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Meu amigo David Coimbra

Por Juremir Machado da Silva – Publicado originalmente na sua coluna no jornal Correio do Povo em 17 de abril de 2018

Conheço o David Coimbra há 38 anos. Éramos adolescentes. Eu tinha acabado de chegar de Palomas para morar no bucólico Sarandi. Ele vinha do IAPI com seu senso de humor para nos divertir e provocar. Entramos juntos na Faculdade de Jornalismo da PUCRS. Já contei aqui que passamos quatro anos fazendo revoluções teóricas no bar da Mazza, na Bento Gonçalves, e nos trajetos de T1 até a Assis Brasil. O tempo, a distância e o fato de trabalharmos em empresas concorrentes não atingiram a nossa amizade. Falamos pouco, cada um mergulhado no seu turbilhão, mas o carinho permanece. Li de uma sentada o mais novo livro do David, “Hoje eu venci o câncer” (L&PM). É a história dele.

Que livro forte. David detalha o choque que foi a descoberta de uma doença que, segundo a previsão, não lhe daria mais do que cinco anos de sobrevida. Câncer com metástase. Resolveu lutar. David nunca foi de desistir. Arrancou a verdade do médico por telefone mesmo.

“– Vou fazer uma pergunta e queria que você fosse honesto – falei para o médico.

– Faça.

– Quanto tempo eu tenho.

– Difícil dizer…

– Qual a estimativa?

Depois de um instante de hesitação, a voz dele veio sumida:

– Se tudo der certo, cinco anos.

– Se tudo der certo?

– Sim.

– É possível ter mais tempo?

– Não. É muito improvável que você tenha mais do que esse tempo.

– Mas a grande possibilidade é ter menos tempo.

– Sim.

– Bem menos?

– Bem menos. A doença é mais agressiva do que pensávamos.”

Felizmente David não aceitou a previsão. Foi para os Estados Unidos em busca de tratamento. Está aí firme para alegria dos seus admiradores. A vida é cheia de ironias sem qualquer significado. Quanto eu tinha uns 20 anos, David teve de me levar ao hospital, em Tramandaí, por causa de uma pedra no rim. A minha primeira. Quem poderia imaginar que aquilo era nada perto do que lhe aconteceria. Volta e meia, nessas andanças, alguém me pergunta em tom debochado:

– Tu e o David ainda se dão?

– Por que não nos daríamos?

– Ora, vocês estão em lados opostos.

A oportunidade é sempre boa para responder suavemente:

– Não tenho lado. Estou sempre do lado da amizade.

Li o livro do David como quem lê uma carta. Há tanta coisa que nos escapa no dia a dia. Torço para que esse velho amigo de tantas utopias tenha vida longa. Imagino o David velhinho, cheio de ceticismo e de ironia machadiana (a do Machado de Assis, não a minha), relembrando os tempos apaixonados de hoje. Olhamos as mesmas coisas. Vemos diferente. Construímos nossa amizade em cima da diversidade.

Hoje_eu_venci_o_cancer

A segunda morte de Breno Caldas

No dia primeiro de outubro, o Correio do Povo completou 120 anos de atividades ininterruptas. Durante 50 anos, ele foi considerado um dos maiores e mais influentes jornais brasileiros, período em que foi dirigido pessoalmente pelo seu dono Breno Alcaraz Caldas, filho do fundador Caldas Jr. Acossado por sérios problemas financeiros, Breno Caldas viu-se obrigado a vender o jornal em meados dos anos 1980. A L&PM publicou, em 1987, um grande depoimento de Breno Caldas dado ao jornalista e escritor José Antonio Pinheiro Machado sobre a história, a glória e a queda do grande jornal. Aqui reproduzimos o texto escrito por José Antônio, publicado na edição eletrônica do Jornal “JÁ” do dia 3 de outubro de 2015. Neste texto o jornalista destaca o fato de que, na edição especial comemorativa aos 120 anos do Correio do Povo, sequer foi mencionado o nome de Breno Caldas.

Nos 120 anos do Correio do Povo,
a segunda morte de Breno Caldas

Por José Antonio Pinheiro Machado

Com a mesma discrição que viveu, o jornalista Breno Caldas teve no dia 1º de outubro passado sua segunda morte.

O fato ocorreu nos festejos dos 120 anos do Correio do Povo e na edição comemorativa a essa data notável. Breno Caldas foi o jornalista mais importante da história do Correio do Povo.

Filho do fundador, Caldas Júnior, Breno Caldas comandou o jornal durante 50 anos ― os 50 anos em que o Correio do Povo se tornou um dos jornais mais importantes do País.

Apesar disso, seu nome não mereceu destaque na edição comemorativa do jornal. Na verdade, o Correio do Povo de hoje, que comemora os 120 anos que não viveu, é bem diferente do Correio do Povo que construiu a lenda: o Correio do Povo de Breno Caldas.

