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Dose dupla de Kafka no teatro em São Paulo

Estreiam neste fim de semana, em São Paulo, dois espetáculos sobre o universo de Franz Kafka. Em um deles, Denise Stoklos transforma o clássico Carta ao pai numa metáfora sobre a relação entre o povo brasileiro e seus governantes. No texto, Kafka faz uma espécie de acerto de contas com o pai tirano por meio de uma carta que nunca chegou a seu destinatário. No palco, Denise projeta na figura do pai opressor a figura dos nossos governantes, enquanto o filho oprimido torna-se o brasileiro que anseia por melhores condições de vida.

Outra interpretação possível para a montagem de “Carta ao Pai” feita por Denise Stoklos é a relação entre instituições governamentais e classe teatral, que, segundo ela, está fadada a não crescer pelas condições que lhe são impostas. “Represento a classe teatral em cena e faço uma denúncia ao apontar as opressões vindas de órgãos como o MinC, a Secretaria de Cultura e a Funarte, que deveriam dar todas as condições aos criadores de teatro, mas não dão. Não sei como os grupos resistem, meu Deus”, desabafou em entrevista à Folha de S. Paulo.

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Denise Stoklos em “Carta ao pai”

A segunda estreia kafkiana do fim de semana é da Cia Pau D’arco de Teatro com direção de Bia Szvat: “Expresso K” também se baseia na obra epistolar de Kafka e busca reconstituir, de forma não linear, os últimos 5 dias de vida do autor tcheco. “Trazemos ao público uma faceta menos conhecida de Kafka, seu lado mais doce e amoroso, além de sua dor e de seus delírios, causados pela alta febre”, contou a diretora.

SERVIÇO:

“Carta ao pai”
Quando: sexta às 21h, sábado às 20h, domingo às 18h (de 23/8 até 29/9)
Onde: Sesc Consolação – Teatro Anchieta (Rua Dr. Vila Nova, 245, tel. 011 3258 3830)
Quanto: de R$ 6,40 a R$ 32
Classificação 18 anos

“Expresso K”
Quando: sábado às 21h; domingo às 20h (de 24/8 a 27/10)
Onde: Espaço da Cia do Feijão (Rua Dr. Teodoro Baima, 68, tel. 011 3259 9086)
GRÁTIS
Classificação 14 anos

E por falar em Kafka, acaba de chegar à Série Ouro L&PM, o grande livro Franz Kafka: Obras Escolhidas que reúne nove textos do escritor, entre eles Carta ao pai Metamorfose.

Carta escrita por Kafka revela fobias do escritor

Folha de S. Paulo – 11/12/2012

Uma carta de quatro páginas que o escritor Franz Kafka (1883-1924) escreveu em 1917 e em que confessa, entre outras fobias, seu pavor de ratos, foi arrematada em leilão na Alemanha por uma quantia não especificada.

A carta, enviada ao amigo Max Brod com selo do dia 4 de dezembro, esteve durante décadas na mão de colecionadores particulares, mas o Arquivo Literário Alemão, com sede na cidade de Marbach, no sul do país, pretende exibí-la a partir de abril de 2013.

O objeto deverá ser a estrela da exposição “Os Ratos de Kafka”, que vai reunir manuscritos do famoso escritor.

Segundo fonte do Arquivo Literário Alemão, a carta foi à leilão com o preço mínimo de € 42 mil (cerca de R$ 113 mil).

Escritor Franz Kafka com a irmã, Ottla, em uma praça no centro histórico de Praga, na atual República Checa

De Franz Kafka, a L&PM publica Um artista da fome, O processo, A metamorfose e Carta ao pai.

Autor do dia: Franz Kafka

Praga, Tchecoslováquia, 1883 – † Kierhing, Áustria, 1924

Judeu de classe média, começou a escrever aos quinze anos, embora a maior parte de sua obra tenha sido publicada postumamente. Viveu sua infância em um clima opressivo, dominado pela figura tirânica do pai. Personalidade complexa, tímido, funcionário público exemplar, conviveu com intelectuais, participando reservadamente da vida cultural. Seus trabalhos só foram enviados a editoras e jornais depois da insistência de admiradores, como o conterrâneo Max Brod, responsável pela divulgação de sua obra. Esta começou a ganhar espaço durante os anos 1920, por intermédio de André Breton e, mais tarde, de Jean-Paul Sartre e Albert Camus, chegando aos países de língua inglesa. Seus livros, proibidos durante a Segunda Guerra Mundial, retornaram à Alemanha apenas em 1950. Dentre esses, os mais conhecidos são A metamorfose e O processo. Sua obra é considerada um dos pontos altos da literatura fantástica, com destaque para o modo como o absurdo irrompe o cotidiano e o desestabiliza.

