49. A arte literária de Iberê Camargo

Em outubro, o “Era uma vez… uma editora” será dedicado a relembrar alguns livros que marcaram não apenas a nossa memória, como toda uma época. São obras que atualmente estão esgotadas, mas que permanecem na lembrança, no imaginário e na prateleira de muita gente. O escolhido de hoje é “No andar no tempo”, de Iberê Camargo.  Iberê era amigo de Ivan Pinheiro Machado* que, além de editor da L&PM, também é artista plástico. Ivan poderia contar melhor esta história, mas como no momento ele está na Alemanha, onde amanhã tem início a Feira Internacional do Livro de Frankfurt, vamos nos limitar a falar do livro.

Era Outono de 1988 quando mais uma obra de Iberê Camargo foi concluída. Desta vez, no entanto, sua arte não estava impressa na tela, mas em um livro publicado pela L&PM Editores. No andar do tempo ­– 9 contos e um esboço autobiográfico era o nome da obra que, em pouco mais de 100 páginas, trazia além do que o título prometia, mais dez ilustrações do pintor gaúcho de renome internacional (duas delas estão logo abaixo).

Os cinco primeiros textos de No andar do tempo, escritos na década de 80, eram marcados pela ironia e segundo escreveu o jornalista Antonio Hohfeldt na orelha do livro “Atingem certa dimensão metafísica por trás da brincadeira aparente”. “Ao fazer a barba pela manhã, vejo pelo espelho um mosquito pousado na parede do banheiro, às minhas costas. É apenas um traço vertical, minúsculo risco a creiom, na alvura vítrea do azulejo. Vou aniquilá-lo, penso comigo, com um golpe de toalha. Concedo-te a vida somente o tempo que necessito para fazer a barba. Devo usar a lâmina com cuidado, devagar, para não cortar o lábio superior já chupado pela idade. Torno a fitar o mosquito. Ele continua imóvel na imagem do espelho, à espera, sem o saber, de sua morte, como todos os viventes.” escreveu Iberê em “O mosquito”, conto que abre o livro.

Há outros quatro contos escritos por Iberê na década de 1950. Mais densos e dramáticos do que os primeiros, eles às vezes trazem os mesmo elementos de suas pinturas, como mostra um trecho de “O relógio”: “Sobre a enxada enrola-se estranha serpente: um suspensório. Ele o desenlaça e com a arte o estende por terra, desenhando um ipsilone. Encontra também um soldadinho de chumbo com a perna quebrada, uma cornetinha e carretéis…”

Já em “Um esboço autobiográfico”, que fecha o livro, Iberê Camargo conta desde seu nascimento: “Nasci em 18 de novembro de 1914, no Rio Grande do Sul, em Restinga Seca, onde meu pai era o agente da Estação da Viação Férrea” até sua visão de mundo: “Vejo o mundo ameaçado pela insanidade. Em 1984, em Porto Alegre, pintei um cartaz de rua que dilacerou na chuva e no vento, e escrevi um texto em solidariedade àqueles que se opõem ao holocausto nuclear. É preciso criar no Brasil uma consciência ecológica. Talvez um partido. Tenho sempre presente que a renovação é uma condição da vida. Nunca me satisfaz o que faço. Vejo nisso um estímulo permanente à criação. Ainda sou um homem à caminho.”

Este era Iberê Camargo. Eternizado em palavras e pinturas.

* Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o quadragésimo nono post da Série “Era uma vez… uma editora“.

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