A primeira morte do jornalista Breno Caldas, sua morte física, ocorreu em 1989, aos 79 anos, depois de uma agonia quase tão dolorosa quanto a do jornal que dirigiu durante meio século, o Correio do Povo.

Fui seu amigo durante seus últimos anos, quando já estava longe de ser um dos 10 homens mais ricos do Brasil, co­mo foi considerado pela revista Veja nos anos 1970.

Aproximei-me de Breno Caldas movido pela perplexidade que, desde 1984, atingia a maioria dos gaúchos: co­mo e por que o Correio, a publicação ma­is importante do Rio Grande ― e uma das mais importantes do Brasil ―, quebrou?

Era a história incrível de um jornal que tinha deixado de circular apesar de ter invejável espaço publicitário e 90 mil assinaturas pagas.

Já tinha ouvido as opiniões e análises mais diversas, mas eu queria saber a versão do personagem principal: o que pensava a respeito aque­le homem enigmático que tinha sido uma espécie de Vice-Rei do Rio Grande, e que, depois da derrocada, se recolhera a um silêncio impenetrável na sua bela propriedade da Ponta do Arado?

Nossos primeiros contatos foram mui­to difíceis, pois o “Dr. Breno” não admitia a idéia da publicação de um depoimento seu sobre o fim do Correio do Povo:

“Ninguém está interessado nas desculpas de um falido”, dizia, com sua inesgotável capacidade de rir de si mesmo.

Se não fosse nossa paixão em comum por alguns esplêndidos cavalos, espe­cialmente os egressos dos campos de criação do inesquecível Marcel Boussac, as conversas não teriam ido adiante: talvez tivessem ficado naquele final de uma tarde luminosa de inverno em que tomamos chá inglês Earl Grey com bis­coitos caseiros, quando visitei-o pela primeira vez.

Mas, por causa dos cavalos, voltamos a conversar, e o assunto voltou para o jornal. Por fim, o constrangimento do empresário mal sucedido sucumbiu diante da sensibilidade do velho redator-chefe, e Breno Caldas concordou em me conceder um longo depoimento que resultou no livro “Meio Século de Correio do Povo —Glória e Agonia de um Grande Jornal”― o livro mais vendido da Feira do Livro de Porto Alegre de 1987, que obrigou a Editora L&PM a imprimir uma segunda edição durante a Feira.

Como ficou claro no livro, Breno Caldas tinha a dizer, é claro, muito mais do que desculpas sobre a falência; e muito mais gente do que ele imaginava estava interessada na sua versão.

Quase todos perceberam esse lado épico de uma tragédia shakesperiana: ele perdeu sua fortuna tentando salvar sua paixão, o jornal.

O livro não tem o depoimento de um ressentido, mas sim o balanço de alguém que chegou ao fim da vida com seu dever cumprido. Nas saborosas reminiscências de um velho jornalista, Breno Cal­das retratou de forma impiedosa, os equívocos – especial­mente os dele – que levaram sua empre­sa a mergulhar em dívidas impagáveis quando decidiu renovar o parque gráfico e implantar uma emissora de TV. Tam­bém fez um libelo corajoso com acusações (que não tiveram contestação) a políticos e governantes da época que deram a voz de comando: “Vamos que­brar o Breno!” Atribuía isso a um ajuste de contas de poderosos, descontentes com sua “excessiva independência”.

Era um homem conservador, mas, como lhe confidenciara um general, “não inteira­mente confiável”. Sua falência foi um filme repetido nos tempos do “milagre brasileiro” com tantos outros empre­sários: depois de ter sido induzido a cap­tar financiamentos em dólar através da famigerada “Resolução 63”, Breno Caldas enfrentou duas maxi-desvalorizações da moeda que multi­plicaram sua dívida.

Em vez de deixar a pessoa jurídica, isto é, o jornal, afundar, salvando sua fortuna pessoal, resistiu em desespero e consumiu 90% do seu imen­so patrimônio particular tentando salvar o Correio do Povo. Por certo que não agiu com a prudência que se quer de um empresário, mas foi um jornalista exemplar: num dos lances finais da agonia do jornal, quando não tinha mais crédito para obter papel, trocou a metade dos 800 hectares que possuía na espetacular Fazenda do Arado, no sul de Porto Alegre, pelas bobinas ne­cessárias para imprimir o Correio mais algumas semanas.

No que restou do Arado, uma belíssi­ma propriedade no extremo sul do município de Porto Alegre, onde o rio Guaíba faz a sua última volta, Bruno Caldas passou os últimos anos sem qual­quer arrependimento pelos prejuízos incalculáveis que teve: “Tudo o que eu possuía, veio do Correio; era justo que voltasse para o jornal.”