Obras principais: A metamorfose, 1916; Na colônia penal, 1919; Carta ao pai, 1919; Artista da fome, 1924; O processo, 1925; O castelo, 1926

FRANZ KAFKA por Antonio Hohlfeldt

Kafka viveu entre o final do século XIX (nasceu em 1883) e as três primeiras décadas do século XX  (morreu em 1924). Assistiu, pois, à passagem dos séculos, mas, principalmente, à Revolução Russa e à Primeira Guerra Mundial. Judeu, natural de Praga, experimentou na carne a marginalização sob todos os seus aspectos: Praga era a capital de uma nação relativamente artificial (afinal, a Tchecoslováquia fazia parte do Império Austro-Húngaro – ele mesmo, Franz, falava alemão), e os judeus, em qualquer tempo e em qualquer lugar, sempre foram perseguidos ou sofreram desconfiança por parte dos demais segmentos populacionais. Some-se a esses aspectos culturais e históricos um aspecto psicológico pessoal: o sentimento de apartamento que marcou o adolescente e o adulto, fato que se confirma ao serem lidos seus Diários ou a famosa Carta ao pai.

Perto de morrer, Kafka queria que seus escritos fossem destruídos. Felizmente, seu principal amigo, Max Brod, descumpriu essa vontade, e hoje a obra de Franz Kafka, lida e debatida constantemente, constitui-se em um dos mais radicais e contundentes documentos sobre a modernidade, a tentativa de afirmação da racionalidade e, ao mesmo tempo, a vitória da irracionalidade. Kafka ilustra toda a teoria freudiana da psicanálise (veja-se O castelo ou A metamorfose), mas, sobretudo, evidencia a fragmentação da consciência do homem moderno, uma esquizofrenia que impede a auto-imagem, a afirmação da identidade e, portanto, toda e qualquer realização afirmativa.

Além disso, antecipa os sistemas de força que negariam a individualidade, como o socialismo soviético,  que começava a ser então edificado, ou o nazismo, que logo depois tomaria conta da Alemanha, matizado pelo fascismo de Mussolini na Itália, etc. Em síntese, Kafka foi moderno porque sua literatura surpreende a inadequabilidade do ser humano ao mundo crescentemente maquinizado, onde as pessoas se tornam máquinas, robôs, coisas, instrumentos de poder, negadas em sua essência e em sua identidade. Para bem se ler Kafka, por isso mesmo, deve-se levar em conta tanto a chave psicanalítica quanto a histórico-cultural.

Guia de Leitura – 100 autores que você precisa ler é um livro organizado por Léa Masina que faz parte da Coleção L&PM POCKET. Todo domingo,você conhecerá um desses 100 autores. Para melhor configurar a proposta de apresentar uma leitura nova de textos clássicos, Léa convidou intelectuais para escreverem uma lauda sobre cada um dos autores.

O amigo de Kafka

A grande metamorfose de Kafka aconteceu em 3 de junho de 1924 quando, depois de muito sofrimento causado pela Tuberculose, ele finalmente descansou. Robert Klopstock, seu grande amigo, acompanhou os últimos dias do escritor, como mostra o trecho do livro Kafka, série Biografias L&PM.

