíça, Mrs. Mcnab, Mrs. Bast

– Hóspedes e visitantes: Lily Briscoe, Minta Doyle, Mr. William Bankes, Mr. Augustus Carmichael, Charles Tansley, Paul Rayley

– Macalister, pescador e dono do veleiro que faz a travessia até o farol, seu filho, também pescador

– O encarregado do farol e seu filho, apenas citados e vistos ao longe

– Vários figurantes secundários, apenas citados: a copeira Marthe; o pintor Mr. Paunceforte; Elsie, moradora local pobre e doente; Mrs. e Mr. Doyle; tia Camilla; a família de Charles Tansley; a esposa falecida de Mr. Bankes; o criado de Mr. Bankes; os jardineiros Kennedy, George e Davie Macdonald;  o homem maneta colando o cartaz; o operário cavando um dreno; grupos não identificados de intelectuais, estudantes, operários, garçonetes etc.

Esta foi a sobrecapa original da primeira edição de To the Lighthouse, criada por Vanessa Bell, irmã de Virginia Woolf. O livro foi lançado em maio de 1927 pela Hogarth Press, a editora do casal Leonard e Virginia Woolf.

Esta foi a sobrecapa original da primeira edição de To the Lighthouse, criada por Vanessa Bell, irmã de Virginia Woolf. O livro foi lançado em maio de 1927 pela Hogarth Press, a editora do casal Leonard e Virginia Woolf.

 

Uma ótima entrevista com Denise Bottmann, tradutora de Mrs. Dalloway

O jornal Opção, de Goiânia, publicou uma longa entrevista com Denise Bottmann, uma das mais importantes tradutoras brasileiras, responsável pela tradução de Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf. O livro acaba de sair pela Coleção L&PM Pocket e Denise falou sobre a importância das novas traduções de clássicos e o desafio de encontrar o tom certo para esta grande obra de Virginia Woolf. Clique aqui e leia a entrevista completa.

O que você destacaria como o principal desafio que encontrou para traduzir este livro?

Foi encontrar o tom. A linguagem em si é muito simples. A questão é a seguinte: existem “n” maneiras de dizer qualquer coisa; acontece que aquela coisa está dita daquela e não de outra maneira — e ninguém, em especial o tradutor, pode considerar que seja algo fortuito ou mecânico. Então este é o ponto de partida: as escolhas do autor. E são essas escolhas incessantes ao longo das páginas que você tem de entender: não digo só o que está dado no texto; digo as razões de fundo (literárias, estilísticas) para a escolha de tal e tal montagem, desta e não daquela palavra, daquela imagem, daquela ordem dos termos e frases, o que for. Esse entendimento leva algum tempo, pelo menos para mim: assim como o pessoal da filosofia fala em “tempo lógico” do texto, penso numa espécie de “tempo literário” do texto. Então, digamos, a certa altura você até consegue reconstituir mais ou menos o quadro da coisa, você já discerne os procedimentos e suas correlações internas. Ótimo. Mas ainda não sente, está ainda no nível analítico, abstrato. Você até consegue prever quais as escolhas que vão vir, ou, quando vêm, já parecem bastante naturais, você bate na cabeça e diz, “mas claro!”. E aí você tem de conseguir infundir essa percepção de uma estrutura, que transparece apenas obliquamente na superfície do texto, no que você vai escrever em português, isto é, na sua tradução. É isso o que chamo de “encontrar o tom”. E vários elementos de conteúdo, eu tinha de conseguir que cintilassem de leve, aqui e ali, discretamente, como pequenos presentinhos escondidos para o leitor, como Woolf faz, sem alardear: e de repente pode aflorar à leitura alguma preciosidade, e é quando o leitor tem aquela — para usar um termo batido — epifania. Várias coisas ganham nova perspectiva; coisas que pareciam avulsas ou desconectadas se reúnem; fica uma espécie de prisma multifacetado.

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Os sentimentos contraditórios de Virginia

É somente depois que passou dos cinquenta anos que Virginia Woolf consegue ter um certo distanciamento com relação à crítica. Mas depois de quantos tormentos?! Seu Diário até essa época é uma radiografia fiel da acolhida recebida por cada um de seus livros. Com precisão, Virginia analisa a evolução de sua cota de popularidade. Quando afirma não querer ser célebre, nem grande, tudo em seu Diário afirma o contrário. A romancista queria ser apenas “alguém que escreve pelo prazer de escrever”, mas não para de se torturar: “Talvez seja verdade que minha reputação agora só irá declinar. Vão me fazer de ridícula. Vão apontar-me com o dedo, que atitude deverei adotar?”, pergunta-se em 1932, quando está no auge de sua glória. A vida de Virginia se parece com uma corrida pelo reconhecimento que revela um sofrimento profundo. Afinal, a única coisa que vale a pena neste mundo vil é não duvidar da literatura. Mais uma vez, Virginia Woolf fica dividida entre desejos contraditórios. O de se expor em plena luz a fim de recolher os louros de que tanto precisa para continuar seu vasto empreendimento. O de ficar à sombra e mergulhar cada vez mais profundamente nas águas agitadas da consciência. Virginia sofre por ser tributária da flutuações de seu renome enquanto gostaria de ver apenas o avanço de sua obra.