Durante as gravações do depoimentos que me concedeu sempre se recusou a mencionar as cifras exatas de suas per­das. Mas, depois do livro impresso, num fim de tarde, quando bebíamos Dimple na sacada do seu gabinete, no Arado, diante do pôr-de-sol no Guaíba, confes­sou:

“Uma vez, naqueles dias, numa única tarde perdi 35 milhões de dólares”.

Mas em seguida mudou de assunto, passando a recordar Estensoro, El Centauro, El Supremo, Estupenda, e outros cavalos magníficos que, nos bons tempos, criou nos campos do Haras do Arado. Também o Haras se foi, na voragem das dívidas.

A todos esses golpes resistiu sem amargura, recolhendo-se às tardes silen­ciosas de sua bela biblioteca com cente­nas de volumes encadernados em couro, onde se deliciava lendo Dickens, Proust, Goethe e Chateaubriand ― sempre no original: ele falava, lia e escrevia com fluência em inglês, francês e alemão.

Só não teve forças para enfrentar um último golpe, poucos anos antes de sua própria morte: a morte do filho, Francisco Antônio, de pouco mais de 50 anos, que por mais de três décadas o acompanhou, também trabalhando no Correio, na gerência comercial. A luta silenciosa do filho durante mais de um ano contra o câncer, sem uma queixa sequer, deixou Breno Caldas espantado:

“O meu filho tinha fibras que eu desconhecia”, me disse.

Não se recu­perou desse golpe, porém. E poucos meses depois, com problemas renais e respiratórios, mergulhou numa agonia dolorosa e irreversível. Enfrentou-a com a serenidade que suportou o naufrágio do seu jornal, revelando as mesmas fibras insuspeitadas do seu filho diante da morte.

O livro que contou a história de Breno Caldas e seu jornal

O livro que contou a história de Breno Caldas e seu jornal

Novo livro de David Coimbra na coluna de Juremir Machado da Silva

Quarta-feira, 17 de outubro, publicamos aqui neste blog uma crônica de Martha Medeiros em que ela revela suas impressões sobre Uma história do mundo, novo livro de David Coimbra. No mesmo dia, o jornalista e escritor Juremir Machado da Silva comentou sobre a mesma obra em sua coluna diária do Jornal Correio do Povo de Porto Alegre. Vale a pena ler as impressões de Juremir sobre o livro de David:

David Coimbra, o egípcio

Por Juremir Machado da Silva* 

Na época da faculdade de jornalismo, quando morava no IAPI e pegava o T1 depois da aula, quando não ia se esbaldar no bar do Maza até encher o latão de cerveja, o David Coimbra já adorava história. Creio que já naquele tempo ele lia Will Durant, historiador americano que sabia tudo dos bastidores da vida das grandes personalidades históricas. David sempre teve um fraco pela história da antiguidade. Nunca tirou o olho da Cleópatra. Tenho a impressão de que só a rainha vadia podia concorrer com a Rosane Aubin pelo coração do David naqueles trepidantes dias de 1980 a 1984. Era certo que David acabaria por escrever livros unindo as suas paixões: literatura, história, crônica e jornalismo. É o que se vê em “Uma história do mundo – como se formou a primeira cidade, como nasceu o primeiro deus único, como foi inventada a culpa”(L&PM).

David, o egípcio, é o nosso Will Durant. Como uma vantagem: escreve muito melhor.

A ambição é a mesma. A história do mundo do David terá muitos volumes (a de Will Durant tem 23). Li os originais do primeiro tomo dessa enciclopédia em tom jocoso do David. É sensacional. Agora, relendo o texto publicado, renovei o meu encantamento. Como não se maravilhar com capítulos que começam assim? “Foi no Egito que Napoleão descobriu que era um marido traído?” Napoleão, o corno. Sobre a evolução tecnológica: “Olhe para você. Veja no que você se transformou. Você passa a noite ressonando em cima de uma colchão macio como as canelas da Scarlett Johansson e debaixo de cobertores quentes como o olhar da Megan Fox”. Nessa balada de cronista, David dribla a chatice da história positivista e o cientificismo da história estruturalista e conta a vida dos nossos antepassados ilustres ou não. Tudo tem uma explicação: “O governo centralizado e forte era tão importante no Egito que o faraó foi promovido de rei a deus. Essas coisas não acontecem por acaso.   As instituições só funcionam quando as pessoas precisam”. 

Pode-se aprender na sacanagem. David sempre encontra um jeitinho para empurrar a coisa (opa!) suavemente: “Dilma Rousseff, Margaret Thatcher, Evita Perón e todas as mulheres que um dia assumiram o poder máximo em seus países jamais conseguiram se igualar às façanhas da Primeira Grande Mulher da História. Maatkare Hatshepsut fez mais do que suplantar o poder dos homens quinze séculos antes de Cristo e 3,5 mil anos antes de Angela Merkel. Hatshepsut suplantou o próprio sexo”. Como? Aí é que a porca torce o rabo (certamente David explicará a origem dessa expressão nalgum dos seus volumes).