Às quatro horas da manhã, Dora chama Klopstock ao quarto, porque Franz respira muito mal. Klopstock tem consciência do perigo e acorda o médico, que faz uma injeção canforada. Então começa a última batalha do escritor, a da morfina. Ele culpa, com raiva, seu amigo, recriminando-o por não querer ajudá-lo: “Você sempre me prometeu, há quatro anos. Você me tortura, você sempre me enganou… Não falarei mais com você. Eu estou morrendo, afinal”. Aplicaram-lhe duas injeções. Na segunda, ele disse: “Não trapaceie, você está me dando um antídoto”. Depois ele disse […]: “Mate-me, senão você é um assassino”. Deram-lhe pantapon, ele ficou feliz: É bom assim, mas mais, mais, você está vendo que não está fazendo efeito”. Depois, ele lentamente adormeceu. Suas últimas palavras foram para sua irmã Elli, Klopstock segurava-lhe a cabeça. Kafka, que sempre teve um medo extremo de contaminar alguém, disse, olhando para o amigo que tomava por sua irmã: “Vamos, Elli, não tão perto”. E como Klopstock se endireitasse um pouco: “Sim, assim, está bem.

Robert Klopstock ainda era estudante de medicina quando interrompeu seus estudos para ajudar a cuidar de Kafka. Seu nome ficaria para sempre ligado ao do autor de A metamorfose, Carta ao pai, O processo, Um artista da fome, entre outros.

Robert Klopstock, o amigo de Kafka que estava ao lado do escritor no dia de sua morte

E foi graças a outro amigo, o escritor e jornalista Max Brod, que a obra de Franz Kafka não se perdeu no tempo. Em 1922, Kafka pediu a ele que destruísse todos os seus escritos após sua morte. Brod não cumpriu a promessa, salvou o que conseguiu, recuperou trabalhos perdidos durante o regime nazista na Alemanha e publicou grande parte dos livros do amigo. À Brod, o nosso muito obrigada. 

Para marcar o Dia da Imigração Judaica

“Havia guerra na Europa, mas a hora era de calma no Bom Fim. Os grandes negros da Colônia Africana ainda dormiam, ressonando forte e cheirando a cachaça. Três mulatas dormiam dilatando as narinas com volúpia. As gordas avós judias dormiam, os pálidos judeuzinhos dormiam, de boca aberta e respiração ruidosa por causa das adenóides. As mães judias dormiam seu sono leve e intranqüilo. Os pais judeus dormiam; logo acordariam e iriam, bocejando, acender os fogões de lenha, tossindo e lacrimejando quando as achas úmidas começassem a desprender fumaça.” (Moacyr Scliar em “A guerra no Bom Fim”)

Se há um escritor brasileiro que retratou a comunidade judaica no Brasil, ele é o saudoso Moacyr Scliar. Lembramos dele porque hoje, 18 de março, é o Dia Nacional da Imigração Judaica. E para marcar a data, aqui vão outros trechos de escritores judeus que a casa oferece. Além de Woody Allen, Allen Ginsberg e Franz Kafka, ainda há Isaac Singer, Freud e muitos outros.

“E, como se seu Q. I. já não o isolasse bastante, sofria injustiças e perseguições por causa de sua religião, principalmente vindas de seus pais. É verdade que tanto seu pai quanto sua mãe frequentavam a sinagoga, mas não conseguiam admitir a ideia de que o filho fosse judeu. ‘Como foi acontecer isto?’ perguntava seu pai, indignado. Minha cara não mente, pensava Weinstein todo dia ao barbear-se. Tinha sido confundido várias vezes com Robert Redford, mas sempre por um cego. E havia também Feinglass, outro amigo de infância.”

“Por que nego o maná para os outros? / Porque o nego para mim. / Por que me neguei para mim mesmo? / Quem mais me rejeitou? / Agora acredito que você seja adorável, minha alma, alma de Allen, Allen – e você tão amada, tão doce, tão lembrada na sua verdadeira amabilidade, / seu Allen original nu respirando / alguma vez você voltará a negar alguém? / Querido Walter, obrigado pelo seu recado / Proíbo-o de deixar de tocar-me, homem a homem / Autêntico Americano / Bombardeios rasgam o céu (…)

“Tudo isso não era, por certo, um fenômeno isolado, as coisas se passavam de maneira semelhante em grande parte dessa geração de transição judaica, que emigrou do campo para as cidades ainda relativamente religiosa; acontecia espontaneamente, apenas acrescentava à nossa relação, à qual já não faltavam agudezas, mais uma bem dolorosa. Por outro lado também aqui tu deves, do mesmo modo que eu, acreditar em tua ausência de culpa…”