(Trecho de Virginia Woolf, Série Biografias L&PM)

Ainda em 2012, a Coleção L&PM Pocket vai lançar, de Virginia Woolf, o livro Mrs. Dalloway com tradução de Denise Bottmann.

Programa da FBN inclui obras suspeitas de plágio

Por Guilherme Freitas
Jornal O Globo – 21/01/2012

Cadastro para compra de livros por bibliotecas públicas tem traduções acusadas de cópia

Criado pela Fundação Biblioteca Nacional (FBN) para ampliar e renovar o acervo das bibliotecas públicas do país, o recém-lançado Cadastro Nacional de Livros de Baixo Preço inclui obras suspeitas de serem traduções plagiadas. A denúncia foi encaminhada à Procuradoria Geral da República nesta semana pela tradutora Denise Bottmann, que enumerou dezenas de casos. A maior parte deles envolve livros da Editora Martin Claret.

Denise publicou em seu blog (naogostodeplagio. blogspot.com) uma lista de obras suspeitas, comparando-as com as versões originais. Entre os livros citados estão “O médico e o monstro”, de Robert Louis Stevenson, “O lobo do mar”, de Jack London, e “A mulher de trinta anos”, de Balzac, todos com traduções atribuídas a Pietro Nassetti e denunciadas há anos como plágios.

No caso de “O lobo do mar”, por exemplo, a versão atribuída a Nassetti reproduz, com pequenas alterações, a tradução de Monteiro Lobato publicada em 1934, pela Companhia Editora Nacional. O romance de London está em domínio público, mas os direitos autorais da tradução pertencem aos herdeiros de Lobato.

O Cadastro Nacional de Livros de Baixo Preço reúne mais de dez mil títulos, cujo preço final para o consumidor não pode ultrapassar R$ 10. Os livros foram inscritos no programa pelas próprias editoras e, desde 13 de janeiro, começaram a ser avaliados por 2.700 bibliotecas e pontos de leitura de todo o país, que escolherão os títulos a serem adquiridos.

Procurada pelo GLOBO, a FBN alega que, para que um livro seja excluído do cadastro, “é preciso que tenha sido objeto de ação judicial, com trânsito em julgado, que tenha determinado o impedimento de circulação das obras”. A FBN argumenta que o edital determina que toda editora, ao participar do programa, reconhece “que os livros que inscreve não violam qualquer princípio legal vigente”. A Martin Claret já foi intimada judicialmente por plágios, como no caso das traduções de Modesto Carone para “A metamorfose” e “Carta ao pai”, de Kafka (não incluídas no cadastro).

Editora substituirá obras

Responsável pelo Departamento Editorial da Martin Claret, Taís Gasparetti afirma que, devido às denúncias dos últimos anos, a editora está substituindo, desde o segundo semestre de 2011, as traduções que confirmou como plágios.

– Nosso Departamento Comercial inscreveu esses títulos no programa da Biblioteca Nacional considerando que eles já teriam novas traduções até o fim da vigência do edital – diz Taís, que pedirá à FBN que remova temporariamente do cadastro os títulos cujas novas traduções ainda não estão prontas.

Segundo ela, a lista de livros que ganharão novas versões inclui, entre outros, “A mulher de trinta anos”, que será traduzido por Herculano Villas-Boas, “O lobo do mar”, por Marcelo Albuquerque, e “O médico e o monstro”, por Cabral do Nascimento. No cadastro da FBN, todos eles aparecem atribuídos a Pietro Nasseti.

Além dos livros da Martin Claret, Denise aponta irregularidades em títulos das editoras Escala (“Assim falou Zaratustra”, de Nietzsche) e Pillares (“A luta pelo direito”, de Rudolf von Ihering) incluídos no cadastro da FBN.

* * *

No dia seguinte à publicação desta matéria, Denise Bottmann publicou novas considerações à FBN em seu blog. Leia aqui.

Lendo Walden

Por Denise Bottmann*

Dizem que Thoreau fez três coisas quando morava em Walden: escreveu Uma semana nos rios Concord e Merrimack, foi preso por não ter pagado o imposto do município e escreveu muitas notas que vieram a fazer parte de sua obra mais famosa, Walden.