É ler.

David Coimbra trabalhou muito, durante quatro anos, leu incansavelmente, de Heródoto a Freud. De Heródoto, aliás, pescou relatos impagáveis: “No Egito, as mulheres vão ao mercado e negociam, enquanto os homens, encerrados em casa, trabalham no tear (…) As mulheres urinam em pé; os homens, de cócoras”. Se fosse resumir o livro de David a partir do clássico título de Paul Veyne, eu diria apenas: “Como se (re)escreve a história”.

Com talento!

Aquelas viagens no T1 só poderiam levar a algum lugar.

*Pela L&PM Editores, Juremir Machado da Silva publica História regional da infâmia e lançará, na Feira do Livro de Porto Alegre, o livro A orquídea e o serial killer. O texto acima foi publicado originalmente em sua coluna na pg. 2 do Jornal Correio do Povo de 17 de outubro de 2012.

Em seu livro, David Coimbra conta até a história de como surgiram as sílabas

Testemunha ocular

Por Juremir Machado da Silva*

Flávio Tavares é um jornalista que dispensa apresentações. Está na cena brasileira há mais de 50 anos. Esteve preso no Brasil e no Uruguai. Viveu no exílio. Em 1961, como diz a fórmula consagrada, foi testemunha ocular dos episódios da Legalidade. Mais do que isso, como jornalista de Última Hora, foi protagonista da grande aventura, entrincheirado no Palácio Piratini, ombreando com os heróis do momento. Com base nesse currículo altamente legitimador, Tavares não poderia deixar de apresentar a sua visão do que aconteceu quando o doido do Jânio Quadros renunciou e os reacionários e não menos doidos ministros militares tentaram impedir a posse de Jango, o rico fazendeiro visto como comunista, sendo frustrado pela reação comandada pelo intrépido e desconcertante Leonel Brizola. O relato de Flávio Tavares está em “1961, O Golpe Derrotado – Luzes e Sombras do Movimento da Legalidade” (L&PM), que será lançado hoje à noite em Porto Alegre.

A primeira página do livro de Flávio Tavares já diz tudo com um “efeito credencial”, um altamente legitimador “eu estava lá”, “eu fui parte dos acontecimentos”, “eu vi tudo”, um fac-símile de uma carta enviada pelo autor, no calor da refrega, ao governador Brizola avisando-o da interceptação de uma mensagem de Brasília ordenando (ou sugerindo) a sua prisão em nome da “normalização da ordem pública”. As 231 páginas do livro são uma narrativa minuciosa e sem fissuras dos 13 dias que sacudiram o Brasil, colocaram o Rio Grande do Sul, mais uma vez, na linha de frente das questões nacionais e despertaram o interesse de boa parte do mundo por mais uma tentativa de golpe militar ao Sul do Equador. O golpe em si seguia os padrões tradicionais. A resistência é que se mostrou diferente. Flávio Tavares põe essa diferença em destaque.

Disposto a jogar luz em cima das sombras que encobrem a Legalidade, Flávio dá detalhes de acontecimentos que testemunhou. Por exemplo, dois encontros de Brizola com Che Guevara, em Montevidéu, poucos dias antes da crise brasileira. Essas conversas teriam influenciado Brizola, que teria ficado impressionado com o charme, o carisma e a aura romântica do guerrilheiro argentino convertido em alto mandatário cubano. Depois de churrasquear com Che e vê-lo desafiar publicamente os Estados Unidos no discurso na reunião para a oficialização da Aliança para o Progresso, em Punta del Este, o destemido e idealista Leonel não poderia deixar por menos no seu terreiro de atuação.

O livro começa com uma curiosa descrição de uma situação entre Flávio e um soldado da Brigada Militar dentro do Palácio Piratini. Flávio mostra sua voz de comando: “Um martelo e uma escada comprida, que chegue ao teto. Mas rápido”. O soldado obedece. Flávio sobe, quebra três vitrais na janela oval e abre espaço para instalar uma metralhadora. Guerra é guerra. A grande batalha, como em 1930, não aconteceria. O golpe seria adiado para 1964. O “soldado” Flávio apresentou suas armas naquele dia. Ficaria em guerra por muitos anos. Talvez ainda continue.

*Este texto foi publicado originalmente na coluna de Juremir Machado da Silva no jornal Correio do Povo, na edição de 7 de março de 2012.

Autógrafos do livro 1961: o golpe derrotado

Em Porto Alegre:
HOJE, 7 de março, às 19h, na Saraiva Megastore do Shopping Praia de Belas

No Rio de Janeiro:
20 de março, às 19h, na Livraria Argumento