Já comentei que a leitura de Walden às vezes pode ser opaca, embora todas as pistas estejam lá. É o caso de uma passagem belíssima, onde se mesclam ironias, coloquialismos, metáforas, repetições, jogos de palavras e outras figuras de estilo, misturam-se planos temporais, fazem-se digressões de caráter geral e apenas insinua-se o sentido:

Não faz muito tempo, um índio andarilho foi vender cestos na casa de um famoso advogado de minha vizinhança. “Querem comprar cestos?”, perguntou ele. “Não, não queremos”, foi a resposta. “O quê!”, exclamou o índio ao sair pelo portão, “querem nos matar de fome?” Tendo visto seus industriosos vizinhos brancos tão bem de vida – que bastava o advogado tecer argumentos e, por algum passe de mágica, logo se seguiam a riqueza e a posição –, ele falou consigo mesmo: vou montar um negócio; vou tecer cestos; é uma coisa que sei fazer. Pensando que, feitos os cestos, estava feita sua parte, agora caberia ao homem branco comprá-los. Ele não tinha descoberto que precisava fazer com que valesse a pena, para o outro, comprá-los, ou pelo menos fazê-lo pensar que valia, ou fazer alguma outra coisa que, para ele, valesse a pena comprar. Eu também tinha tecido uma espécie de cesto de tessitura delicada, mas não tinha feito com que valesse a pena, para ninguém, comprá-los. Mas nem por isso, em meu caso, deixei de pensar que valia a pena tecê-los e, em vez de estudar como fazer com que valesse a pena para os outros comprar meus cestos, preferi estudar como evitar a necessidade de vendê-los. A vida que os homens louvam e consideram bem-sucedida é apenas um tipo de vida. Por que havemos de exagerar só um tipo de vida em detrimento dos demais?

Vendo que meus concidadãos não pareciam dispostos a me oferecer nenhuma sala no tribunal de justiça ou nenhum curato ou sinecura em qualquer outro lugar, mas que eu teria de me arranjar sozinho, passei a me dedicar em caráter mais exclusivo do que nunca às matas, onde eu era mais conhecido. Decidi montar logo meu negócio, em vez de esperar até conseguir o capital habitual, usando os magros recursos que eu já tinha. Meu objetivo ao ir para o lago Walden não era viver barato nem viver caro, e sim dar andamento a alguns negócios privados com o mínimo possível de obstáculos; mais do que triste, parecia-me tolo ter de adiá-los somente por falta de um pouco de siso, um pouco de tino empresarial e comercial.

A que “negócios privados” Thoreau queria dar andamento ao se mudar para Walden? E que “cesto de tessitura delicada” seria aquele para o qual não conseguiu compradores?

Por muitos anos Thoreau alimentou a vontade de ir morar sozinho na mata, e vários elementos se compuseram para que decidisse ir para Walden. A oportunidade propícia surgiu quando Emerson comprou uma propriedade no local. O poeta Ellery Channing, conhecendo os anseios do amigo Thoreau, sugeriu que se instalasse lá. Thoreau combinou com Emerson, e assim foi.

Mas uma das ideias que por anos vinham ocupando seu espírito era fazer uma homenagem à memória ao irmão, falecido em idade prematura em 1842, e escrever um livro narrando a excursão que ambos tinham feito em 1839, percorrendo os rios Concord e Merrimack. Morando em Concord, não tinha o vagar e a liberdade mental de que precisava para escrever a obra. Estes eram os “negócios privados” (ou assuntos particulares) a que queria dar andamento “com o mínimo de obstáculos”.

Tendo efetivamente escrito A Week on the Concord and Merrimack Rivers durante sua permanência em Walden, o livro foi publicado em 1849. Nos anos em que refletiu sobre a experiência em Walden e reelaborou essas reflexões ao longo de cinco a sete versões diferentes de Walden (que viria a ser publicado em 1854), Thoreau pôde conhecer a fortuna do tributo que fizera ao irmão: um fracasso de vendas – duzentos exemplares vendidos em quatro anos… Diga-se de passagem que apenas em décadas recentes tem-se reconhecido a finíssima lavra de A Week: até então, era tida como obra canhestra e desconjuntada.

Assim se entende qual era o cesto de delicada tessitura que ninguém se interessara em comprar… Notem-se os movimentos temporais: o parágrafo inicial é uma reflexão posterior ao relato apresentado no parágrafo seguinte; dentro do inicial, há também uma sutil circunvolução: o episódio do índio funciona como uma espécie de justificativa a posteriori de sua decisão em adotar uma forma de vida que lhe permitisse tecer seus textos/cestos em paz, sem a premência de vendê-los. Vivendo em Walden, pôde construir uma narrativa com trama de singular e complexo lirismo, que demandaria mais de cem anos para vir a ser devidamente reavaliada.

De passagem, entende-se também o sentido, de outra forma obscuro, do adjetivo triste: “mais do que triste, seria tolo” adiar seus planos de construir o memorial ao irmão, se fosse apenas por questões de fundo pragmático.

Outra característica de Walden, também ilustrada nos trechos acima: as referências, em sua imensa maioria, são concretas. O episódio do índio é autêntico, e Thoreau chegou a registrar em seu diário o nome do advogado (Samuel Hoar, figura muito conhecida na cidade).

(Uma boa fonte de consulta é a bela edição anotada de Walden com introdução e notas de Walter Harding, Houghton Mifflin, 1995. Também interessante é The Thoreau Reader, site com suas obras anotadas. Ilustração: verso de página da primeira edição de A Week, em exemplar pessoal de Thoreau. Citação dos trechos: Walden, tradução minha, L&PM, 2010, pp. 31-32. Para o original, ver aqui.)

*Denise Bottmann é tradutora de Walden, publicado pela L&PM. Semanalmente Denise escreve no seu blog Não gosto de plágio